Na
chamada e reconhecida Idade Média, a figura do bufão se evidenciava nos
palácios e se caracterizava como uma representação alusiva ao contrário da
realidade aparentemente revelada. De fato, o bufão era uma figura marginal cuja
fala era destoante e, ao mesmo tempo, proibida e ouvida por todas as pessoas
próximas. Encontrava-se sempre na oposição do que era assimilável socialmente.
Geralmente,
o bufão possuía uma deformidade física ou era uma pessoa com nanismo. A
deformidade física era percebida como uma espécie de afronta ao comum ou ao relativamente
comum. Além disso, estava sempre vestido de uma forma não usual para chamar,
ainda mais, a atenção das gentes. Segundo a Escola de Teatro de São Paulo, o
termo bufão se refere a:
Uma figura dramática marginalizada da idade média, uma espécie de
palhaço caracterizado entre o grotesco e o charme; era utilizado para se
referir a pessoas muito feias ou com algum tipo de deformidade. Os bufões
zombavam das pessoas consideradas “bonitas” e também criticavam os setores
dominantes da sociedade, tais como o Governo, a Igreja e a burguesia. Típico da
dramaturgia cômica, o arquétipo concentra em si a manifestação exagerada dos
sentidos humanos. O bufão também é popularmente conhecido como o ‘bobo da
corte’ ou o ‘arlequim’’’. Transgressor das regras sociais, ele utiliza muito do
desprezo, ironia e da desinibição em suas representações. (Disponível em: https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/o-que-e-bufao).
Ora,
é factível pensar que todas as pessoas possuem um lado arquetípico bufônico em
suas vidas, uma personalidade distinta das que são naturalmente percebidas
pelos outros na complexidade do tecido social. Aliás, todas as vezes que nos
surgem sentimentos os mais diversos, principalmente os marcados pela “loucura”
ou por desvios que se estabelecem sem as máscaras, sem as fantasias ou sem
nenhum tipo de aprisionamento, o bufão se evidencia desfraldando a realidade de
sua persona mais autêntica e mais interiorizada. O lado bufônico de cada um de
nós revela a livre expressão do ser e a ausência da mínima possibilidade de se
querer fazer média com qualquer pessoa que seja. Ao mesmo tempo, não se afina
com a manutenção dos poderes desta ou daquela autoridade. Ao contrário, ri e
gargalha do poder.
Na
dinâmica do amor como um acontecimento, a presentificação do bufão que há em
cada um de nós concebe a realidade que se dispõe diante dos olhares através de
formas (i)lógicas e despudoradas. O bufão em seu espaço de espontaneidade
inadequada, eivado de liberdade na dimensão do amor, pode dizer muitas coisas e
apresentar possibilidades e situações outras que chocam e subvertem as
realidades que se encontram cristalizadas.
Eu
entendo que pessoa alguma deve aprisionar o seu bufão interior, especialmente
se existem nos horizontes utópicos emocionais a possibilidade da manifestação
do acontecimento amor. Aliás, a estrutura existencial de cada pessoa não pode
prescindir a manifestação bufônica. A lida diária e todos os seus
inconvenientes requer uma boa dose de comicidade e bom humor, especialmente na
dinâmica relacional, quando o cotidiano é embotado e a vida fica embrutecida,
desembocando no desequilíbrio das relações que envolvem as palavras e os gestos. Nas dinâmicas
internalizadas, pode-se considerar o entendimento das regras, mas, também, a
abertura para a manifestação do sempre estranho habitante de outro mundo que
vive em cada um de nós, aquele capaz de desorganizar a vida relacional,
dando-lhe novo sabor.
Mais
do que sentimentos, o amor, ou o que se pode entender dele, refere-se a múltiplas
atitudes que ocorrem entre duas pessoas ou mais. É um acontecimento que
extrapola as relações sociais. No fundo, o que pensamos ser o amor é o nome que
a gente dá a um monte de coisas que a gente sente ou fala e não entende. Existe
coisa mais bufônica do que esta?
Essa
perspectiva pode favorecer o convite a que cada pessoa se abra à propensa
discussão internalizada sobre o significado do desejo e do prazer na
corporeidade. Ao amar, o amador ou amante não pensa em outra coisa a não ser em
seu próprio bem-estar, seu estado de satisfação. Essa coisa assimilada pelas
pessoas de que o amor é uma entrega ou um cuidado é pura balela. Se assim
entendemos, nos depararemos com a fragilidade que é existir e viver o amor em
suas múltiplas formas, configurações e manifestações. E está tudo bem, dentro
dos conformes.
Essa
característica camaleônica das emoções e dos sentimentos em cada um de nós se
encontra diretamente coligada às relações afetivas e, mais do que isso, à
autêntica expressão do amor que encontra maior e mais significativa
expressividade em sua manifestação bufônica. A pessoa que vive expressando o
amor não pode prescindir uma boa dose de “loucura”. Como diria Nietzsche: “Há
sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura”.
Portanto,
acho que todas as pessoas deveriam se permitir mais a alegrai e a posse de
coisas leves, sem a tônica da cobrança, sem o receio do desajuste ou o medo de
passar vergonha. Anula-se o melhor da vida quando se provoca o aviltamento das
possibilidades do ideal de liberdade ou então, quando se perde a precisa
intensão de se querer viver como quer, dentro das múltiplas possibilidades
ofertadas pela vida. É preciso um pouco mais de desordem ao caos que imaginamos
ou vivemos. Nada de valorizar a seriedade e a severidade da vida. Abraçar a
comicidade inusitada é o que abre o amor em diversos paralelos desconexos. O
bufão nosso de cada dia precisa quebrar o nosso cotidiano e oferecer outra
lógica que não seja tão pesada a nós, mesmo que seja brega e cafona.