sábado, 18 de abril de 2020

É preciso ter bom humor (Décimo sexto texto)



“O bom humor é a única qualidade divina do homem”.
Arthur Schopenhauer

         Viver é uma aventura cheia de percalços. O tempo todo eu enfrento os dramas diversos que em nada favorecem as boas harmonizações do meu ser interior. Então, não dá para eu viver o cotidiano e suas (in)conclusões sem uma boa dose de bom humor e boas risadas. Aliás, coisa boa é a gente estar em uma roda de boa conversa, tendo um bom contador de prosas, causos e piadas.
         Eu gosto de conviver com gente bem-humorada. Logicamente, eu sei, que por causa das complexidades inerentes aos relacionamentos diversos que todos possuímos, é-nos impossível manter a potência do humor elevada em todo tempo. Tem horas que a pilha perde a carga, o que é absolutamente natural, pois, às vezes, sou surpreendido por situações geradas por outros que me fogem ao controle. Paciência. A surpresa faz parte do jogo no dia a dia e, mesmo quando tudo me parece fechado e sem definições, preciso surpreender a minha alma, olhando-me no espelho, trocando um sorriso com a minha imagem. Eu sei que isso, por si só, não resolve, mas já é um bom começo.
         Minha índole é daquelas onde o humor varia consideravelmente. Em alguns momentos, fico eufórico; em outros me deprimo a ponto de perder meu olhar num espaço vazio. De qualquer forma, em meio a minha rotina na montanha russa, eu sei que não posso deixar a alegria e o bom humor se esvaírem, deixando o cotidiano chato.
         Ao mesmo tempo, não sou daqueles que acham que a gente tem que ficar de boca aberta o dia todo, rindo como um boboca. Aliás, é muito esquisito quando me deparo com gente que fica rindo à toa, às vezes, sem nenhuma causa aparente.
         Pra não fugir muito da regra, o ideal mesmo é buscar a zona de equilíbrio, visando o bem estar da própria existência. E aqui não é abertura para autoajuda. Eu, particularmente, não gosto disso. Pra mim, em especial, o bom humor tem a ver com a forma como minha psique interior se resguarda quanto aos fenômenos que ocorrem no exterior. Assim, o bom humor nasce do bom equilíbrio emocional que é essencial à vida de qualquer pessoa.
         A necessidade de manifestação do bom humor se dá mediante às situações que confrontam o bem-estar pessoal ou social. Todas as vezes que somos agredidos em nossa vida comum, somos forçados à reação. O bom humor, nessa perspectiva é sempre a reação ante ao caótico e, não entendido. Em todos os momentos onde a vida pessoal é posta em xeque, o bom humor se estabelece como uma válvula de escape. E existem os humoristas profissionais que, muitas vezes, exageram em suas piadas, gerando diversos constrangimentos. Isso se dá por causa de uma linha tênue que separa o risível do não-risível. Com isso, chegamos à conclusão de que existem dois tipos de bom humor: o sensato e o ridículo. Ora, o primeiro refere-se ao bom humor que se manifesta de forma equilibrada e não agride pessoa alguma, ao contrário, só provoca o bem-estar e o riso, até mesmo a gargalhada que faz bem para a alma. Já o segundo, cria mal-estar aos ouvintes e aquele sentimento de constrangimento que acaba conflitando os sentimentos humanos. É o caso da piada mal posta num ambiente não preparado para ela.
         A cada dia, fica mais claro para mim que o bom humor é fundamental para o desencadeamento de emoções equilibradas no decorrer do dia. De fato, pessoas bem-humoradas conseguem transpor os maiores desafios do cotidiano sem perder a sensibilidade. Obviamente, existem muitas pessoas que são mestras na arte de celebrar o bom humor. Fazem piadas e contam causos sobre quase tudo. Existem aquelas que são chulas, e vivem em meio a gozações diversas, algumas delas espúrias. Há, entretanto, outras que possuem um humor refinado, favorecendo na dinâmica dos dias, o fluir das palavras e dos gestos pontuais geradores de contentamento.
         Portanto, para se levar a vida com bom humor, não é necessário ser irônico, preconceituoso e sátiro. Tudo bem que essas três dimensões estejam também presentes no cotidiano de todas as pessoas, mas o excesso delas leva ao constrangimento de outrem. O problema é quando ironia, preconceito e sátira interferem diretamente na dignidade da pessoa que é posta numa roda de conversa jocosa. Esse é o caminho para o cômico que acaba desconfigurando o humor. Conheço gente que gosta de fazer gozação com todo mundo, mas quando passa a ser o centro das piadas, fica aborrecida. Mas é assim mesmo! Rir dos outros é bem mais fácil do que rir de si mesma.
         Todavia, é preciso rir de si mesmo! É preciso fazer chacota com o próprio eu. É preciso encarar as dificuldades e vicissitudes da vida com certa dose de alegria, afinal de contas, somos todos imperfeitos! E quando rimos da nossa imperfeição, damos abertura para a aceitação, tão necessária a qualquer pessoa.
         Levar a vida com muita seriedade não é vigoroso para ninguém. O famoso comediante Charles Chaplin certa feita disse: “Através do humor vemos no que parece racional, o irracional; no que parece importante, o insignificante. Ele também desperta o nosso sentido de sobrevivência e preserva a nossa saúde mental!”
         O bom humor nos ajuda a vermos o mundo de outra maneira. Ora, não se trata aqui de repetir o “jogo do contente” realizado pela Pollyanna no famoso clássico publicado em 1913, escrito por Eleanor H. Porter, uma cristã presbiteriana. Basicamente, o livro trata as relações da menina Pollyanna, uma menina órfã de onze anos, com diversas pessoas mais velhas, especialmente com uma tia rica, com quem vai morar. Na sua nova casa, ensina a todos o “jogo do contente”, aprendido com seu pai, que consiste em sempre olhar o lado positivo de todas as coisas, mesmo nas aparentemente desagradáveis.
         Para mim, em especial, bom humor não é jogo do contente. É atitude assumida diante das dificuldades e percalços que a vida nos apresenta. É uma forma de dizer: deu ruim, mas a gente vai dar um jeito de melhorar contando causos, piadas, chacotas e rindo das desgraças que nos ocorrem.
         Ao final das contas, a gente vai perceber que estamos cercados por um monte de bobagens, as mais diversas. O bom humor nos leva a fazer a seguinte pergunta: o que realmente importa para ser contente? Não nos assustemos se chegarmos conjuntamente á conclusão de que bom humor é estar de bem com a vida e com as pessoas, de preferência, numa roda de boa conversa, comida, bebidas, violão e cantorias...

