quinta-feira, 27 de abril de 2023

DIA 16 - O tempo psicológico, o aqui e agora, o sentido da vida e o amor...

 


Quando paramos para refletir sobre o significado do tempo, reconhecemos nitidamente que ele é uma forma de organização dos momentos, eventos e acontecimentos importantes que vivenciamos em nossa trajetória existencial, tanto de uma forma pessoal e subjetiva, quanto comunitária.

Somos seres envolvidos em muitas atividades em nosso cotidiano sobre a terra. Todas as nossas histórias são narradas de formas épicas e contadas em diversas variações. O historiador Jacques Le Goff em sua obra História e Memória (1990) nos trás a informação de que os eventos históricos são monumentos erigidos para a manutenção da memória humana e que favorecem a busca pela sua localização enquanto espécie viva na inédita jornada da existência em seu mundo de sentidos. Quando nos referendamos em relação ao universo, chegamos à constatação de que somos um lapso no tempo, uma espécie de bip agudo, cujo zumbido, de alguma maneira, vai sumindo... sumindo... sumindo.

Ao considerarmos os eventos como tempo histórico, consideramos também o tempo cronológico. Curiosamente, na língua grega existem duas variações para a palavra tempo: cronos e kairós – na mitologia, Cronos e Kairós são deuses. Cronos tem a ver com a divisão do tempo, tanto nos relógios quanto nos calendários. Representa a divisão do tempo em fracionamentos que ocorreu, paulatinamente, pela observação do sol e das sombras, das fases da lua, o dos ciclos das estações e dos eventos comunitários tais como o nascimento e a morte de entes próximos.

Já kairós é o tempo da oportunidade, do aqui e do agora, do hic et nunc. É o tempo que ocorre no cotidiano caracterizando os instantes de eternidade que ocorrem em todos os momentos da vida. Ele não é previsível, tampouco preciso, entretanto é cheio de significados para aqueles que se plenificam continuamente diante da própria existência. Não podemos extinguir um tempo ou o outro. É na conjugação de cronos e kairós que se estabelecem as nossas melhores leituras de mundo. Tanto em cronos, quanto em kairós, nossa busca de sentido se imbrica em todas as possibilidades que ela mesma nos apresenta por acasos ou escolhas.

Embora eu reconheça as definições de tempo em todas as culturas, como a mesopotâmica, judaica, islâmica e cristã, quero me referir mais especificamente ao tempo psicológico, que em minha concepção evoca a biologia, a narratividade e a ética.

O tempo biológico tem a ver com os estágios da vida e seus desdobramentos no desenvolvimento humano. Assim, computam-se as conquistas angariadas desde o nascimento até a morte. Esse tempo é diferente para os seres humanos, enquanto os animais se desenvolvem mediante sua combinação genética instintiva. Os seres humanos se veem modulados pelas suas respectivas culturas, diferentemente dos outros seres de vida dinâmica. O tempo biológico é marcado por fotografias de eventos vivenciados ao longo da vida dos que amamos ou nos importamos (#maltm). Todavia, existem os estraga prazeres que incidem sobre o tempo biológico e o mutilam.

Ao me referir às narratividades no tempo, evidencio as qualidades que envolvem a narrativa que, por sua vez, se liga diretamente à produção de sentido, especialmente quando transformada em discurso ou texto. Na narratividade ocorre uma alquimia da linguagem com valoração da estética. O fenômeno estético ocorre no receptor da mensagem, favorecendo ao mesmo tempo, a construção ativa da história. Neste processo, é fundamental a suspensão da descrença ou a fixação na verdade cartesiana a fim de favorecer o encontro de sentido com a narrativa, mesmo ficcional. É na apreensão da expressão artística, capaz de proporcionar a recriação dos horizontes no mundo em contínua atualização, que os processos narrativos miméticos de pré-configuração, configuração e refiguração, conforme o filósofo francês Paul Ricoeur em sua obra Tempo e Narrativa (Tomo I – 1994), valorizam a historicidade sempre representada em seus amplos sentidos. De alguma maneira, esse conceito se alinha à esfera do tempo psicológico.

