quinta-feira, 28 de setembro de 2023

DIA 41 - Das intuições que alicerçam os assombros dos dias

 

Tenho aprendido a respeitar as minhas intuições e os meus pensamentos cheios de convicções, principalmente quando tenho que tomar decisões mais complexas. O referido respeito nasceu por conta de uma questão bem pessoal alusiva a mim mesmo e aos meus desejos. Passei a acreditar no pensamento espontâneo que sinalizava o melhor caminho a seguir. Respeitando a minha intuição, percebi que as coisas aconteciam bem mais leves. Quando não, acabava vivendo um infortúnio em minha própria trajetória existencial.

Em um desses dias corriqueiros da semana, quando eu rumava para o meu ambiente de trabalho, acabei buscando outra rota que passava por uma estrada de terra e em meio diversos povoados rurais. Fiz este trajeto de carro investindo tão somente na minha pura contemplação.  Aproveitei o máximo todo aquele trajeto a fim de repensar ou reorganizar meu bem-estar. Eu queria ampliar a minha sintonia com o cosmos, e foi isso o que aconteceu. Curti cada instante dirigindo suavemente o carro com as janelas abertas, recebendo os beijos da brisa fria matinal. Contemplei todas as tonalidades de verde, visualizei riachos, lagos, ao mesmo ao mesmo tempo em que ouvia os sublimes cantos das aves mais diversas.



Não nego que os meus olhos se encheram de encantamento naquele momento de eternidade. Tive a oportunidade de estabelecer aquilo que muitos chamam de higiene mental. A natureza em sua majestosa rudeza abraçou-me de forma carinhosa e aconchegante. Foi um momento ímpar para mim. Talvez eu nunca me esqueça dos sentimentos que se formaram em meu interior.

Infelizmente, muitas pessoas perdem as belezas do cotidiano por conta das suas correrias sociais. Não permitem a sintonia ou mesmo a simbiose com a natureza. Encontram-se tão chafurdadas em suas demandas que não conseguem sequer respirar o ar fresco ou sentir as fragrâncias que se espraiam na atmosfera. Acho coerente pensar que nem tudo é compromisso ou trabalho. A vida é dinâmica e requer mais brincadeiras e suavidades. É fundamental pensarmos a possibilidade de salvaguardarmos um tempo para visualizar o que realmente importa em nossa natureza humana, a saber, acolher as dinâmicas da vida que se encontram muito além do nosso cotidiano automatizado. Confesso a todos que, para mim, o encontro com a natureza foi extremamente importante e renovador.
Todavia, mal sabia eu que o dia que se descortinava prometia uma série de percalços e enfrentamentos. Além dos meus atendimentos no setting terapêutico, enfrentei duas inusitadas interferências nas rodovias em que me desloco todos os dias.  Assim que eu saí da rota de terra, peguei o asfalto em direção ao município de Coronel Pacheco – MG. Quando estava chegando, deparei-me com um grande engarrafamento. Eu já havia percebido que eram escassos os veículos na estrada. Com um bom humor instalado pelo trajeto evidenciado anteriormente, achei até que todos tinham sido abduzidos. Na verdade, ocorreu um acidente na Vila de Santa Rita no referido município. Dois cidadãos se envolveram no sinistro: um de moto e outro em um Uno. Ainda bem que, embora os ferimentos decorrentes, ambos escaparam com vida.

Com o trânsito completamente paralisado, acabei chegando atrasado ao ambiente de trabalho. Embora externando a minha solidariedade  aos acidentados, passei aos atendimentos clínicos. Já era sexta-feira e devidos aos eventos alusivos à Campanha do Setembro Amarelo – um em Ribeirão de São José, outro em Coronel e outro, ainda, no Centro Universitário Estácio JF, além de algumas sessões mais complexas e desafiantes, ainda visitou-me o cansaço físico. Depois das 14h, quando me retirei do município e me destinava aos atendimentos psicoterápicos, deparei-me com um comboio. Diversos veículos de apoio e um caminhão carregando um transformador gigante, ocupando duas pistas da estrada. Gastei 50 minutos em um percurso que levaria 12 minutos. Este infortúnio atrasou as minhas consultas.