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Simplesmente o amor (Décimo quinto texto)

       
“Tão bom morrer de amor! E continuar vivendo...”
Mário Quintana
        
         Vivo o amor! Sofro o amor! Morro de amor! Ah! O amor, vero amigo e carcereiro algoz! O grande gerador das maiores alegrias e das mais agonizantes tristezas humanas. Cantado e poetizado em diversas línguas e de múltiplas formas. Das emoções humanas, talvez a mais vital. Força maravilhosa que me martiriza, deixando-me inquieto com a vida. O cantor Renato Russo, citando Camões, expressou que “o amor é fogo que arde sem se ver. É ferida que dói e não se sente. É um contentamento descontente”. É um paradoxo sem limites paradoxais.
         Eu, de minha parte, não consigo viver a minha lida sem expressar as dimensões mais profundas do que realmente penso ser o amor. Não consigo amar pela metade ou de uma única maneira. Intento, o tempo todo, amar e amar muito, sem pestanejar. Sinto-me plenamente aberto para o amor e para amar. Louco, com todo o horizonte aberto diante dos meus sentidos, lanço-me ao distinto espaço vazio para amar quem quer que me apareça, como me for possível. De amor em amor, vou sobrevivendo, tentando me resgatar nesse mar de ondas espumantes e calmarias.
         Amor não é substantivo, mas verbo. Precisa ser construído na dinâmica relacional entre gente que se quer bem. Não há porquês e não há respostas. O amor é a conjugação dos mais vivos sentimentos que passeiam no corpo humano, mediante enzimas e substâncias que compõem a sua química.
         Entretanto, eu preciso confessar que, para além da felicidade e do gozo, o amor me deixa triste, fragiliza-me a alma e joga-me na lama. Mas o amor não é uma coisa boa? Não duvido disso! Todavia, é coisa boa que detona os sentimentos dos que se envolvem numa paixão, seja ela qual for. Poetizo num Amor que Insiste:
O corpo é vivamente cremado...
A vida depressa passou!
Valeu a pena viver?
Foi vivo e intenso o amor?

As perguntas chegam tarde.
As respostas nunca virão!
Resta a lágrima no rosto vivido,
E o nada dos passos no chão.

Quando tudo se perde na mente,
Resta a flor que enfrenta o inverno
E o gosto insano da dor.

A alma encontra remanso
Nas letras sagradas do verso
Que insiste querer o amor.

         A insistência pelo amor é fluxo entre as gentes. De um lado, há quem ame; do outro, a incerteza e a ambiguidade, pois o que garante que uma pessoa, de fato, ame a outra?
         Sabe o que vejo? Muitos dramalhões teatrais! Gente que diz que ama, mas não ama. Gente que finge amar e assim vai levando a vida. Gente que nunca soube o que de fato é amar. Faces ocultas da melancolia.
         Por outro lado, junto e misturado com as pessoas, não tenho como controlar o grito do amor na alma. Ele vem e ele vai, tal como a lua em suas fases. Não é fácil controlar a composição química que faz a gente acordar de madrugada e se perder em pensamentos desconexos e insanos. É preciso se manter Longe das Paixões:
Nada mais há de você em mim.
O tempo passou, o tempo voou e eu me libertei.
Não mais estou à beira do caminho.
As flores até perderam o encanto e as nuvens encobriram o sol, mas eu não me importo.
É bom que assim seja. Num momento a gente se enche de amor,
No outro a gente curte o que é dor... O medo se foi...
Paixão é bom porque chega e vai, quase nunca fica.
Eu volto a sorrir, com o corpo isento, sem agonia.
Todavia, tal qual onda do mar, insistirá, voltará... Talvez...
Tudo suporto, pois eu nada controlo.
Sigo cantando a melodia triste que dá alegria.
Beleza profunda que anima minh’alma num instante silente.
O fogo abaixou e as cinzas me deram o presente.
Ele é tudo o que tenho, pois o passado passou e o futuro é incerto.
Abraço a noite que cai. A lua minguante será minha companheira.
E no sombrio volume da madrugada, ando sem eira, sem beira, na rota da ponte que vai do nada ao vazio, pelo simples fato de ir.
Assento-me à beira do rio. Ele vaga calmamente escondendo os redemoinhos do profundo.
Um graveto flutua. Metáfora de mim sendo levado para qualquer lugar,
Longe das paixões...