Já o tempo psicológico em uma perspectiva ética refere-se às nossas formas subjetivas de percepção do tempo. São formadas pelas percepções mais intensas alusivas aos eventos que nos impactaram de forma emocional. Por exemplo, em geral, todos nós lembramos aonde nós estávamos quando ocorreram os atentados contra as “Torres Gêmeas” no dia 11 de setembro de 2001. Lembramo-nos, também, dos acontecimentos sui generis ocorridos em nossa família, principalmente eventos de nascimento, ritos de passagens – batizados, casamentos, formaturas e morte. Revivemos com grande nitidez cada um desses eventos em nossa memória como se acontecessem no presente. Em geral, o tempo psicológico pode gerar temores, culpas, arrependimentos e ansiedades. Isso ocorre porque o pensamento humano não é linear, tampouco contínuo. Ele figura entre passado e futuro de uma forma furtiva e intensa, paradoxalmente. No tempo psicológico, enfrentamos a ambiguidade e a contradição do nosso próprio ser, bem como as afetações que desembocam em fenômenos complexos que precisam ser ressignificados no tempo presente.

Segundo B. Nunes em seu livro O tempo na narrativa (1995), o tempo psicológico é variável, pois tem a ver com a percepção qualitativa de cada sujeito, cuja representação se encontra na literatura. Eu, por exemplo, sou tomado pelo tempo psicológico quando leio Presente do Mar de Anne Morrow Lidenbergh (2001) e O Desterro dos Mortos (2001), do poeta baiano Aleílton Fonseca. Não podemos deixar de aludir ao fato de que o tempo é uma condição fluída e modal. Ele se conforma aos momentos de vida aos quais nos inserimos poeticamente em um determinado momento. Talvez seja por este motivo que o filósofo francês Henri Bergson em sua obra Duração e Simultaneidade (2006), assim expresse:

“Quando estamos sentados na margem de um rio, o correr da água, o deslizar de um barco ou o voo de um pássaro, o murmúrio ininterrupto de nossa vida profunda são para nós três coisas diferentes ou uma só, como quisermos. Podemos interiorizar o todo, lidar com uma percepção única que carrega, confundidos, os três fluxos em seu curso; ou podemos manter exteriores os dois primeiros e repartir então nossa atenção entre o dentro e o fora; ou, melhor ainda, podemos fazer as duas coisas concomitantemente, nossa atenção ligando e, no entanto, separando os três escoamentos, graças ao singular privilégio que ela possui de ser uma e várias”.

 

Tive essa percepção sugerida por Bergson em uma foto que o Júlio – um querido amigo que encontrei em Portugal – tirou de mim às margens do Rio D’Ouro. Eu me inseri em mim, tendo a ampla percepção do todo que me envolvia, mas também notei detalhes da tarde fria que não queria ir embora, do rio em suave deslize, do crepúsculo aquarelado, do meu coração que batia ao sabor dos meus mais iludidos pensamentos... tudo em minha consciência...

Sim! É na consciência, envolta pelas perspectivas éticas e sem julgamentos moralizantes, que as mais profundas percepções de mundo se aninham em nossa mente permitindo-nos escorregar nos diversos fluxos nômades que se manifestam em cada um de nós de forma profunda e inigualável. Talvez, seja justamente dessa forma que os momentos e eventos devam ser considerados em nossa lida diária, como fluxos nômades e narratividades, tadaa, que só podem ter sentido no tempo presente, na vivência do dia-a-dia totalmente protegida dos comentários alheios, mesmo dos que são próximos a nós. Ao entrarmos em um novo dia ou um novo mês – (o que é maio na fila do pão?), não há coisa alguma de nova, a não ser a nossa intencionalidade de viver o aqui e o agora de forma intensa.

Enfim, por que considerar o que não precisa ser considerado? Por que dar valor ao que não precisa ser valorado? Por que importunar-se com os alheios que só sabem importunar? Por que perder a alegria do instante se o que passou, já passou? E se não passou, que passe. Como diria o escritor norte-americano William Faulkner: “...o tempo morre sempre que é medido em estalidos por pequenas engrenagens; é só quando o relógio para que o tempo vive”.

Que o relógio pare! Que o calendário se rasgue! Que as datas marcantes, ou nem tanto assim, sejam consideradas sopros. Enfim, que o amor seja celebrado em sua eternidade no beijo que nunca deveria deixar de existir. Só existir naquela corrente do vento que liga corações distantes a 35 quilômetros.

quinta-feira, 20 de abril de 2023

DIA 15 - Dizendo não à automação em 1000 balões...