Depois dos meus atendimentos, lá pelas 21h, eu recebi uma mensagem pouco usual para acompanhar um amigo querido no seu pós-cirúrgico. Eu teria que passar a noite como acompanhante e assim desenvolver um pouco mais a solidariedade e a gentileza tão necessária neste mundo insensível. Não podemos deixar que os cansaços dos dias, das tardes e das noites nos impeçam de estar junto às pessoas queridas, especialmente quando de infortúnios. Resolvi passar a noite e perceber as horas passando lentamente, enquanto fingia dormir. Em meio à madrugada, remexi os meus pensamentos, chegando à constatação de que estamos continuamente na montanha russa. A princípio, tudo tranquilo. Na sequência, altos e baixos.

Enquanto escrevo este texto, tenho diante de mim o Rio Paraibuna que corta a cidade de Juiz de Fora, onde resido. Ele suavemente desliza as suas águas em seu leito, refletindo o céu azul sem nuvens e as árvores e arbustos que o cercam. Desliza suavemente em meio a selva de pedras, parecendo analisar a vida corrida e zoada da cidade. Pessoas correm, caminham, se exercitam, enquanto outras lutam pelas suas vidas em seus leitos hospitalares. Enquanto tudo acontece, o rio segue o seu fluxo sem pressa. Seu caminho está traçado, mas existem novos obstáculos. Talvez, o rio e seu percurso sejam umas das grandes metáforas encontradas para o melhor entendimento de quem somos e o que fazemos neste mísero planeta.



Em meio a tantas correrias percepcionadas, a sexta e o sábado se viram envoltas pela morte da jogadora de vôlei Walewska Oliveira. Recebi a notícia com muita tristeza e com um peso a mais, pois eu havia discutido e conversado sobre as temáticas do desespero e da autodestruição durante toda a semana. Como um profissional envolvido com a saúde mental do meu município, sabedor dos dilemas que estão presentes na vida de cada um de nós, eu fiquei muito consternado com o fato.



Não sei detalhes da vida da atleta, mas é certo que a depressão, à qual todos nós estamos sujeitos, é muito silenciosa. Eu acho que aos primeiros sinais de tristeza ou encontros com as dificuldades para a compreensão da existência, cada qual deve investir em psicoterapias e tratamentos psiquiátricos, quando necessário. É preciso que as nossas caminhadas reflexivas, especialmente aquelas que consideram a vida como ela é, sejam equilibradas em nossa dinâmica diária, possibilitando que as nossas angústias sejam acolhidas da melhor maneira possível em nosso interior.

Da minha parte, continuarei a seguir as minhas intuições. Acho que não perco coisa alguma com isto.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

DIA 40 - Ipês, girassóis e o suicídio no espectro dos tons amarelos – Para não dizer que não falei de setembro

 


Não há nenhuma relação intrínseca entre os ipês amarelos, os girassóis e o suicídio, mas curiosamente, em setembro, mês em que espocam as flores da citada árvore, anunciando a chegada da primavera, somos também convidados a pensar sobre as ideações e comportamentos suicidas, frutos dos múltiplos desesperos e depressões tão presentes e tão próximos a nós. Os ipês amarelos e suas flores tão brilhantes, em sua inerente experiência de “quase morte”, nos convidam também a pensar este aspecto que muito nos afronta, especialmente quando consideramos a vida e existência.

Segundo informações que circulam na internet, o setembro amarelo surgiu de uma situação trágica que atingiu uma determinada família nos EUA no ano de 1994. Conta-se que o adolescente Michael Emme, de 17 anos, provocou a autodestruição ou suicídio, dentro de um Mustang 1968, customizado e pintado por ele mesmo com a cor amarelo brilhante. No dia do seu enterro, os pais distribuíram um pequeno cartão com uma fita amarela afixada. No cartão estava escrita a seguinte mensagem: “Se precisar, peça ajuda”. Nasceu ali, a Associação Yellow Ribbon – Fita Amarela, que passou a conscientizar as pessoas quanto aos cuidados necessários, especialmente frente aos transtornos, síndromes e depressões. No Brasil, pessoas que possuem ideações ou comportamentos suicidas podem fazer contato com o Centro de Valorização da Vida, pelo telefone 188. Este centro fica disponível em rede pelo período de 24 horas.