         De fato, as paixões que evocam o amor provocam dores, as mais diversas e intensas. O pior é saber que não existe uma receita pronta para desfazer os sentimentos ambíguos, desviantes e inimagináveis que se instalam num lugar imaginário chamado coração.
         Além das dores, a paixão do amor sugere fantasias desassossegadas. O pensamento, sob o domínio dessa desordem em evidência, é uma fonte inesgotável de imaginações, na sua grande maioria, pervertidas, que às vezes se plasmam em sonhos. Ainda bem que não existe nenhum instrumento humano para registrar as imagens que nos visitam nos pensamentos e nos sonhos. Mas o que nos impede de realizar nossas imaginações mais pervertidas? Os filósofos me diriam que é a moral. Mas, moral e paixão não combinam. Paixão, pra ser amor, precisa ser imoral. Do contrário, é mera burocracia.
         Desburocratizando o amor no cotidiano, quero vivê-lo como uma grande aventura, formada essencialmente, de idas e vindas, encontros e desencontros. Anseio viver as paixões ao sabor de cada dia, enfrentando os dilemas e os problemas comuns que me fazem um humano ser de contradições. Nesses deslocamentos corriqueiros o amor me lança ao universo tresloucado do sexo.
         Para o equilíbrio de uma vida marcada pelo amor, o sexo, ou a boa resolução deste, é condição necessária para a homeostase emocional.
         Sei que muitas pessoas têm dificuldades pra pensar ou falar sobre o sexo. Sei de gente que só faz o sexo habitual, quem sabe, para manter a relação regulada. Sei de gente que não faz mais sexo. Sei de gente que faz sexo escondido. Sei de gente que acha o sexo sujo. Sei de gente que gosta de fazer sexo, principalmente quando tem liga e pele. Sexo bom não tem pudores. Pode e não pode ficam para escanteio. O combinado e as besteiras entre as partes é o que vale. Sexo tem que ser sujo, instintivo, lambuzado e, surpreendentemente, prazeroso. Obviamente, o prazer é efêmero, passageiro mesmo. Chega e vai. Vai e chega. Que beleza! Já basta. Acontece de forma inusitada e não precisa de validade. É preciso ser mais hedonista e aproveitar os prazeres que o corpo pode oferecer. Acredito que o prazer está presente nas mínimas oportunidades do cotidiano e é inusitado. Ele tem que ser descoberto das melhores maneiras possíveis.
         Se o que desejamos ao outro é o bem-estar real em todos os níveis, então o amor, o sexo, o prazer e a paixão que se manifestam entre as gentes não podem ser ofuscados por parcas percepções. Nos caminhos e descaminhos dos romances, alegrias e tristezas, contentamentos e sofrimentos sempre darão sentido ao que não tem sentido algum. Que nos sobrevenha uma descarga libidinosa. Talvez, por esse motivo intuitivo, Niezstche tenha feito questão de frisar: “Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura”.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

As amizades que fazem a diferença (Décimo quarto texto)



“A amizade não se busca, não se sonha, não se deseja; Ela exerce-se (é uma virtude)”.
Simone Weill

         O poeta Milton Nascimento afirmou certa feita que “amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito, dentro do coração”. Já, outro, o Renato Teixeira, canta pelas paragens das rotas sertanejas que “amizade sincera é grande remédio, um abrigo no mundo”. Cá, no meu canto, sinto as profundas emoções e inspirações que subjazem a essas canções. Fica claro para mim que o desenvolvimento de uma boa amizade é coisa pra lá de boa.
         Por isso, quero continuamente a boa vivência junto aos amigos e as amigas. Quero me assentar frente a uma mesa farta e nutrir minha alma das conversas eivadas de besteiras, as mais diversas. Quero o absurdo da harmonia que favorece o bem-estar em meio ao caos social. Que ninguém compactue das ideias alheias, pois pensar diferente é fundamental. Sejam evidenciadas as contradições, toda a subjetividade e os desejos mais internalizados. Cada um tem a sua vida e os seus problemas, mas a gente se ajunta numa mesa para afogar as mágoas. Na companhia dos amigos e das amigas, não há lugares para o efêmero e o passageiro, pois tudo é efêmero e passageiro...
         No entorno da mesa, importam as pessoas que não querem saber de disputas ou questiúnculas. Somente resiste ali naquele momento de eternidade a boa conversa, misturada a risos e gargalhadas. De fato, não há nada mais prazeroso do que sentar-se à roda com alguns petiscos e bom vinho para celebrar histórias e rir com amigos e amigas. Se tiver um violão e uma música bem cantada, tudo fica quase perfeito! Nesse tempo onde as prosas e as poesias enchem o ar, permanece a vontade intensa de abraçar as pessoas, cuidando delas de uma forma carinhosa e sofisticada. Eis o grande legado oriundo dos momentos marcantes da trajetória comunitária, afinal de contas, a única coisa que prevalecerá em nossa fugaz jornada de vida são as amizades que constituímos.
         Entretanto, quando me deparo com as más resoluções relacionais, principalmente quando pessoas insanas querem se dar bem em cima das outras, fico boquiaberto. Num processo, onde muita gente se veste de insanidade, buscando a frugalidade do sucesso e do status – duas grandes bobagens que se constituem em vazios herméticos – não consigo reconhecer uma pitada de humanidade. Não conheço pessoa alguma em minha jornada de vida que, tendo tido êxito em algum momento de sua parca existência, e que se lança numa busca desenfreada por sucesso e status, alcance o êxito com dignidade. Ao contrário, vejo que a busca pelo glamour requer um alto grau de comprometimento e exigência, transformando pessoas alheias em coisas e objetos. Conheço, igualmente, os exemplos de pessoas que tendo galgado um terreno de grandes possibilidades na vida, acabaram se perdendo na avenida da bancarrota. Triste fim para aqueles que acharam que, por intermédio do sucesso e do status, poderiam ser reconhecidos. Não emito um juízo de valor fechado em relação aos que acham que estão dando o tombo no outro. Todavia, sei que o que se planta, se colhe. De minha parte, quero plantar boas amizades, fugindo de toda e qualquer possibilidade de ser visitado por algum tormento insano nas caladas da madrugada.
         Não quero gastar o meu tempo com as más resoluções relacionais. Vou é investir meu curto tempo de vida na espetacular aventura de conhecer os universos que se encontram nas consciências humanas – suas neuroses e até as suas psicoses.
         Vou apertar as mãos e beijar as faces de todas quantas pessoas eu quiser. Deixar-me ser absorvido pela retina dos olhos que me observarem. Não tenho medo da exposição. Sou o que sou e ninguém tem nada com isso. Se eu não puder viver a minha vida diante dos amigos e das amigas como ela deve ser vivida, quem a viverá, então? Apego-me a essa frágil esperança de viver a vida como ela se me apresenta, pois me sinto uma flor sendo causticada pelo calor do sol. Embora viceja, ficará ressequida e morrerá. Precisa ser bela, enquanto puder sê-lo.
         Assim, vou vivendo a vida curtindo cada momento como se fosse o último. Quero que, no entorno da mesa de celebração, cada amigo e amiga se torne companhia serena em minha caminhada. Desejo compartir o pão cotidiano e oferecer nas palmas das minhas mãos a água fresca a ser sorvida por quem está sedento. Que os sentimentos e gestos sejam estampados na sua mais intensa comensalidade.
         E se advierem as críticas quanto ao meu jeito e comportamento, não me importarei, afinal de contas, não sou perfeito, nem nunca desejei sê-lo. Sou, tão somente, uma síntese de contradições e conheço profundamente todos os meus defeitos, até os mais complexos. Posso até contá-los a você, se me permitir!
         Lembrei-me do Rubem Alves que, quando arguido em um congresso sobre seus posicionamentos quanto ao Jaime Wright, respondeu: “O Jim era meu amigo!” Encerrou a conversa, pois o mestre sabia que o bom da vida, ainda, é encontrar gente amiga que entende o outro e não o avalia por meros atos ou palavras. No fundo, para os amigos, no sentido mais estrito do termo, os defeitos não existem. São irrelevantes.
         Na minha transição, rumo a um lugar qualquer, fica claro a necessidade de romper com a solidão. Preciso da amizade sempre viva, próxima a mim, dando-me sentido e abraçando-me nos momentos de desorganização existencial. Tudo tem que ser regado a muita simplicidade e pé-no-chão. Vou exercer a minha amizade...