 


Eu acredito no princípio ativo da espontaneidade como uma vacina contra toda e qualquer forma de automação do ser humano. Embora sejamos livres para vivermos as nossas experiências e tomarmos as nossas decisões, todos os dias somos convidados a robotizarmos as nossas ações dentro dos contextos sociais aonde vivemos os mais diversos processos. A perspectiva da automação parece ser uma convidativa porta aberta em nossa vida pessoal conduzindo-nos ao abraço à rotina.

Desde a dinâmica família até a estrutura do ambiente de trabalho a rotina se manifesta como companheira, marcando-nos pela mesma repetição das atividades corriqueiras. São poucas as vezes em que temos a oportunidade de recriar as nossas próprias ações e viver coisas que fazem um novo sentido em nossa dinâmica existencial.

O Grande Mestre da espontaneidade, a meu ver, é o médico romeno Jacob Levi Moreno. Ele é o pai do Psicodrama, que se caracteriza por uma abordagem psíquica baseada no teatro espontâneo. Ao criar o Psicodrama, Moreno enfatizou as profundas dinâmicas subjetivas e coletivas que envolvem a espontaneidade e a criatividade, elementos fundamentais para a vivência humana, favorecendo a projeção humana para uma nova realidade de bem-estar.
É importante situar que o conceito de espontaneidade em Moreno tem a ver com a questão da adequação. Pessoa alguma pode ser espontânea e sem limites. Toda liberdade precisa ser equilibrada pelos limites. Assim, toda e qualquer atitude marcada pela espontaneidade precisa considerar os parâmetros dessa ação.

Todavia, como somos seres limitados pela nossa corporeidade, pelo tempo e pelo espaço, a criatividade se atrela à espontaneidade para possibilitar atitudes extremamente novas diante de contextos que parecem bem resolvidos. Não precisamos deslindar as nossas vidas em ações deslocadas de uma realidade vivencial, mas podemos evidenciar uma série de cenas e ações psíquicas que possibilitem a contemplação de  outros mundos mais coerentes com as nossas expectativas.
Curiosamente, enquanto escrevo este texto, recebo a notícia de que hoje se completam 15 anos do desaparecimento do padre Adelir de Carli. O referido padre ficou conhecido por voar com 1000 balões, cheios de gás hélio, do Paraná até o Mato Grosso do Sul. Ele queria arrecadar uma quantia de dinheiro para construir um hotel para abrigar os caminhoneiros na região do Paranaguá, no litoral do Paraná.

Infelizmente, apesar de toda a sua experiência com voos e saltos de paraquedas, o referido padre acabou enfrentando uma tempestade tropical, vindo a  desaparecer no mar, sendo encontrado somente sete meses depois no litoral do Estado do Rio de Janeiro.

Certamente ele vai ficar registrado na memória de todo e qualquer brasileiro que teve a oportunidade de conhecer a sua história. Hoje, passados quinze anos, ele é relembrado como o “padre do balão”. O seu ato certamente foi um ato espontâneo e criativo. Ele ousou fazer o voo por conta dos conhecimentos adquiridos ao longo da vida. Quis arrecadar dinheiro de uma forma inusitada, mas a situação saiu do controle. Seu legado continua entre nós.

Não vou entrar no mérito quanto a decisões certas ou erradas tomadas por ele. Não cabe a qualquer um de nós um julgamento. Ele fez o que acreditava e isso é o que importa.

Mas passo a refletir com os meus botões: Será que em nossos cotidianos não precisamos também fazer os nossos voos inusitados com balões? Obviamente, não precisamos ir às últimas consequências, vindo a  enfrentar situações intempestivas, mas criarmos possibilidades novas que nos afugentem daquilo que é tão concreto, tão cartesiano, tão lógico e tão matemático.
Enfim, eu acho que podemos acreditar um pouquinho mais em nós mesmos em nossas potencialidades pessoais. Indicarmos a nós mesmos os nossos limites com a finalidade de alcançarmos novos tônus vitais em nossa dinâmica existencial, afinal de contas, como sempre gosto de refletir, a aventura da vida é inédita e precisamos experimentar coisas novas todos os dias, de preferência.

sexta-feira, 14 de abril de 2023

DIA 14 - O inferno sou eu

 


