domingo, 31 de dezembro de 2023

DIA 55 - Esperançando como as crianças esperançam...

 


A vida exige de cada um de nós certa atitude para enfrentar os desafios complexos do dia-a-dia, pois cada um deles possui sua constituição inusitada. Diante das múltiplas afrontas, acabamos por desenvolver certo temor e cedemos espaços para a angústia e a possibilidade do desespero. Em momentos tais como este, o pensar humano se refugia na atitude de se dar um salto no escuro ou tentar fugir das realidades que confrontam a existência.

Uma gama de pessoas entende que este confronto somente pode ocorrer por intermédio da esperança. Em geral, o que se convencionou se chamar de esperança é uma espécie de mola precursora para aqueles que vivem com vigor a experiência da existência. Para outros, ela é a contínua respiração ofegante por um novo tempo, um novo mundo. Mas será mesmo?

O antigo adágio popular expressa: “a esperança é a última que morre”. A inspiração desta frase remonta a antiguidade e a mitologia grega. O titã Prometeu havia roubado o fogo do Olimpo para partilhá-lo aos seres humanos. Ao mesmo tempo, trancafiou em uma caixa todos os males do mundo, inclusive a esperança. Recebeu de Zeus o castigo de ser preso em uma pedra para ter o seu fígado devorado por um abutre durante o dia. O órgão se recuperaria durante a noite e o castigo eterno se repetiria. Além disso, Zeus cria Pandora, uma mulher linda que se casa com Epimeteu, irmão de Prometeu. Na terra, Pandora encontrou a caixa de Prometeu e a abriu, liberando todos os males e os sofrimentos à humanidade, inclusive a esperança – Elpis. Mas por que a esperança também fora aprisionada nesta caixa? Ela possui uma conotação maligna?

Para os gregos, a esperança era filha da mentira e, portanto, era considerada má por afastar os seres humanos dos ideais da verdade que não poderia ser ignorada. Decerto, se uma determinada expectativa quanto ao futuro paralisa uma determinada pessoa, a esperança se torna extremamente negativa. O filósofo Nietzsche, seguindo esta linha, afirma que a esperança é o pior dos males, pois se refere a confiar em um futuro incerto.

De fato, o futuro é incerto. Felizmente ou infelizmente, não temos como controlar as coisas que acontecem em nosso cotidiano. Existem muitas situações que fogem ao controle das mãos ou das mínimas organizações de vida. Quando as pessoas se deparam com as suas respectivas complexidades existenciais, sentem-se atormentadas e, em muitos casos, se angustiam em pensamentos mil, até perderem o sono. Entretanto, é preciso considerar que apesar de todas as complicações da vida, cada pessoa em sua subjetividade pode se esmerar em fazer diferente a sua própria realidade de vida.

Um caminho pertinente é o de se respeitar o tempo presente como as crianças o respeitam. É preciso aceitar o desafio de olhar o tempo presente sem a necessidade de se buscar respostas quanto ao futuro. É preciso que os olhos brilhem dentro do espectro de espontaneidade tão comum ao mundo das crianças. Ora, as crianças não se gastam pensando no futuro. A esperança nas crianças se traduz na possibilidade de vivenciar as experiências lúdicas sem a mínima preocupação quanto ao que vai acontecer amanhã. É desnecessário nutrir altas expectativas quanto ao tempo vindouro e, tampouco, tornar o que se concebe como esperança como algo desnecessário. Aliás, mais do que esperar, é necessário esperançar, todavia sem aquela ansiedade para se alcançar um determinado objetivo. Deve-se, sim, esperançar no cotidiano, vivendo o que dá para se viver, como se quer viver.