terça-feira, 14 de abril de 2020

Quixotagens (Décimo terceiro texto)

        
“Concordo com D. Quixote: o meu repouso é a batalha”.
Pablo Picasso

         Nem sempre eu encontro um lugar de recôndito para a minha alma. Às vezes, o que penso ou sonho é inexistente. Continuo a luta utópica, aprendendo a brigar com as armas que possuo. Sei que não vale a pena lutar com as situações e contextos que não serão alterados. Nesse sentido, às vezes me comparo à Dom Quixote, o “cavaleiro da triste figura”.
         Muitas pessoas já ouviram falar desta narrativa fictícia, escrita por Miguel de Cervantes e editada no ano de 1605. Uma interessante obra literária, cuja trama apresenta os idealismos e alucinações de Alonso Quixano – um fidalgo decadente e o seu companheiro lavrador e fiel escudeiro Sancho Pança.
         Dom Quixote, influenciado pelos romances dos cavaleiros andantes, acaba perdendo a razão e sai de sua letargia em busca dos sonhos impossíveis, das conquistas irrealizáveis, das estrelas inalcançáveis, do amor platônico e da paz interior que proporciona o descanso da alma. No início de suas andanças, ele elege uma lavradora chamada Dulcinéia como sua musa, e por ela, entra em delírios e luta contra monstros imaginários e situações irreais. Em uma de suas lutas mais fabulosas, Dom Quixote enfrenta os moinhos de ventos, achando que eram monstros, os mais diversos. Montado em seu cavalo, o Roncinante, vai ao encontro dos monstros, desferindo golpes aleatórios e se ferindo em uma luta vã.
         Todos os idealistas e apaixonados pela vida possuem comportamentos quixotescos. A trajetória de Dom Quixote de La Mancha é uma espécie de espelho para as minhas atitudes igualmente quixotescas. Quando comparo o herói pouco usual de Cervantes com a minha lida diária e com as lutas amorfas e sem sentido que deflagro contra os sistemas ideológicos bem montados, chego a constatação que tudo é paixão inglória.
         Em muitos momentos da minha lida, imagino dragões ou monstros imaginários, quando na verdade, estão adiante de mim somente os moinhos de ventos. Assim, diante de problemas ou dificuldades aparentes, eu preciso ser resoluto, pois no fundo, no fundo, todo dragão é um moinho de vento. Eu tenho medo! Aliás, tenho muitos. O meu medo é o meu grande aliado e meu grande inimigo. Os monstros imaginários tentam me destroçar.
         Dentre os meus medos, um sobressai: o de não ser o que pretendo ser, melhor dizendo, o de não deixar claro o que sou e o que quero. Acho que isso tem a ver com a clareza que possuo em relação ao mundo em que vivo e o sentido que ele me dá. Eu acho que é muito triste para uma pessoa passar por essa vida tão efêmera sem dizer a que veio. Sinto-me angustiado toda vez que penso na impossibilidade de alcançar o topo de um morro qualquer com um megafone, com a única finalidade de dizer: eu estou aqui e eu sou isso! Sei que para muita gente, isso parece uma bobagem, mas para mim não! Não quero aparecer ou lançar holofotes sobre meu próprio ego. Não se trata de marketing pessoal, mas necessidade de marcar a minha trajetória existencial com um legado. Mas, e se isso não for possível? Bem, pelo menos fica evidente a minha intenção de fazê-lo vivamente.
         Os medos ainda atormentam todo o humano em mim, principalmente, nas caladas da madrugada. Quero exorcizá-lo, mas não sei como fazê-lo. Preciso combatê-lo com coragem e ousadia. Arregaço as mangas e enfrento os dramas que me atormentam. Não posso ficar acuado num canto qualquer. O mundo é um campo minado, mas eu não posso deixar de exercer ações expressivas para ressignificá-lo, mesmo que com quixotagens! Assim, vago pelas vielas e becos do cotidiano sobre o meu Roncinante imaginário, sentindo o vento da liberdade fazer um gostoso cafuné nos meus cabelos. Com dignidade, brado a todo mundo, e para quem quiser ouvir, o motivo de ter vindo a este mundo. Ao fazê-lo, inevitável recorrer à memória e recordar todos os projetos frustrados de uma lida.  Com Darcy Ribeiro, eu me expresso:

“Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são as minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

         Somando os fracassos, continuo minha labuta. Como um Dom Quixote, assento-me à mesa ainda para uma boa refeição e amistosa conversa com Sancho Pança.

sábado, 11 de abril de 2020

Persistindo Dignamente (Décimo segundo texto)

        
“Não queremos perder, nem deveríamos perder: saúde, pessoas, posição, dignidade ou confiança. Mas perder e ganhar faz parte do nosso processo de humanização”.
Lya Luft