Pensando nas contigências que nos acompanham, cabe-me respaldar as minhas argumentações com a ideia de que não podemos negar o fato de que estamos expostos à múltiplas fragilidades. Somos humanos e não super-heróis. Temos as nossas debilidades e precisamos cuidar de cada uma delas de uma maneira única e atenciosa.

Ao mesmo tempo, precisamos destacar a realidade intrínseca à nossa provisoriedade existencial. Não há pessoa alguma que possa se considerar plena e eterna. Todos nós, querendo ou não, somos provisórios como as flores dos ipês amarelos. Em relação ao todo do universo, a existência de cada um de nós é uma espécie de bolha de sabão – que cresce ao sopro e flutua brilhante, vindo a estourar efemeramente. Ademais, vivemos a vida em sua complexidade e, muitas vezes, somos aturdidos por uma série de demandas que nos agridem. Um dia, todos nós vamos morrer. Alguns, infelizmente, não suportam a sua existência atual e resolvem finalizar as suas trajetórias, mediante uma interferência intensificada marcada pela autodestruição. Somos todos como flores que murcham e caem. O cuidado que temos para com as pessoas não pode ficar restrito somente ao mês de setembro.

É fundamental ressignificarmos nossas trajetórias, reconhecendo as nossas efemeridades, impermanências e fragilidades emocionais, cientes das complexidades afetam a cada um nós. Absurda é a vida em sua inteireza e em suas fatalidades. Absurda é a existência que insiste em ser quando não há possibilidades para ser. Absurda é a finalização da existência, num último ato chamado convencionalmente de morte. Embora a morte seja a presença mais viva e insistente a visitar o cotidiano, não podemos perder de vistas o fato de que somos especiais dentro do cosmos e, talvez por esse motivo, compreendamos a morte com mais tragicidade e angústia.

As coisas acontecem com todos os seres vivos, muitas delas, sem as mínimas explicações. Diante do fatídico momento em que o facão amolado ceifa o caule, fazendo jorrar a seiva, a garganta resseca, a lágrima é vertida e a saudade – vontade de estar perto, se longe, e mais perto se perto, é violentada pelo acaso, pelo infortúnio, pelo que pessoa alguma espera.

O cotidiano se rompe, desfazendo tudo o que é concreto. O perfume das flores deslocadas dos seus galhos, fincadas na água de um jarro, dá lugar a um odor fétido. O belo deixa o palco, abrindo as cortinas para o horrendo. Todas as cores e poesias ficam opacas e sem brilho. Faltam luzes e os pássaros cessam os seus cantos e encantos. Tudo fica desinteressante, mesmo o sorriso da criança não provoca o encantamento. O sopro da vida é tão passageiro quanto fugaz, e as ondas da ressaca inundam o arquipélago do contentamento. Tudo se esvai, como águas nas conchas das mãos. Os por quês continuam a insistir pelas respostas. Elas se recusam a sair dos claustros profundos das cavernas pluviais. Instaura-se um vazio cheio de palavras silenciadas que jamais serão pronunciadas, pois no fundo de toda alma aterrada pelo infortúnio, não há o que dizer.

Por isso, em horas de infortúnio, recorremos à sabedoria dinamizada do momento vivencial, mesmo em meio a dores lancinantes. Não há canções, poesias e preces suficientes que possam ajudar nessas horas. Continuamente, somos convocados a abraçar quem precisa ser abraçado, a chorar as dores das dores, sem julgamentos, a contemplar os ipês amarelos que espocam em amores e a olhar a lua cheia. Ela insiste em brilhar entre as nuvens densas e turvas. Em setembro, amarelo ou cinzento ou mesmo em qualquer ano, mês ou dia, havemos de recorrer a um mínimo vestígio de esperança...

