quinta-feira, 26 de outubro de 2023

DIA 45 - Imagens refletidas nas sombras irrefletidas

 


Eu me vejo espelhado, mas nem sempre confortável. Prefiro o reflexo das lagoas translúcidas que acolhe em sua lâmina o céu e as suas nuvens, quando há nuvens. Em qualquer delas, reconheço as distorções e os reflexos do que imagino ser real, se é que existe algo real.

De posse do irreal que me habita, tenho fortes impressões sobre o meu eu e elas não são ideais. Revelam-me as minhas sombras e os levianos espectros do meu doar decantador. Reconheço-me como um doador contumaz, especialmente quando o assunto é o acolhimento às pessoas em suas inquietações mais profundas.

Em todo o tempo, eu procuro o meu gozo fortuito peregrinando nas trilhas do meu segundo (in)sano e passageiro. Como transeunte, saliento o meu egoísmo e me cubro com retalhos de pano azul turquesa. Quero destacar-me na avenida das pirambeiras enquanto me escondo em minha mais íntima intimidade e paraliso as batidas do meu coração.

Dizem-me que eu não posso ser egoísta, somente altruísta. Todavia, cansei-me do altruísmo exagerado e sem tréguas, e me lanço à aventura insana de escalar a montanha sem equipamento de proteção. Será que chegarei ao cume? Não sei e nem pretendo saber. Já tá valendo a rota torta que me entorta a coluna e me faz doer a perna direita. Preparo uma pequena refeição leitosa para me deleitar, com alguns cereais e uma carne de sol.

Eu que não fumo, tento deletar a minha fome com uma lasca de pão quase bolorenta, enquanto ofereço lentilhas a qualquer alma faminta que me dê os seus direitos de fêmea. Não nego o que possuo e persigo o meu dilema emocional, sem saber, de fato, qual ele é. A fêmea no cio.

Sei que o mundo gira tal qual uma montanha russa, daquelas radicais que liquidificam sensações. Eu, igualmente, rodopio em um trilho imaginário e agressivo, soberano. Tudo é meu e eu me completo, me bastando sem me considerar um bastardo. Passo a viver assim, sem fazer nenhum plano para ontem, sequer para amanhã. Aliás, agora é a hora do looping.

Completamente atordoado, passo a percorrer os caminhos que me levam à mina de rubis. Quando retorno de seu subterrâneo, meus olhos se sentem agredidos pelos raios de sol da aurora magistral. Não tenho óculos escuros. Meu grau é grandão. Tais caminhos e jornadas trazem o amor e o poder de volta ao self interior, o que sustenta o egoísmo. Na perspectiva do andarilho, experimentar cenários que se modificam e se transformam continuamente. Mudo com eles e colho o pó em ouro puro. Perdi as contas de quantas vezes eu me perdi em minhas andanças.

Adoro perder-me e subtrair-me. Nunca fui muito bom em matemática. Sempre afoito às artes humanas, minha fascinação. Com o ouro, espalmo as minhas mãos, balanço-as ao ar tentando tocar o horizonte que se esvai, dando lugar à dama da noite. Minha boca calada já não quer calar-se, a língua já foi mordida. Junto aos camafeus, procuro me refazer na saudade.

Às vezes, cai sal na ferida, pandemia que arruína Proteus. Eu grito na gruta, luzeiros acesos, agonia que não cessa. O olhar mais perdido agora tenta contemplar a noite sem estrelas e as mãos cheias de purpurinas douradas que não me deixam rico. Enquanto as pálpebras escondem os olhos que ardem, o cansaço visita todo o corpo. O chão empoeirado convida ao deitar-se maviosamente, sem conforto. A garganta já ressecada requer o líquido límpido, incolor e sem sabor.

Nem tudo é dor, e o momento requer posturas eivadas de vivacidade. Nadar no rio é opcional, mas as águas escondem as pedras lodosas. Contusões e feridas podem ocorrer. Preciso repousar e enquanto assim faço, deparo-me novamente com a minha imagem refletida, agora em uma lápide de granito. Ela ainda está retorcida e eu me contorço em sentimentos e desejos vulcânicos. Minha Nárnia pessoal continua viva.


DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

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