         Não sou daqueles que desistem fácil das lutas diárias e dos obstáculos impostos por gente impiedosa. Resisto firmemente enquanto ainda vejo sentido para um pleito qualquer. Entretanto, acho uma grande bobagem ficar brigando por um espaço num lugar onde não se é bem quisto. Se eu tiver que permanecer num lugar para manter minha posição social, pelo menos, que seja com dignidade. Caso contrário, é melhor abortar tudo.
         Tem gente que tem mais “coragem” e permanece em sua posição, se vangloriando de sua postura de fidelidade. Eu não! Mesmo que eu tenha direitos, prefiro abrir mão para abraçar a amiga dignidade, pois melhor do que viver, é viver com dignidade estampada na face. Detestaria ter meu rosto ruborizado, envergonhado por não ter tido a ousadia de romper com o que estava me fazendo mal.
         Para mim, em especial, dignidade tem a ver com a honra, com a decência e a honestidade que precisam ser resguardadas por quem se entende humano. Está ligada também a ideia de integridade, principalmente no campo da moral. Não aquela moralidade apegada a questiúnculas que nada constroem, mas aquela que busca continuamente o sentido da vida.
         Nessa busca pela dignidade e pelo sentido, luto contra a letargia que insiste em amainar todas as minhas ações. Novamente, ínsito em dizer: embora eu perceba os ventos contrários, não penso em desistir de lutar, seja ela qual for. Desisto, somente, das lutas que já foram perdidas e me atenho, sem nenhum ressentimento, a começar do zero. Saio correndo, sem rumo e sem direção, na direção de uma praia deserta. Quero a brisa gelada da liberdade para não me aprisionar nas caladas das noites emocionais. Preciso levitar a minha vida, mesmo sem saber como. Tal qual uma jangada sem vela, ao sabor de vento nenhum, no meio do oceano bravio, veleja a minha alma no tempo e no espaço, desejando recomeçar, sem desistir jamais. Não há sequer uma bússola. Perco minhas referências e fico ao léu, ao sabor das correntes marítimas.
         Nesse arfar pela dignidade, choca-me o comportamento das pessoas que insistem nos conflitos sem sentido, que nada acrescentam ao ser interior. Não quero a aproximação das pessoas que supervalorizam suas próprias vivências, numa prática egóica, desmerecendo todas as demais. Quero distância de gente que se aproveita dos níveis de intimidade para usar e abusar da boa vontade alheia. Não quero mais ficar exposto no chão da intimidade, pois se trata de chão frágil e volátil que distorce o diálogo evidenciado num foro íntimo.
         Fico inquieto com a dúbia interpretação decorrente das minhas falas e ações, principalmente quando sou mal compreendido. O pior é quando tais interpretações ganham a alcunha de fatos, mesmo tendo sido sugeridas num campo de conversas informais. Angustia-me não poder me defender. Como o leite derramado, a ação a ser efetivada é, tão somente, pegar o balde, o rodo e espraiar o pano no chão, com a finalidade de operar a limpeza, se possível. Doutra forma, somente o tempo poderá elaborar a cicatriz. Mas sempre é bom recolher-se ao profundo da alma com o propósito de avaliar e recomeçar com outros princípios. Nunca é tarde para um recomeço digno!
         Nesse ponto, cabe uma leve observação. É que existem duas dimensões de valoração da dignidade. Uma é interna. A outra é externa. A interna tem a ver com a atitude que a pessoa mesmo assume em sua dinâmica de vida. Tem um pouco a ver com a autoestima.  Lembro-me, por exemplo, quando num tempo de agonia, me vi envolto nos seguintes versos:
Sim! Eu vou! Vou porque preciso ir.
Vou porque me sinto mais livre assim.
Vou porque meu voo é dos pássaros
Que nunca experimentaram a gaiola.
Voo pra tornar distante
Os que almejam desestabilizar o canto do encanto.
Sim, vou num voo pra qualquer canto.
        
         Vou, porque quero a dignidade, aquela dos pássaros livres. Talvez eu tenha encontrado inspiração no famoso verso de Mário Quintana: “Todos estes que aí estão atravancando o meu caminho, eles passarão, eu passarinho”.
         Passarinhando, desenho em círculos e retas minha rota no céu acinzentado pelas nuvens carregadas que anunciam a chegada da chuva. É o ciclo em sua coordenada composição, ensinando que nada é estático, tudo é recomeço. A vida se reinventa todos os dias. Eu, sendo bom aprendiz, recomeço com a dignidade que me é devida. Poder efêmero e múltiplas utopias demarcam os meus novos princípios e valores, sem estabelecer uma zona limítrofe. Vivo o que quero viver e como desejo viver.
         Jogo-me na vida, pois há muito a ganhar sem nada a perder. E dialeticamente, há muito a perder sem nada a ganhar. Nos ganhos e perdas, nas perdas e ganhos, pelo menos, pelo mais, faço valer a pena minha frágil existência de porcelana.
         Sei que a minha vida é extremamente frágil e qualquer movimento mais agudo pode me levar ao fenecimento. Todos os dias sou posto à prova, diante da morte. Aliás, a morte é a grande sombra que se projeta sobre o iluminado viver de todos os meus dias. Não tenho medo da morte. Ela é minha companheira inevitável e a qualquer momento ela baterá à minha porta. Então, se a vida precisa ser reinventada, precisa, ao mesmo tempo, ser considerada dentro de um prisma equilibrado e digno.
         Portanto, eu resolvo viver a minha vida como ela é, como um ser-aí no tempo e no espaço, esbanjando simplicidade e o máximo de autenticidade que me for possível. Sei que, por assumir uma postura assim, serei rotulado e criticado. Respeitando os pontos de vistas contrários, acabo rindo em meu íntimo destes que ficam aficionados aos seus sisteminhas de fazer dó. Quero fazer valer a pena a minha vida, deixando as coisas acontecerem ao sabor do vento, sem mais confiar naquelas pessoas que arrotam com empáfia e arrogância o seu poderzinho de merreca. Bem-aventurados os que se recolhem às suas frágeis existências de porcelana. Da minha parte, por exemplo, Já atravessei alguns mares com marés. Já percorri alguns desertos sem oásis. Já subi algumas montanhas e vi os abismos. Quando quis o sol, veio a chuva! Quando quis a chuva, veio a névoa! Quando veio a névoa, resolvi calar. E me recolhi num canto qualquer, para plantar meu jardim de sentidos. Agora entendo melhor o Rubem Alves.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Saboreando a Angústia (Décimo primeiro texto)