 

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

DIA 39 - A beleza do ipê amarelo e suas lições para a vida

 


 

Gosto de viajar. Gosto mais ainda de observar as belezas naturais que se revelam pelas janelas dos veículos diversos: ônibus, trens, automóveis, navios ou aviões. Gosto, especialmente, do visual liberto provocado pelas trilhas feitas com a minha bicicleta, mas invejo os aventureiros que, mesmo levando uma vida marcada por altos e baixos, singram montanhas e vales, abismos e cachoeiras conhecendo relevos, climas, naturezas, animais e gentes diversas.

A ideia de um visual liberto tem a ver com a entonação do olhar, melhor dizendo, com o desenvolvimento da contemplação em todas as nuances do cotidiano. É fundamental que nosso olhar esteja fixado à concretude dos corpos em ação no enfrentamento dos dilemas corriqueiros, sempre ajudando-nos a vivenciar a maior expressão de nossa humanidade: a espontaneidade para sermos e vivermos a nossa melhor versão, dentro dos limites que nos forem propostos.

 

A poesia natural e o meio ambiente

Em minhas viagens, encanto-me com a poesia colorida, revelada e expressa pela natureza e pelos seus respectivos biomas. Infelizmente, lugares lindíssimos estão sendo violentados pelos seres humanos, detentores do poder econômico. É o caso da nossa floresta amazônica e do pantanal. Sofremos quando visualizamos o meio ambiente ser atacado de diversas maneiras. Choca-nos, por exemplo, quando nos chega às narinas o odor das queimadas que destroem a vegetação, os animais, a água e a própria terra. Seres humanos, de todos os lugares deste planeta, devem denunciar as referidas afrontas e desenvolverem uma atitude mais cuidadora para com o meio ambiente. De qualquer forma, independente destas distorções presenciadas por cada um de nós, a natureza e o meio ambiente são nossas ambientações mais efetivas. O planeta e sua natureza são os quintais das nossas casas.

 

A beleza do ipê amarelo e suas lições para a vida

Preciso confessar que a poesia que mais me encanta, entre todos os seres vivos nos mais distintos biomas, é o ipê amarelo, uma árvore brasileira bastante conhecida e muito bela. Ela se encontra presente em todas as regiões do Brasil e pertence ao grupo das Tabebuia alba.

As árvores desta espécie proporcionam um belo espetáculo com sua esplêndida floração na arborização de ruas e matas. Elas embelezam e promovem um colorido no final do inverno, anunciando a chegada da primavera. Essa árvore é natural do semiárido alagoano e levou o governo deste estado, por meio do Decreto nº 6239, a transformá-la em árvore símbolo. Em fins de setembro, os ipês revelam suas belas cores, numa espécie de “epifania” – uma aparição inusitada na terra dos viventes.

Curiosamente, é o estresse causado pelo frio e pela seca que aciona o relógio biológico das árvores, indicando o florescimento. É de uma experiência de “quase morte” que surge a beleza das flores dos ipês anunciando sua beleza comovedora. Do frio e da seca surgem flores exuberantes e seus tons que fazem os olhos sorrirem. As flores atraem abelhas e pássaros, principalmente beija-flores. As sementes espalhadas pelos pássaros são semeadas pelos ventos.

 

Da contemplação à existência

O que mais me espanta é o fato de que estes ipês, na maioria das vezes, se encontram solitários. Independente da forma e do tamanho de sua copa, os ipês são seres lindíssimos que nos convidam à contínua contemplação. Parecem convocar cada alma ao despertar das emoções e sentimentos mais aprofundados. Talvez, por conta da minha leitura mais atenta à obra de Rubem Alves, eu tenha me sentido mais tocado quanto à beleza dos ipês amarelos, suas árvores preferidas. Ele via estas árvores como sacramentos. Em suas palavras: “Penso que os ipês são uma metáfora do que poderíamos ser. Seria bom se pudéssemos nos abrir para o amor no inverno. Corra o risco de ser considerado louco: vá visitar ipês. E diga-lhes que eles tornam o seu mundo mais belo. Eles nem o ouvirão e não responderão. Estão muito ocupados com o tempo de amar, que é tão curto. Quem sabe acontecerá com você o que aconteceu com Moisés, e sentirá que ali resplandece a glória divina”. (As Cores do Crepúsculo, 49). Cabe salientar, encerrando momentaneamente a inspiração deste autor de Boa Esperança, que o logotipo do Instituto Rubem Alves é um ipê amarelo. Amarelo era, também, a cor preferida de Van Gogh, que pintou múltiplos girassóis, minhas flores preferidas.

