Ouvi
durante toda a madrugada, pelo menos na hora em que me revirava na cama, a
copiosa chuva que caía tilintando nos telhados. Preciso confessar que, embora
reconheça todos os riscos inerentes ao volume das chuvas nas diversas regiões e
seus consequentes alagamentos e quedas de barreiras, dormir com o barulhinho da
chuva é uma dádiva.
Eu
acordei inspirado. Existem dias que, por uma razão que não sei explicar, a
dinâmica dos meus pensamentos se emoldura pela dimensão maravilhosa e
inexplicável do amor. Eu que tenho andado pelos caminhos e trilhas da
psicologia, me deparo continuamente com a ideia de que a psicoterapia se faz
mediante a vivência do amor. Aliás, para a maioria dos grandes nomes que
compõem a trajetória da Psicologia, o amor é o elemento que pode estabelecer a
chamada cura psicoterápica. Eu prefiro falar de ajustes psicoterápicos. Mas,
para além desse fato, não posso me eximir de considerar a ideia de que a
relação entre o psicoterapeuta e o seu cliente ou o seu paciente se dá justamente
na dimensão relacional do amor. O amor é, de fato, a tônica maior que não pode
ser substantivada, pois é ação cotidiana na dinâmica do mundo.
Recentemente,
lendo um livro de Humberto Maturana, observei se sensibilizar o amor que me
envolve, novamente. Segundo o autor: “Por que eu uso a palavra amor? Uso a
palavra amor porque é a palavra que usamos na vida cotidiana para nos referirmos
à aceitação do outro ou algo como um legítimo outro na convivência. Alguém diz
um amigo que está limpando seu carro: ‘ – Ei, você ama muito o seu carro’? – ‘Sim,
claro, responde ele, ele é novo, eu cuido dele. Eu gosto dele’. A uma outra
pessoa que deixa o gato subir na sua cama podemos dizer: – ‘Ei, parece que você
ama o seu gato’! – ‘Sim, ele responde, eu o amo’. Ou, quando alguém nos permite
ser o que somos, sem exigências, diremos ‘O fulano é um amor’, ou ‘O fulano me ama’.
Ao mesmo tempo, quando alguém nos nega fazendo-nos exigências, dizemos ‘ – Você
não me ama’. O que é o amor? O amor é a emoção que constitui as ações de
aceitar o outro como um legitimo outro na convivência. Portanto, amar é abrir
um espaço de interações recorrentes com o outro, no qual sua presença é
legitima, sem exigências. O amor não é um fenômeno biológico eventual nem especial,
é um fenômeno biológico cotidiano. Mais do que isto, o amor é um fenômeno
biológico tão básico e cotidiano no humano, que frequentemente o negamos
culturalmente criando limites na legitimidade da convivência, em função outras
emoções”. (MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na
política. Editora UFMG, 2002, 67).
Tendo em
mente os meus pensamentos livres e a pertinente intuição de Maturana, motivei-me,
ainda mais, diante dessa possibilidade de me encontrar perante o outro sem exigências.
Isso me deu um novo vigor às condições de minha atuação no consultório, com o
intuito de abraçar mais afetivamente os meus clientes no contexto psicoterápico.
Foi muito especial o dia, pois diante de todos os desafios e das demandas que
cada um me trouxe, tivemos a oportunidade de construir os percursos mediante novas
interpolações e, principalmente, novos caminhos visando a descoberta daquilo
que poderíamos considerar a identidade de cada um. Chamou-me a atenção um fato
que se destacou preponderantemente na maioria dos processos: a necessidade de se
vivenciar a experiência vital de uma maneira tal que favoreça a adequação
espontânea e criativa ao mesmo tempo em que haja uma proteção das emoções e dos
sentimentos mais intimistas, afinal de contas, só se pode partilhar sentimentos
intimistas com pessoas que possuam a mínima sensibilidade, capaz de acolhimento.
Enquanto
eu desenvolvia toda essa dinâmica reflexiva presente nos processos
psicoterápicos, não me faltava ao pensamento a dinâmica maravilhosa do amor. Eu, particularmente, gosto de vivenciar o amor
em todas as suas intenções, em todas as suas profundidades, em todas as suas
paixões. Encontros e desencontros. Parto da premissa de que coisa alguma é
perfeita, mas tudo pode ser extremamente divertido, pois os corpos são
brinquedos que fazem experiências diversas e inusitadas, entrechocando os
afetos possíveis e inimagináveis nesse não espaço que chamamos de universo. É
preciso orgasmos.
Depois
de todos os encontros possíveis no dia de hoje, retornei à minha casa com o
intuito de poder relaxar um pouco. A chuva visitava ainda os telhados das casas
da minha vizinhança. Então, busquei o relaxamento. Assisti a um filme muito
intrigante, intitulado: Todas as razões para esquecer (2017), que fala,
justamente, desses encontros e desencontros do amor na trajetória de um jovem
rapaz que, passando por uma experiência de separação, vivencia todas as crises,
todas as angústias, todas as emoções e todos os sentimentos inerentes ao
término relacional. Ao final, a sua síntese foi emblemática. Ele disse que nem
tudo pode ser vencido e que tudo pode ser saboreado na dinâmica do que é bom e
do que não é tão bom...
Fui
dormir em paz, depois de ter saboreado uma cerveja Colorado com essência de café
forte. Degustar essa bebida foi uma experiência inusitada, pois nunca havia saboreado
este sabor tão marcante. Fiquei com gosto de café na boca e cafeína no cérebro,
mas nada capaz de me perturbar o sono. Ao contrário, eu dormi como um anjo.