“Não ser o que realmente se é, e não se sabe o que realmente se é, só se sabe que não está sendo. E então vem o desamparo de se estar vivo. Estou falando de angústia mesmo, do mal. Porque alguma angústia faz parte: o que é vivo, por ser vivo, se contrai”.
Clarice Lispector

         Afronta-me a angústia. Sinto o meu coração em taquicardias descompassadas. Sei que há normalidade nisso, pois se trata da somatização de diversos sentimentos que se misturam no interior de minha humanidade. Lembro-me novamente de Kierkegaard – um dos filósofos que estabeleceu como ponto fundamental da perspectiva das transições necessárias à vida humana o conceito de angústia.
         Além de me impulsionar a um novo estágio na vivência habitual, a angústia me acompanha no confronto com uma nova realidade, especialmente a que está na contramão do que eu penso ou do que quero. Um paradoxo se estabelece em minha frágil consciência. Se para o referido filósofo dinamarquês a angústia faz parte da natureza humana, jogando o ser humano num precipício de possibilidades e impulsionando-o a saltar no escuro, tornando-o responsável pela sua própria existência, para mim é a genuína síntese de contradições emocionais.
         Mesmo assim, continuo meus recomeços e minhas transições, tentando satisfazer a minha pergunta pelo sentido da vida. E não é isso o que todas as pessoas procuram? De minha parte, busco, além disso, o que está intimamente ligado ao conceito de viver inquietamente de boa.
         A flor da angústia nasce no chão da fragilidade, adubado pela solidão dos profundos pensamentos, mesmo em contato com diversas pessoas. Ela cresce assombrosamente quando a vontade de se cultivar amizades no campo da sinceridade, humildade e cumplicidade se vê abatida por alguma vontade de poder.
         Ora, não há coisa alguma errada em se buscar o poder, pois o mesmo é inerente ao ser humano e as suas relações em geral. O problema mais específico reside nas atitudes desenfreadas, inescrupulosas e desrespeitosas, tantas vezes evidenciadas nos pequenos nichos sociais, onde gente quer se impor sobre gente. Pessoa alguma se sente bem quando se vê usada pelo outro que almeja, tão somente, seus próprios interesses alheios.
         Quando me percebi envolvido numa teia maldita como esta, fiquei estressado e doente. Minhas emoções ficaram estáticas e eu não conseguia transgredir a ordem que estava sendo imposta sobre mim. Aconselharam-me a calma, mas eu queria a agressão. Não me conformava com aquela situação e sofria, pois não encontrava formas adequadas para o estabelecimento de minha frágil zona de sentidos. Por isso, precisei ir para além da forma, subvertendo o que estava à minha frente. Sei que muitas pessoas possuem certo asco à palavra subversão, mas ela tem a ver com uma lógica básica e muito simples: se não dá de um jeito, dá-se outro. E com isso em mente, subverti num Poema do Amor Livre:
Vivo pelo mundo, estampando sentimentos
Quero-os sempre vivos, como pipa em meio aos ventos
Ao sabor da liberdade, pra voar nos pensamentos
Acolher os sonhos lindos dos amantes sem intentos
E romper com a tragédia
De viver sem um sentido
Abraçando só lamentos
Hei de ver em seu sorriso
Teu semblante revestido
De um amor em mil momentos

         Aqui e ali, principalmente nessa órbita relacional de transições, onde o amor se estabelece em mil momentos, o que vale para mim é o estabelecimento de um possível equilíbrio, quem sabe uma homeostase. Preciso me sentir, nem que seja emocionalmente, à beira de um lago translúcido onde o espelho d’água reflita as rugas que se estamparam em meu rosto. Quem sabe, encher as conchas de minhas mãos com o líquido límpido espraiando-o em todo o meu rosto. Depois, levantar os olhos e contemplar a outra margem. Sentir o cheio das ramagens em flor e o sibilar dos inúmeros pássaros selvagens.
         Sinto-me convidado a mergulhar no lago, mas tenho medo. Profundidades escondem segredos que podem machucar, e eu, cansado de tantas machucaduras preciso curar meu interior e adquirir uma mínima boa consciência. Por enquanto, fico com minha angústia, sendo provocado por uma boa dose de razão que visa, ao final das contas, ajudar-me nas minhas vivas transições e recomeços que se tornam extremamente necessárias e urgentes para mim. Já? Agora? Quem sabe!

terça-feira, 7 de abril de 2020

Melhorando e Enfrentando os Altos e Baixos (Décimo texto)



“Seja qual for o caminho que optarmos seguir, haverá altos e baixos. E isso é tudo”.
Martha Medeiros

