Quando
eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que
nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado com os convites que eu
recebia. Mais encantado ainda, com a organização das mesas, seus bolos e
docinhos, as bolas coloridas e a gritaria de crianças bem arrumadinhas.
Chamava-me
a atenção um docinho em específico: o olho de sogra. Como poderia um docinho
tão gostoso receber um nome tão estranho. Nunca soube o porquê desse docinho se
chamar assim. E então vinham os brinquedos e a famigerada língua de sogra. Como
poderia, em uma festa infantil, um docinho e um brinquedinho receberem a
alcunha de sogra?
Hoje,
perdi uma amiga muito querida, no auge dos seus 93 anos. Ela fez a sua
passagem. Sinto ainda as suas mãos firmes apertarem a minha. Mesmo quando já não
me reconhecia, olhava briosa para os meus olhos e me dizia com a voz firme: “Deus
te abençoe”. Para muitos, ela era a minha sogra, mas para mim, no âmago dos meus
sentimentos, ela era, tão somente, a minha amiga.
Viajamos
algumas vezes, juntos. Lembro-me de nossa viagem ao Nordeste do Brasil. Viajamos
de Vitória a Recife e, de lá, para Campina Grande, na Paraíba. Meu filho nos acompanhou.
Depois, viajei com ela para São Paulo. Dessa vez, fomos sozinhos e de carro.
Enfim, a Volta Redonda. Sempre tive a minha amiga como uma grande companheira
de jornada. Quando eu ultrapassava algum carro ou corria um pouco mais,
percebia ela orando, o que fazia sempre que podia.
Diante
da perda, não me sinto triste e pesaroso. Ao contrário, meu coração bate
vibrante por saber que tive o privilégio de conviver da melhor forma com a minha
amiga há quarenta anos. Ela me conhece desde os treze. No início de minha puberdade,
pude experimentar os sinceros afetos dessa mulher brilhante.
Não
era dada à vaidade. Firme em sua vitalidade, exercia a nobre ação da simpatia e
da empatia. Nunca se eximiu ao ato de estender a mão a quem precisasse, amparando
a gregos e troianos em suas possibilidades. Oxalá, mais amigas como ela neste
insano mundo. Além disso, exalava a fé graciosa em atos singelos de compaixão.
Não poucas vezes, subia e descia morros em seu Monte Castelo para visitar quem
precisasse de solidariedade, das melhores.
Ela
possuía duas paixões: as crianças e a música. Na sua maturidade, exercia a função
de professora de crianças nas atividades de sua igreja. Preparava as lições e
as músicas com todo o carinho. Quanto à música, também em sua maturidade, aprendeu
teclado. Adorava tocar alguns hinos, os seus cânticos preferidos.
Minha amiga
fazia um café bem inusitado. Eu sempre disse a ela, com toda a sinceridade, que
eu não gostava. Ele era transparente. Eu, mais dado ao café preto, sem leite,
sempre pedia a liberdade para fazer um outro tipo, bem mais resinoso.
Na
última quarta-feira, pela madrugada, visitei-a e conversei com ela de forma bem
aberta, como sempre fiz. Disse a ela que não iria deixar o meu bigode crescer,
tampouco tirar os brincos que ela julgava, de boa. Mais do que isso, falei com
ela que a sua jornada já estava cumprida e que todos os seus amados filhos e filhas,
netos e netas, bisnetos e bisnetas iriam ficar bem. Ela, sempre muito preocupada
com a vida de todos, precisava ficar tranquila quanto à jornada de cada um ou
cada uma. Mesmo aquelas que tivessem mais dificuldades, se organizariam. A vida
é como uma caminhonete carregando melancias e descendo o morro sem freios. No
final, todas ficarão ajustadas, de alguma maneira. Ela se debateu, não aceitou
muito, mas se conformou, justamente por conta da confiança que sempre tivemos
um no outro.
Há pessoas
que deixam legados bem especiais na jornada existencial. Riscam o cotidiano com
os seus sorrisos e esperanças, muitas vezes teimosas. Sim, ela também era
teimosa.
Hoje,
dia de sua passagem, o céu estava calmo e azulado. O sol brilhante como brilhante
eram os seus olhos quando sorria. Eu quero plantar orquídeas, só para celebrar
a beleza e a simplicidade. Deixar que as abelhinhas venham sobre elas a fim de
saborearem o seu néctar.
Enquanto
a brisa fria roça o meu rosto e um singelo perfume se espraia no ar, sinto não
haver lamentos. Só uma saudadinha gostosa e bem apertada. Como diria o escritor
Rubem Alves, minha amiga não morreu, mas foi encantada. Diria poeticamente que
ela se tornou uma estrelinha ridente.
Clarice
Lispector expressou em seu livro Um sopro de vida o seguinte: “Viver é o meu código e o meu enigma. E quando eu morrer
serei para os outros um código e um enigma. Despenhadeiros. Eu não sabia que o
perigo é o que torna preciosa a vida. A morte é o perigo constante da vida”.
Minha
amiga nunca verbalizou medo algum sobre o perigo constante da vida, mas legou a
cada um os seus códigos e os seus enigmas, todos valorosos. Agora, é a hora
dela dormir o soninho das justas e abraçar continuamente a sua ressurreição, uma
semana após o domingo de Páscoa.
Hoje,
o cartunista Ziraldo também partiu. Deixou-nos os seus personagens, em
especial, o Menino Maluquinho. Minha amiga, nada maluquinha, sempre será menina.
Já a vejo brincando de rodas e cantando com as crianças os seus mundos e os
seus jardins cheios de flores.
O docinho
e o brinquedinho serão sempre para mim: olho e língua da minha amiga.