Todos os que já tiveram a oportunidade de conhecer previamente o pensamento do filósofo francês Jean Paul Sartre sabem muito bem da sua assertiva: “o inferno são os outros”, presente na peça teatral “Entre quatro paredes”. Nesta peça Sartre apresenta-nos três personagens: Garcin, Inês e Estelle. Os três estão presos em uma sala sem janelas – uma espécie de inferno sartriano. Além das três pessoas, existem três canapés, uma estátua de bronze e uma lareira. Dentro da sala é dia o tempo todo e os olhos precisam ficar diuturnamente abertos. Obviamente, em um cenário como esse, os desafios relacionais são contínuos e o cansaço emocional extenuante. Cada personagem possui uma personalidade distinta e as aproximações se dão, vis-à-vis, numa contínua perturbação onde há um revezamento entre as posições de vítimas e carrascos. Os olhares intercruzados de cada um dos três referenda a existência de cada qual ao mesmo tempo em que vaticina a debilidade que cada um percepciona em si mesmo. A trama se desenvolve em seus encontros e desencontros entrechocados até o momento que em um embate mais acirrado, Garcin solta a célebre frase: “O inferno são os outros”.

Mas, por que o inferno são os outros?

Em nossa percepção e leitura, diversos aspectos são possíveis de ser elencados na referida peça. Sartre se utiliza de um enredo surreal para considerar a dinâmica das relações que ocorrem nas ambientações sociais. De fato, o olhar do outro sobre nós em um determinado ambiente sugere a incidência de uma série de desconfortos. A maneira pela qual nos vemos estampados nas faces, nas críticas e nos conceitos das pessoas que nos circundam, provoca em cada um de nós uma série de inquietações diversas. Na maioria das vezes, nos vemos e não gostamos do que vemos. É como se o outro oferecesse a nós um espelho onde a nossa própria imagem se projeta, dissociando-nos de nossa própria certeza. Ao mesmo tempo e de certa maneira, aquele que se oferece como espelho acaba julgando a existência alheia, bem como as formas de condutas de um. Tudo isso coloca o ser humano no entroncamento entre os subjetivos encontros e desencontros com o seu próprio eu.

Inspirado nessa peça de Sartre, eu resolvi enfocar o prisma que realmente me importa: “O inferno sou eu”! Sei que essa frase pode até provocar uma inquietação pessoal e subjetiva, mas ela é honesta!

Tenho por mim que cada pessoa deveria se observar e se percepcionar com vias ao autoconhecimento. Ver-se e aceitar-se em suas contradições é um caminho sumamente importante para o bem-estar. Lembro-me da célebre frase do filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955): “Eu sou eu e as minhas circunstâncias”. Nela, o referido filósofo entende que a vida se encontra em um contínuo processo de mudanças. Seu sistema filosófico baseia-se no que chamou de razão vital, ou seja, a ideia de que a racionalidade é uma função da existência e abarca as condições físicas, sociais e psíquicas de cada sujeito. O ser humano vive e interage com o mundo como um sujeito ativo em meio a diversas circunstâncias. Desde o nascimento até a morte, o ser humano vive os movimentos do aprendizado no arcabouço da vida social. Acresce-se a esse sucinto toque tangencial a uma frase do filósofo espanhol a constatação que brota em minha própria consciência de que estamos todos, querendo ou não, nos diversos relacionamentos que ocorrem nos nichos socioculturais marcados pela diversidade.

Infelizmente, estamos acostumados a julgar as pessoas ou lançar críticas ao outro sobre as questões que nos incomodam individualmente. Obviamente, é bem mais simplório colocar o dedo em riste e afirmar que o outro é o culpado quanto a eu viver esta ou aquela vida, esta ou aquela situação, a me assumir. Todavia, sabemos que aceitar que a culpa é do outro significa abraçar uma mentira. Como se diz popularmente: “Mentira tem perna curta”. Acho que essa mentira nem tem pernas, pois na página dois teremos plena consciência das contradições e circunstâncias que nos envolvem. Chegarei à nítida constatação de que o “inferno sou eu”! E pessoa alguma poderá me retirar dessa posição incômoda. Tornamo-nos mentirosos se não assumimos vivamente a nossa responsabilidade frente à nossa liberdade. Somos seres livres, inclusive para escolhermos os caminhos de nossos aprisionamentos.