         Quando faço um exercício memorial, trazendo à tona as lembranças dos dias em que vivi, me deparo com um quadro muito mal pintado de situações, as mais diversas, dotadas de pinceladas desconexas e multicoloridas, algumas acinzentadas. Todo esse quadro me lembra dos diversos conflitos que transpassaram a minha alma.
         Não nasci num berço esplêndido, mas na complexidade das situações limites. Com meus pais, morei na Favela do Campinho em Madureira – RJ. Não me queixo. Quando fecho os olhos, visualizo a ternura e o carinho de minha família naquele lugar. Tudo o que sou hoje decorre dessa dinâmica que sempre misturou altos e baixos, conflitos e acordos, perguntas e respostas, dúvidas e mais dúvidas. Tenho uma rígida constatação de que a vida em todos os seus níveis se organiza ou se desorganiza nos encontros e desencontros que ocorrem na singularidade do ser-em-si e nos relacionamentos.
         Dos muitos altos e baixos vivenciados ao longo de minha existência, que poderiam gerar diversas narrativas, elenco um em especial, por entendê-lo como uma viva situação de enfrentamento.
         Em julho de 2004, vivi uma experiência complexa quando, sofrendo um simples acidente, perdi completamente a visão do olho direito. Eu estava num churrasco com amigos e num dado momento, em meio à festa e a brincadeira, por estar assentado debaixo de uma árvore, levantei-me precipitadamente e bati com a parte de trás da minha cabeça em um toco saliente. Senti uma dor lancinante e o consequente movimento de substâncias estranhas dentro do globo ocular. Sabia que alguma coisa estava acontecendo, mas jamais poderia imaginar que aquilo era um descolamento de retina. Na mesma semana marquei uma consulta com uma oftalmologista e descobri que eu havia sofrido uma ruptura gigante. Para resumir a história, fui encaminhado para um instituto especializado em cirurgias na retina, passando por duas intervenções convencionais e sete outras a lazer. Num primeiro momento, em meio a toda a adaptação, fiquei bem, mas depois tive uma catarata e não mais foi possível a recuperação da visão. Perdi-a completamente.
         Essa situação poderia ter me deixado muito mal e até me imobilizado na vida, mas resolvi fazer a transição e não me deixar abater por tais circunstâncias. Parece até um paralelo do esquete alusivo ao “Joseph Klimber”, apresentado pela Companhia de Comédia Os Melhores do Mundo. O fato é que sofri um acidente fortuito. Não tinha feito nada para ele acontecer. Eu também não queria o descolamento da retina, mas ele ocorreu em meu olho direito. Existem situações que não podem ser evitadas por pessoa alguma. E não são justamente esses dois tipos de sofrimento que todos vivenciamos? Os primeiros oriundos das escolhas possíveis. Os segundos, dos acidentes fortuitos e não esperados.
         Quando não tenho respostas em relação ao inusitado, busco o caminho da teimosia, me reorganizando e acreditando na possibilidade de sair das areias desérticas para o oásis; dos charcos para os campos floridos; da tela branca para a obra de arte; do mosto para o bom vinho; da chuva torrencial para o arco-íris. Diante do irônico da vida, quando as perguntas “são” e as respostas “não-são”, preciso recorrer às coisas do espírito. Alguns chamam isso de resiliência.
         O poder da resiliência – essa notável capacidade de se adaptar emocionalmente frente aos infortúnios da vida, me refaz, gerando novas expectativas em relação à minha existência como ser-aí. Preciso das boas expectativas, pois em diversos momentos cotidianos, sinto-me frustrado. Infelizmente, desde os tempos mais remotos da tenra infância, fui condicionado a acreditar num reconhecimento que somente poderia advir dos meus sucessos e vitórias, especialmente os de ordem material. Todavia, posso contar nas mãos os êxitos obtidos nessas duas esferas. Tive, obviamente, bons momentos, mas as lembranças são maiores em relação às derrotas.
         De fato, nunca celebrei muitos sucessos ou vitórias na minha caminhada existencial. Aliás, sempre enfrentei o revés. Lembro-me que na escola eu era sempre o último a ser escolhido para qualquer atividade física, principalmente o futebol. Tudo bem, eu sempre fui ruim de bola, e sempre sofri as mais fortes pressões do que hoje se chama bullyng. Vivi todos os níveis de sofrimento, decorrentes dos apelidos e maus tratos oriundos dos colegas de sala de aula. Só não sofria bullyng quando desenhava, porque nessa área, modéstia às favas, eu mandava bem. Isso me levou bem cedo a fazer uma constatação de que cada pessoa possui sua potencialidade particular. Cada um tem o seu valor e realiza os feitos que pode realizar na singularidade dos seus gestos. Isso jamais pode ser ofuscado.
         Além desse sofrimento ocasionado pelas péssimas brincadeiras de mau gosto oriundas dos colegas, uma pergunta sempre ficou martelando a minha mente: Por que algumas coisas acontecem para algumas pessoas e para outras não? Ora, algumas pessoas tiveram boas oportunidades desde o nascimento; outras, nasceram condenadas a não alcançar coisa alguma. E tem aquelas, ainda, que precisam batalhar muito para estabelecerem um mínimo “lugar ao sol”. É estranho isso. Não escolhemos como nascer e onde nascer. Não escolhemos nem mesmo o nosso nascimento. Podemos, talvez, escolher os(as) amigos(as), e olhe lá.
         Nesse mundo onde são parcas as minhas escolhas pessoais, peregrino enfrentando os altos e baixos. Não me importuno muito, afinal de contas, seria completamente sem graça um mar sem ondas, uma floresta sem clareiras ou o um precipício sem o abismo, daqueles que dá até medo olhar para o fundo.
         Por isso, acho lindo o poema da Adélia, por título: Tão bom Aqui. Ele me revela os altos e baixos pelos quais eu passo.

Me escondo no porão para melhor aproveitar o dia e seu plantel de cigarras. Entrei aqui para rezar, agradecer a Deus este conforto gigante. Meu corpo velho descansa regalado, tenho sono e posso dormir. Tendo comido e dormido sem pagar. O dia lá fora é quente, a água na bilha é fresca, acredito que sugestionamos elétrons. Eu só quero saber do microcosmo, o de tanta realidade que nem há. Na partícula visível de poeira em onda invisível dança a luz. Ao cheiro do café minhas narinas vibram, alguém vai me chamar. Responderei amorosa, refeita de sono bom. Fora que alguém me ama, eu nada sei de mim.

         Gosto da Adélia assentada em minha roda de conversa, deslindando poeticamente os altos e baixos sentidos por ela mesma, mulher, alentando todas as múltiplas gentes que enfrentam suas aporias. Sua poesia me toca. Sinto-me num microcosmo também. Sua prosa desliza fácil pelos abismos da minha alma, parecendo preencher os espaços desconexos dos meus sentidos. Doce Adélia que parece ter nome de flor. Talvez, ela mesma seja uma flor. E ela se achega, uma vez mais, nomeando as palavras que revelam o susto e o terror em Antes do nome: 

Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”, o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível muleta que me apoia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. A palavra é disfarce de uma coisa grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momento de graça, infrequentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror.

