Há um
processo de cura pessoal no desenvolvimento psicoterápico que ocorre nos
grupos. De antemão, deixamos claro que partimos da premissa etimológica de cura como cuidado e vigília. Essa premissa nos coloca frente ao movimento dialógico que ocorre no
tecido social, segundo a concepção de Jacob Levy Moreno. Por um lado, a
preocupação com o subjetivo que nunca se ausentou de sua obra; por outro, a
convicção de que o ser humano somente pode se perceber completo na sua relação
com o outro, num processo interpessoal.
À
priori, importa-nos salientar que o ser humano é um ser de relações. Antes
mesmo de sua estreia no palco da existência, influências oriundas de sua matriz
materna compõem os aspectos mais altissonantes de sua constituição psíquica.
Sobre este aspecto, Martim destaca:
Embora
em suas obras, faltem capítulos dedicados ao estudo teórico do “animal
político”, nelas é possível encontrar afirmações sobre esta natureza social. O
estudo do indivíduo em relação com os demais ocupa a maioria de suas páginas
fundamentalmente das que se referem à primeira etapa do existir humano, ou
seja, a matriz de identidade. Quando a criança nem mesmo percebe a diferença
entre si-mesma e seu ego auxiliar materno, já está vivenciando na relação com a
mãe, a sociedade. (Psicoterapia do Encontro, 163-164).
Para
Moreno, portanto, a perspectiva dialógica que vê o sujeito e o objeto não
possui uma dissociação. O subjetivo e o grupo estão inter-relacionados e
contribuem com a existência de ser. Em outras palavras, “a pessoa humana é o resultado de forças hereditárias (g); forças
espontâneas (e); forças sociais (f) e forças ambientais (a)”. (Psicodrama,
168). Como se percebe, todas as quatro forças elencadas possuem uma conotação
social, com pertinente base fisiológica, com dois órgãos complementares que
atuam de maneira recíproca: o princípio da bissexualidade e o princípio da
bissociabilidade.
Essa
ideia nos leva a compreender, de forma mais efetiva, que há uma expressiva
aproximação da psique, do corpo e da ação. Dessa forma, é pela atuação dos
papéis que o ser se conhece e se dá a conhecer no grupo. Complementam-se,
portanto, os dois princípios – bissexualidade e bissociabilidade – na ação
desenvolvida dramaticamente pelo corpo em ampla manifestação da criatividade e
da espontaneidade, possibilitando os processos de encontro de si-mesmo e com o
outro. Este processo garante a ruptura das conservas culturais e a
possibilidade de rematrizações.
Neto
(1989), ao tecer aproximações que podem ser consideradas por nós, afirma que o
eu na perspectiva moreniana, somente pode ser descrito em uma dimensão corporal
(Paixões e Questões de um Terapeuta, 94). Este autor amplia a sua argumentação
afirmando:
O
eu começa a se formar através dos papéis psicossomáticos e da vivência infantil
de certas zonas corporais em ação. [...]. E aí, tanto faz que aceitemos ou não
a noção de papel psicossomático, o importante é que certas necessidades
fisiológicas colocam certas zonas corporais em ação. (Paixões e Questões de um
Terapeuta, 94).
Decorre
dessa referência a ideia de que o corpo em ação se torna a primeira referência
receptora de experiências diversas, no tempo e no espaço, no campo em que
Moreno chama de Matriz de Identidade. É no encontro com o outro, mediante a
experiência dos afetos no corpo que a criança, desde os seus primeiros tempos
de vida, vai se percebendo. Segundo Neto:
É
essa dimensão do corpo assim conformada e codificada que designa o eu;
entretanto, ao lado da imagem e dos fluxos domesticados e modelados, pululam
todos aqueles que resistiram a esse processo forçado e artificial de
unificação. Por isso, costuma-se dizer e qualquer bom terapeuta sabe disso –
que o eu e a singularidade de cada um não designam a mesma coisa. Somos sempre
uma multiplicidade representada por uma unidade. (Paixões e Questões de um
Terapeuta, 96).
De
fato, o corpo é o aglutinador das imagens e afetos, fazendo com que nos
tornemos múltiplas representações. A artificialidade se encontra na ideia de
uma unidade de ser. Moreno faz questão de frisar a importância e a pertinência
em se atingir a coordenação do corpo e da expressão verbal, bem como a
diminuição dos gestos pessoais e idiossincráticos sem uma preocupação
expressiva com os papéis sociais. (Paixões e Questões de um Terapeuta, 93). Em
outras palavras, o agente múltiplo de improvisação e criatividade encontra o
seu ponto de partida dentro de si mesmo, no princípio da espontaneidade.
Entretanto,
mais do que isso, somos seres de interações sociais e desenvolvemos múltiplos papéis,
os mais diversificados. Nessa compreensão, somos atores e atrizes no palco da
existência e nos envolvemos em diversos dramas, dramalhões e algumas comédias que
nos destinam ao alcance do melhor sentido de nossa vida – ou de nossas vidas –,
visto a multiplicidade do que somos em nossa subjetividade. Moreno sonhava com
a possibilidade das pessoas alcançarem as suas melhores versões pelo
dispositivo da espontaneidade, acrescido da capacidade criativa, se contrapondo
à automação requerida pela sociedade. Na possibilidade de se afirmar como um
ser inteiro em inter-relações, mediante as dramatizações possíveis e adequadas
do corpo, o ser humano pode se encontrar consigo e ser plenificado em si-mesmo.
O teatro da vida aguarda pelo protagonismo de cada um.