sexta-feira, 30 de junho de 2023

DIA 28 - Não sou... Sou era...

 


Nem sempre é fácil aceitar-me como sou, mas desafio-me conscientemente à tarefa. Mesmo aceitando-me, entro em litígios interiores e acabo discordando de mim numa quase homérica luta de titãs. Meus paradoxos se desalinham e eu me desequilibro sem mesmo estar na corda bamba. Nestas horas, as minhas argumentações se parecem bilboquês de vidro fino na mão de crianças travessas. Tal brincadeira me assusta a alma.

Amedrontado, permito a chegada dos cristais líquidos que insistem em escorrer no meu rosto. Não são oriundos das minhas decepções pessoais, senão dos meus pés conectados à realidade cotidiana da relva pálida que alimenta continuamente as minhas mais profundas agonias, todas ligadas aos meus próximos que sofrem as agruras diárias. Flores eclodem no meu jardim psíquico e embaralham a vida em seu todo. Pisco as pálpebras e escondo a minha íris multicolorida com predominância jacarandá. Experimento o deleite do seio enluarado, sentindo o visgo do desejo se desfazer no chão de mármore, ao qual me deito nas noites frias.

O horizonte me fisga o olhar. No entorno do sol nascente, vejo uma mandala marajoara escondendo os furos mal feitos na parede de pedra onde o meu corpo se encontra recostado, ao mesmo tempo em que escondo os meus vazios para não permiti-los expostos aos desavisados. Sou um ser em fazimento e só me abro para os que sabem saltar do penhasco e voar por quase dois segundos sem gritar. Há momentos em que o crucial é curtir a queda.

Liberdade é para quem sabe o que significa limites. Liberdade é saborear o hálito da morte e, ainda assim, sorrir com medo. Liberdade é o movimento que ocorre em cada pessoa que se lança ao terreno das escolhas. E por mais que eu pense escolher o que quero escolher ou, por mais que eu não pense o que quero pensar, o meu olho que enxerga as profundezas insiste em cotejar o infinito e se iludir com as fuligens do que restou em algum fogão à lenha, daqueles que fazem um pão-de-queijo bem quentinho e o café e sua borra resinosa. O fogo se extinguiu e ainda resiste como um calor enxerido.

A liberdade requisita o movimento novamente. Neste momento, embarco em um trem para me manter em minhas andanças. Enquanto o trem percorre os seus trilhos, das suas janelas vejo cenários que se fazem e se desfazem. A poesia me invade a alma. A estação do trem é a vida... a hora da partida é também despedida. A sacra letra do Nascimento, aquele que também é chamado pela alcunha de Bituca, favorece a fulguração em meu horizonte existencial. Manifesta-se em mim uma espécie de contexto vital capaz de afirmar que tudo o que vejo veio de uma semente que absorveu a água em seu limite, fazendo-se araucária vivente por duzentos anos.

O céu possui tonalidades acinzentadas e os telhados das casas mais antigas parecem esperar a chuva. Ela vem. Um gosto de hortelã visita-me as narinas. Lembro-me que ainda é manhã e os bocejos ainda são necessários. Agora, meus olhos captam o verde e os meus pensamentos requerem a fotossíntese tão necessária à contínua troca entre os seres viventes.

Enquanto mulheres mergulham no rio, outras destilam sentimentos amorosos e paixões nos seus aparelhos inteligentes de cristais líquidos. Pessoas diversas se afogam. Se não nas águas, nas telas e também nas lágrimas. Desejo um café. Quero gozar ensandecido na transa entre a cafeína e a dopamina, enquanto o trem cruza a avenida e os raios solares rasgam algumas nuvens frívolas. Nem todo algodão doce é consistente. Mais uma vez, enfrento a fila para me desvincular daquilo que é passado. Com o riso jocoso, externo a minha ironia. Ela é fina e ácida como as chuvas frias dos desertos em que eu nunca andei.

Confirmo, assim, a teoria de que nunca é fácil me aceitar como sou, pois nunca sou. Eu sempre serei era...

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