Enfim, eu não gostaria de estar entre as quatro paredes de Sartre, mas estou. Independente do que pensarem a meu respeito ou dos pretensos julgamentos que me ferirem, vou celebrar o meu próprio caminho amando, dando vexame e sendo ridículo no que eu faço. Só tenho compromisso comigo. Daqui a cem anos, pessoa alguma se lembrará de mim. Sou, como poetizei recentemente: “Eu... Num incêndio, chama miúda. Cristalina gota num mar. Poeira livre, partícula, vento. Húmus terra, sangue a pulsar. Mistura fina que respira amar”.  Sinto-me assim: uma parte no todo, no charco, um lodo. Sei que quanto mais claro eu for sobre mim mesmo, mais terei a oportunidade de me oferecer e me encontrar. Acho que eu vou sair por aí estampando e desfraldando a bandeira de que de fato eu sou o meu próprio inferno. E tenho dito.

 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

DIA 13 - O significado da Páscoa para os cristãos



Os cristãos celebram a Páscoa anualmente. Essa é uma data memorável cuja reflexão favorece o renascer na esperança. O evento pascal, que vai além da celebração do domingo é, também, um tempo de saberes e sabores.


Saberes

A Páscoa possui muitos saberes que orientam a vida e as demandas relacionais das pessoas. Esses saberes originam-se no sentido da palavra hebraica “pessach" que significa, por um lado, o ato de manquejar ou de dar pequenos saltos e, por outro, passagem. Independente da dualidade da definição, importa afirmar que a dimensão do que concebemos por Páscoa leva-nos, necessariamente, a pensar em movimentos que ocorrem no caminho da vida.
A páscoa ganhou um peso importante no evento fundante da nação Israel: o êxodo. A passagem da escravidão para a libertação. Este foi o processo que culminou com a fuga dos pré-israelitas do, celebrado com a imolação de um cordeiro e a reunião familiar num ato memorial de suma importância para as crianças e para os anciãos à época. Estes contavam histórias sobre os acontecimentos que culminaram na nova dimensão de vida. Nesse processo de libertação, a celebração familiar era também um culto ao Deus da vida.
Outro saber a ser evidenciado em um período posterior se deu com a ressurreição - base da fé cristã. Pensar a ressurreição de Cristo é um ato de fé. É através da ressurreição que compreendemos o amor de Deus amor, pois Ele não aceitou a morte de seu Filho e o ressuscitou.
Poeticamente, refletindo sobre os sabores da páscoa, nos vemos diante de janelas abertas que nos ajudam a vencer os problemas difíceis da vida. O evento da ressurreição nos ensina a compreender que o fim pode não ser o fim, e que há sempre novas possibilidades de vida diante dos sinais de morte. A ressurreição é um importante saber para os cristãos. É a passagem do caminho tortuoso nas areias escaldantes do deserto para a trilha em mata atlântica à beira mar. É a saída do túmulo frio para o domingo de sol.

Sabores

Páscoa também é composta de sabores. Não somente os saborosos ovos de chocolate e os deliciosos quitutes do almoço de domingo, mas também os elementos que compõem a memória do povo judeu e de outros povos de tradição cristã. O escritor Rubem Alves disse duas frases interessantes sobre os sabores: “dize-me o que tu comes e eu te direi quem és”; e “Como, logo existo”, numa clara analogia ao "cogito" do filósofo René Descartes. Podemos pensar que o que nós comemos tem a ver com a nossa experiência existencial e com a cultura que vivemos. Tenho tido a satisfação de andar por esses brasis e saborear suas culturas e povos. Já saboreei também os sabores das culturas além-mar. Gosto dos sabores que constroem gentes e humanidades por esse mundão de meu Deus.
Assim, diante dessas singelas argumentações, podemos afirmar que os sabores da Páscoa têm a ver muito mais do que com chocolate, coisa que gosto muito, mas com uva, vinho, pão e peixe. A páscoa se estabelece pelos sabores simples e inigualáveis desses elementos. Acho que as nossas celebrações familiares deveriam vir acompanhadas de múltiplos tipos de uvas: rosadas, Itália, rubi, moscatel; regadas com vinho carbenet sauvignon, de preferência; pães, desde os ázimos, passando pelo tradicional pão francês ou pão de sal, até aqueles que são apelidados com a singela metáfora de "sonho". E, por fim, peixes: a traíra frita, a moqueca capixaba de badejo ao molho de camarão muitos camarões, o filhote com azeite, a pescada amarela, a traíra sem espinhas e, até mesmo, a sardinha em lata na mesa de um boteco.
A Páscoa é, assim, um tempo de saberes e sabores. Eu, particularmente, gosto dos saberes e gosto dos sabores. O importante, entretanto, é de celebrar as passagens da vida com vistas à dinamicidade da esperança.

DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

  Quando eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado c...