 

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

DIA 38 - O ócio pelo ócio - cuidados em tempos de fadiga

 


Reconheço-me continuamente como um profissional da saúde mental. Desenvolvo as minhas atividades como psicólogo, seguindo uma linha chamada Humanista-Existencial. Todos os dias, eu me envolvo em conversas ativas no campo social, bem como no atendimento clínico psicoterápico em um setting terapêutico.

Entendo que toda e qualquer pessoa presente em uma sociedade desenvolve o seu papel social. Entendo também que os profissionais da área de saúde mental, além de desenvolverem seus respectivos papéis, também se envolvem em  demandas que se encontram para além do que poderiam ou deveriam se envolver. Ora, toda profissão requer um nível de entrega, mas a entrega de um profissional da saúde mental é de uma ampla intensidade, pois marcada por uma escuta atenciosa eivada de múltiplas interpretações simbólicas. Nem sempre o que o cliente traz em suas demandas iniciais é o que, de fato, importuna a sua interioridade.
Por conta de todo esse movimento de idas e vindas, partidas sem chegadas ou absolutos, os profissionais de saúde mental adquirem uma fadiga bem complexa e inusitada, pois inquirem sobre um terreno gelatinoso. Sabedor desta realidade, eu separei um tempo de reclusão para mim mesmo. Em virtude das múltiplas ações desenvolvidas nos dias, tive a necessidade de estabelecer uma pausa das atividades com a finalidade de melhor me organizar intimamente.

Eu sou daquelas pessoas que nunca tive um problema efetivo de ordem psíquica, um que me levasse, por exemplo, a um tratamento psiquiátrico. Bati na trave algumas vezes, é verdade, mas por conta do meu investimento na psicoterapia, permiti-me múltiplas ressignificações dos tempos idos e dos vários eventos vivenciados ao longo de minha historicidade, inclusive vencendo uma Síndrome de Burnout – um conjunto de sentimentos ligados diretamente ao ambiente de trabalho e suas frustrações. Com a psicoterapia, passei a respeitar um pouco mais tudo aquilo que era sinalizado em meu próprio corpo. Alinhada às demandas básicas biológicas, como beber, comer,  dormir e transar, eu entendi que era fundamental cuidar das explosões das minhas emoções, visando o equilíbrio saudável dos meus sentimentos, naquele lugar reconhecido como consciência.

Confesso que quando eu gozava do meu momento de pausa,  descanso e relaxamento, eu procurei provocar um refazimento da minha própria experiência de vida. Eu sei que para aqueles que são inquietos com a vida e com as suas polissemias, trona-se muito difícil pausar as atividades cotidianas, todavia ela é fundamental para a recuperação do corpo e da saúde psíquica. A melhor forma de descansar a cabeça é tentar não fazer coisas que habitualmente são feitas. Então, assim eu fiz. Deixei o vento me conduzir sem qualquer preocupação com um êxito ou sucesso, sem nenhum intento por arcar com um compromisso. Procurei efetivar o que costumeiramente eu não faria, fazendo o meu sabbath shalom, mesmo sem ser judeu. Um dos meus grandes ganhos neste tempo de pausa foi gozar cada instante como um instante de desfrute. Foi muito prazeroso caminhar sobre o sol, especialmente ao final da tarde, expericiando as cores brilhantes do crepúsculo. Caminhadas e contemplações podem ser consideradas bobinhas para muita gente, mas para mim são fundamentais. Elas me ajudam a fugir dos processos de automação, enfrentados na lida diária. Através delas, eu redescubro as potencialidades do viver e reencontro as perenes riquezas do equilíbrio e do bem-estar.

Foi muito bom chegar ao final desse período com a cabeça mais leve e com os sentimentos bem mais soltos. Tranquilidade e sentimentos esvoaçantes como pássaros selvagens são vitais para a dinâmica do pensamento. Dessa forma, eu voltei ao meu trabalho com outra perspectiva, outro “astral”.