         Momento de graça? Nem sempre. Mas vou perseverando entre dias bons e dias maus, entre as palavras e suas polissemias que me ajudam na organização de minha vida no tempo e no espaço, afinal de contas, ainda não desisti de perseguir o sentido de bem-estar, se ele me for possível. O peixe ainda está vivo na minha mão. Estou atemorizado, mas insisto em inaugurar minhas linhagens e fundar meus reinos. Quem sabe, assim, enfrente melhor todas as variações que me ocorrem entre a vida e a morte, entre os altos e baixos.

domingo, 5 de abril de 2020

Atravessando a Ponte na Companhia da Crise (Nono texto)

        
“No inferno, os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise”.
Dante Alighieri

         Em meu recomeço, mediante o enfrentamento dos meus altos e baixos, sinto-me ainda andarilho a atravessar a ponte. Ela é ampla e comprida. Não consigo visualizar o outro lado. A neblina é espessa. Não posso recuar. A peregrinação iniciada me incita a ir à frente, passo a passo. Tento manter-me sóbrio e forte.
         Embora eu tente, não tenho condições de manter um alto padrão de potência em todos os momentos da minha complexa vida. Em outras palavras, nem sempre estou bem e meu humor varia como as estações do ano. Confesso que existem dias onde a angústia se instala forte na minha alma e eu não tenho vontade de fazer coisa alguma. O passado me visita de forma intensa, tentando me trazer o arrependimento do que eu fiz e do que eu não fiz. Fujo, convictamente, dessas insanidades para não dar cabo de minha vida. Que pessoa alguma me julgue, afinal de contas, quem nunca pensou em pausar a existência quando diante de um grande conflito emocional? Não controlo meus selvagens pensamentos. Quero asas como as de uma condor. Podem me rotular de insano. Recorro a uma taça de vinho. Pego o violão e busco desanuviar meus pensamentos com boas canções.
         A potência para viver oscila. Ela chega e vai, vai e chega como os movimentos das nuvens nos ares. E o bom da vida não é essa experimentação de altos e baixos? A ausência de uma linearidade torna tudo mais encantador. Uma hora está tudo bom. Em outra, está tudo ruim e a gente caminha de boa, como dá.
         Todos esses extremos estão diretamente ligados à ideia de crise. Essa é uma dimensão de desestabilização sofrida por aquele que se depara com o seu próprio mundo e com o seu próprio eu. Quando me vejo como realmente eu sou e o mundo que me cerca, fico extremamente aflito, consternado e em crise. Todas as vezes que, por uma situação ou outra, eu entro nessa crise, e sofro com ela, também tenho a oportunidade de refazer as minhas ideias e as minhas ações, ressignificando-as em minha própria vivência. Além disso, crise, no ideograma mandarim identifica duas vertentes. A primeira é crise mesmo, ligada à ideia de conflitos e guerras. A segunda tem a ver com a oportunidade.
         Eu acho que as duas significações caminham juntas. Não há possibilidades de se separar as duas dimensões, pois toda oportunidade sempre motiva a sair da letargia e toda crise é um sinal de nova oportunidade, mesmo que gestada no campo do sofrimento. Particularmente, eu gosto mais de crise no seu sentido primeiro. No sentido segundo, é um acontecimento que pode surgir como o resultado das possíveis escolhas feitas dentro do meio em que se vive. Em geral, a oportunidade é a conquista decorrente de muita luta, muito suor, muito desgaste, muita renúncia, muito esforço e muito sacrifício.
         Preciso considerar que não tenho uma boa impressão do sacrifício. Para ser sincero, não gosto da (i)lógica do sacrifício. Para mim, pessoa alguma deve se sacrificar por coisa alguma. Embora a palavra tenha a sua origem no latim, e signifique “fazer-se santo”, o que é uma coisa boa, ela sempre denota uma manifestação de dor e sofrimento em sua essência, talvez por causa da forte ênfase religiosa que a ornou no decorrer dos séculos. O fato é que, por uma razão não tão explícita, sacrifício tem a ver com coisa boa e coisa ruim, ao mesmo tempo. De qualquer forma, não gosto dos sacrifícios. Acho que eles não acrescentam coisa alguma à vida de pessoa alguma. O pior é que, em geral, se sacrifica o corpo, deixando-se de comer, de beber e às vezes, exercitando-se com violência e agressões. Eu questiono tudo aquilo que, em nome de um alto ideal como a beleza e a estética, interfira na saúde e na integridade física das pessoas. Acho que o ideal mesmo é cultuar a beleza e viver a vida sem pressões, respeitando os limites. Então, uma vida saudável requer boa comida, boa bebida, brincadeiras e zoações, trabalho, sexo e relacionamentos. É isso o que, de fato, vale a pena, o que gera Contentamentos:
Seu dia! Seu tempo! Em tudo, sua hora.
Dia de celebrar!
Tempo de recriar!
Hora de se refazer!
Celebrar a vida, Recriar as relações, Refazer as utopias!
Vida que passa a cada dia!
Relações que se valorizam no tempo!
Utopias que lampejam a toda hora!
Nos dias que se passaram e que chegarão.
No tempo que era ontem e já é amanhã.
Na hora que se encanta com simplicidade e sorrisos.
Enfim, contentamentos!

         Não sou feliz! Sinto-me contente! Felicidade é efêmera e passageira. É orgasmo que culmina e depois se esvai. Já o contentamento é essa sempre viva possibilidade de se encontrar conteúdo e sentido nas pequenas situações provocadas pelos encontros e desencontros vivenciais. Contentamento ocorre quando a oportunidade surge como acaso, sem interferências quaisquer, sem uma explicação lógica, como um milagre que aparece no nada inundando o cotidiano de uma pessoa.
         Na minha crise pessoal, tendo consciência de meus limites, desejo estabilizar as minhas emoções, mantendo certa potência em minha lida diária. Quem sabe meu companheiro de nome contentamento não me ajude? E quando os intentos insanos tentarem encontrar uma estadia em minha alma, serei furtivo e driblarei os dramas que se estruturem à minha frente. Mesmo sem uma clareza quanto às oportunidades futuras que poderão me advir, ainda assim, continuarei a me reinventar ao meio dia.

DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

  Quando eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado c...