quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

DIA 63 - Conscientização, vida nova e os perigos do processo psicoterápico

 



O cotidiano e os seus consequentes eventos singulares são constantemente interpretados pelos seres humanos da forma como cada qual os interpreta. Em geral, a pessoa interpreta os seus acontecimentos mais pessoais a partir dos seus sentidos e das suas percepções. O que se revela no mundo não é captado da mesma maneira por todas as pessoas. Cada qual constrói a sua narrativa de forma a se sentir em segurança com ela.

No processo psicoterápico, as nuances perceptivas se entrechocam o tempo todo entre o psicoterapeuta e seu cliente, tocando singelamente os limites das dimensões da espontaneidade e da criatividade. Os entrechoques e toques visam um novo viver marcado pelo bem-estar de melhor ser, na dimensão do que Fritz Pearls batizou de awaraness – uma dimensão especial de contentamento com as possibilidades de viver melhor, uma consciência de si perceptiva; a tomada de consciência global no momento presente, a atenção ao conjunto da percepção pessoal, corporal e emocional, interior e ambiental. Obviamente, nestes intercruzamentos perceptivos, verdades absolutas e discussões sobre o certo e o errado não cabem. E todos os debates, conversas e revelações ocorrem na zona nebulosa dos sensos ativos em processo, no campo do segredo das palavras e dos sentimentos, na escuridão profunda das cavernas mais obscuras, frias e silenciosas. Nelas, às vezes, uma pequena fogueira é acesa para favorecer os sentidos e, ainda, se perceber vivo.

Por entender os interstícios da psiquê humana, o respeitado psicanalista Contardo Calligaris usou de uma metáfora para falar do trabalho do psicólogo ou psicanalista como o trabalho de uma puta. Confesso já ter meditado múltiplas vezes sobre esta metáfora e cheguei à conclusão que o psicanalista estava certo. Com essa metáfora, eu que já respeitava as putas, passei a respeita-las ainda mais. De fato, psicólogos, psicanalistas e putas acolhem pessoas em suas mais desditosas intimidades, na nudez expressa sem constrangimentos, sem estabelecerem juízos preconceituosos ou julgamentos indevidos. Nas situações de acolhimento há vazios e interpenetrações, vergonha e exposição, alívio e angústia, recuos e avanços, transferências e contratransferências, tanto positivas quanto negativas. Não se pode perder de vistas a ideia de que o risco em se estar exposto em uma zona paradisíaca onde tudo é permitido, sem repressões ou reprimendas, o ser em situação se permite experimentar o doce sabor da liberdade e do amor, quem sabe para conseguir ser quem se pretende ser, o que é extremamente legítimo. Todavia, para os que não conhecem ou não experimentaram o processo psicoterápico, deparar-se com alguém em estado de graça ou disposto a virar o mundo de ponta cabeça é assustador.

Na sabedoria milenar, há uma narrativa sobre um homem que vivia nos escombros e cemitérios, assombrando e assustando os concidadãos. Um dia, o mestre da Galileia atravessou todo um lago só pra encontrar este homem. Num processo que não podemos avaliar, aquele homem se refez e se organizou. A cidadela, ao invés de ser favorável ao homem e celebrar a sua conquista pessoal, o que lhe deu mais dignidade de vida, se manifestou contrária ao processo libertador e perseguiu a quem provocou a metamorfose. É curioso como as pessoas no entorno de alguém que se liberta das amarras aprisionantes rechaçam de forma perniciosa e, muitas vezes, grotesca, o liberto. Para muitos, a lagarta precisa continuar a ser lagarta por toda a vida. Se ousar se transformar em borboleta, precisa ter as asas cortadas, pois as pessoas encarceradas em suas verdades sem amor não suportam quando um sorriso se esboça como genuíno sorriso e não como maquiagem embotada.

Na condição de um psicoterapeuta, eu vivencio semanalmente as glórias e as agruras decorrentes de minha ação e palavras. Sempre provoco os meus clientes a saírem de suas vidas letárgicas a fim de abraçarem as novas possibilidades que se abrem em um novo dia. Sempre há um arco-íris colorindo o céu quando raios de sol rompem a tempestade que banhou a terra, as árvores e as pedras que choram sozinhas. Em minhas provocações, incito cada um a sair de suas ideias congeladas ou cristalizadas para oportunizarem uma outra experiência em si mesmas.

Outro dia, perguntaram-me se o que eu faço é perigoso? Eu respondi prontamente que sim. Aliás, é muito perigoso, uma espécie de aventura constante que singra o mar das emoções extenuando-se em encontros e desencontros, alegrias e choros, conquistas e perdas. Às vezes, pergunto-me se toda e qualquer provocação vale à pena. Não tenho uma resposta pronta e acabada. Acho se tratar de uma pergunta complexa. Quando sou questionado em minha prática e ação, recolho-me silenciosamente, pois somente o tempo poderá me defender. Sem pontuar as razões que me levaram a esta ou aquela ação psicodramática, espero o plausível tempo onde a minha historicidade e a minha ética será salvaguardada, nem que seja na brisa suave que roçará o meu rosto.

Enfim, não importa como as pessoas interpretam os fatos. Importa, sim, como eu me entendo enquanto eu-mesmo. Por enquanto, eu somente espero que haja o mínimo de respeito e, assim como eu me recolho em mim, que outros também o façam, afinal de contas, a “putaria” sempre estará em ordem se visa o awareness.

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