Infelizmente, muitas pessoas acham que as demandas cotidianas precisam ocupar a cabeça com outras atividades pesadas. Não poucas vezes, eu ouço as pessoas se achegarem a mim, dizendo que precisam fazer isto ou aquilo para mudar o foco, o pensamento. Eu até entendo a boa intenção da pessoa a e sua vontade de distrair o pensamento com outras atividades, mas isso não é garantia de que os problemas serão desfocados.

A meu ver, muitas das nossas demandas se resolvem quando temos a oportunidade de pausar a vida e todas as suas experiências para nos encontrarmos com o sentido mais internalizado de nossa subjetividade. Quem sabe, nada fazer para experimentar o ócio, o puro prazer de se deitar em uma rede para relaxar, de preferência com meio olho aberto para o mar. Em suma, é importante conceituarmos que fazer coisa alguma na maioria das vezes significa fazer o melhor por nós e para nós. Eu, particularmente, gosto de pensar que através da pausa necessária para o meu viver, dou melhores condições e significados para a ampliação do meu entendimento como pessoa.

Recentemente, perdemos Domenico de Masi, filósofo e cientista italiano, uma grande perda para o mundo acadêmico. É dele a obra O Ócio Criativo (1995). Em que pese todas as boas percepções deste autor nesta obra fundamental, a ideia de que muitas vezes temos que nos contrapor aos mecanismos de trabalho que em geral consomem a dinâmica de nossas próprias vidas, aliada ao fato de podermos fazer o que gostamos de fazer, é a que mais me apetece. De fato, o ócio criativo caracteriza a passagem da sociedade industrial para a pós-industrial, valorizando-se as atividades criativas. O intelectual sobrepondo-se ao manual. Nas palavras de Masi, o ócio criativo é “a síntese entre o trabalho, o estudo e o jogo”. Nesta síntese, o bem-estar precisa ser amplamente valorizado.

Podemos ampliar a provocação e dizer que, em alguns casos, só o ócio pelo ócio mesmo e o descanso pelo descanso, com descaso para os resultados. Em alguns momentos, torna-se fundamental esquecer-se quem se é, onde se está, o que se faz, apertando o famoso “botão” para tudo e todos. Depois, só suspirar com alívio. A vida é boa quando a gente, também, tem a coragem de se desconectar dela.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

DIA 37 - A vida que a gente leva - Das abstrações à concretude

 



A sabedoria milenar sempre se debruçou frente à existência humana para dissecar o sentido de ser no mundo. Os antiquíssimos registros arqueológicos nos revelam elementos substanciais que corroboram com a nossa incipiente afirmação. Com o advento da abertura das bibliotecas em mosteiros e a invenção da imprensa em fins do século XV, obras copiadas e recopiadas dos clássicos gregos se espraiaram pelo contexto Ocidental desembocando na Renascença, onde filósofos, artistas e poetas entenderam que o ser humano poderia ser compreendido ou se autocompreender na metáfora do tempo, num canto qualquer chamado espaço.

Tempo e espaço são grandes aliados dos seres preocupados com a dimensão da existência, propriamente dita. Nestas duas dimensões, inexistentes para todos os demais seres dos distintos reinos, somente o ser humano se ocupa da tarefa de celebrar os múltiplos períodos de investimento físico, emocional e transcendental, evidenciando os elementos cruciais das vivências que ressignificam a vida de cada um no tempo presente.

Ao pensar sobre a ressignificação da existência a partir das vivências, busco provocar um universo de sentimentos no “aqui e agora”, entendendo que neste presente – que é o nosso presente –, condensamos os anos passados e projetamos no campo hipotético da esperança, o futuro que nunca será, pois já é.

É no presente que enfrentamos os desafios diversos e nos esmeramos em múltiplas atividades, abraçando o que deu pra abraçar, fazendo o que deu pra fazer, mesmo quando a crença em nós mesmos não foi possível, devido a diversas contingências do cotidiano.

Neste processo, nos entrechocamos com pessoas diversas que partilham ou não, com a gente, um bocado de pão. Isso fica muito bem ilustrado na expressão musical do cantor Renato Russo quando poetizou:

Mas é claro que o sol vai voltar amanhã, mais uma vez, eu sei. Escuridão já vi pior, de endoidecer gente sã. Espera que o sol já vem. Tem gente que está do mesmo lado que você, mas deveria estar do lado de lá. Tem gente que machuca os outros. Tem gente que não sabe amar. Tem gente enganando a gente, veja a nossa vida como está. Mas eu sei que um dia a gente aprende, se você quiser alguém em quem confiar. Confie em si mesmo. Quem acredita sempre alcança. Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena acreditar no sonho que se tem Ou que seus planos nunca vão dar certo, ou que você nunca vai ser alguém. Tem gente que machuca os outros, tem gente que não sabe amar. Mas eu sei que um dia a gente aprende se você quiser alguém em quem confiar

Confie em si mesmo. Quem acredita sempre alcança”.

 

Essa canção indica a importância da presença de boas pessoas ao nosso lado, embora uma grande gama ao nosso redor seja de gente que não sabe amar. Ao mesmo tempo, enfatiza a crença de que cada pessoa deve acreditar em si, pois dessa maneira alcança o que se espera. Ora, não se trata de um preciosismo em relação à individualidade pessoal, marcado pelo sabor da vitória, mas de entender que é relevante e prazeroso chegar ao cume de um propósito determinado.

 

Diante dessas nossas observações, algumas eivadas de certo teor filosófico, preciso ser um pouco mais pragmático, mesmo porque em minha concepção, é fundamental transformarmos os nossos universalismos abstratos em perspectivas mais concretas. A passagem dos discursos para as práticas se estabelece como eixo fundamental para o desenvolvimento de uma vida mais equilibrada na jornada existencial. Portanto, serei ousado em apresentar algumas considerações pontuais que visam apontar parâmetros para a transição do abstrato para o concreto.

Em primeiro lugar, é fundamental que se acredite no aprofundamento das questões que realmente importam na vida que, por sua vez, não é estática. Aliás, ela é sempre um movimento em contínuas revoluções. Jamais atingiremos determinado patamar em nossa vivência, mesmo porque qualquer pessoa que se sinta no cume do monte, está principiando para si, a ruína. Achar que já se sabe ou se conquistou tudo é arruinar-se rapidamente.

Em segundo lugar, acho que todas as pessoas que vivem no mundo precisam estabelecer uma boa composição entre a vontade de ser o melhor e a humildade. Ora, não podemos nos furtar ao exercício da ambição. Claro que não devemos ser tomados de ambição, mas um pouco dela é essencial para nos tirar do estágio de letargia. Ela não pode ser exagerada, pois daí se torna uma patologia social insustentável. O fato é que precisamos nos esforçar para sermos melhores naquilo que somos ou naquilo que fazemos, sem perder a humildade, tão cara à humanidade. Eu acredito que a boa combinação entre a vontade de ser o melhor e a humildade são fundamentos para o bem-estar de cada qual.

 

Em terceiro lugar, segue a admoestação quanto ao cuidado pessoal. Tudo o que fazemos na vida requer o cuidado do corpo e dos sentimentos. É sumamente importante remir o tempo e aproveitar cada instante como sendo o último. Nesse quadro específico, é preciso que cada um exija de si mesmo o cuidado na dimensão integral da vida. Se o corpo e os sentimentos se encontram na zona do equilíbrio, então, tudo o mais estará em ordem.

E finalmente volto à inquietante pergunta pelo sentido da vida. Afinal de contas, por que nos gastamos em tempos de transformação para almejarmos a dignidade ou algum reconhecimento? Ora, é prazeroso demais ganharmos o reconhecimento de algo ou de alguma coisa que fizemos, mas o principal reconhecimento é o que parte de nós mesmos. Em minha concepção, não existem possibilidades de mensurar os valores que se aglutinam num tempo de conquistas e perdas pessoais, mas é bom quando nos empenhamos em uma ação visando um determinado objetivo, alcançando o resultado dignamente. Em cada pequena conquista cotidiana, construímos o nosso eu e alçamos o sentido de nossa vida que, em suma, é a própria vida que vivenciamos.

DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

  Quando eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado c...