Viver sem muita expectativa quanto ao futuro não significa se tornar pessimista, mas saborear o tempo presente de forma mais perceptiva. Acho que, aqui, vale um antigo conselho que eu recebi do meu pai: “Filho! Coloque as suas barbas de molho”. E olha que eu nem tenho barba. Descobri que essa expressão está ligada a um provérbio espanhol que diz: “Quando vir as barbas do seu vizinho pegar fogo, ponha as suas de molho”. Aliás, descobri também que na antiguidade e na Idade Média, a barba simbolizava honra e poder. Se cortada, representava uma grande humilhação. Independente de comentários aleatórios, certo é que essa expressão tem a ver com desconfiar daquilo que se apresenta diante do olhar. Acho mais prudente essa postura a ser surpreendido por alguma novidade que possa ocasionar algum desconforto. Ora, não temo coisa alguma que me desafie na vida, a não ser a hipocrisia dos que sorriem pela frente e ameaçam pelas costas. Por isso, prefiro colocar as barbas de molho, mesmo sem tê-las, como já disse. Ademais, minha alma é povoada por uma série de sentimentos difusos que se deslocam com facilidade nos meus jogos mentais e me dão a sensação de múltiplas transitoriedades. O poeta Raulzito declarou a necessidade de se tornar uma metamorfose ambulante, a ter sempre a velha opinião formada sobre tudo. Corroboro com a intuição do poeta e me sinto igualmente em completa e complexa transformação. Talvez decorra daqui essa minha dúvida inquietante frente à esperança. Por isso, prefiro a teimosia das crianças em sua sanha pela vivência cotidiana. Sigo aqui, também, um princípio de Gandhi: “Coisas que nos parecem impossíveis, só podem ser conseguidas com uma teimosia pacífica”. Nos dicionários, teimosia se define por uma persistente obstinação às próprias ideias, gostos etc. Eu sei que para muitas pessoas a teimosia tem um aspecto completamente negativo, mas no arcabouço dessa reflexão, abarca uma conotação positiva e extremamente propícia para esses tempos de transitoriedades ou metamorfoses.

Por uma razão inerente a mim mesmo, somente consegui alcançar o que alcancei por causa da minha teimosia em dado momento presente. Eu sei também que pelo fato de me autodesignar um teimoso, acabo por ser considerado um chato para muitos. Que se dane. Confirmo aquilo dito pelo mesmo poeta de antes: “Não sei aonde vou chegar, mas estou no meu caminho”. Então, independente do que se estabelecer frente aos meus olhos, vou continuar com minha teimosia no presente, pois é a única forma de continuar sobrevivendo diante do caos que se instala travestido em discursos informes.

Os dias muitas vezes são sombrios e nublados. Mesmo diante da minha recatada esperança que se concretiza numa espécie de teimosia chata, faço minhas as palavras de Darcy Ribeiro: “Na verdade, sou um homem feito muito mais de dúvidas que de certezas, e estou sempre predisposto a ouvir argumentos e a mudar de opinião. Tenho mudado muitas vezes na vida. Felizmente”.

E é isso o que eu vou fazer em meu tempo presente, esperançando, mudando de opinião, metamorfoseando-me sem muitas expectativas ilusórias quanto ao que virá amanhã.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

DIA 54 - Das emoções inteligentes e os sentimentos conscientes

 


Viver requer de cada um de nós uma série de comprometimentos diversos com os eventos que nos ocorrem no cotidiano e com as pessoas com as quais nos envolvemos direta ou indiretamente, distantes ou intimamente.

Na verdade, cada um de nós é desafiado a equilibrar as emoções que fluem como vulcões em erupção da interioridade humana. Gosto sempre de fazer uma distinção entre o que são as emoções e o que são os sentimentos. A emoção é o que brota no momento exato em que os sentidos percepcionam algo ou alguma coisa que escapa ao habitual, como, por exemplo, quando vemos um filme e nos emocionamos, rindo ou chorando, ou ainda, quando enfrentamos um acidente de percurso ou o ataque de algum animal. É o que ocorre, também, quando entramos em uma discussão acalorada com alguém, num conflito que se estende em gritos, berros, choros e nervosismos. Num momento como este, tudo e todos se perdem. Instala-se o reinado das emoções que se descontrolam.

Os sentimentos, por sua vez, também em minha concepção, se configuram como a boa resolução das emoções. Então, no momento em se sente que algo vai explodir ou convulsionar na corporeidade, é preciso buscar a possibilidade de diálogo internalizado. A boa conduta e possível resolução dos sentimentos pode fazer com que as emoções se tornem inteligentes. Em suma, as emoções inteligentes são as resultantes de um processo de autoconhecimento, autocontrole e autoestima, mediados pela consciência que, por sua vez, acalma as emoções deslocadoras do ser. Para quem se entende em um processo de contínua mudança ou identidade fluída, uma espécie de metamorfose ambulante, para fazer deferência ao cantor Raul Seixas, os entroncamentos complexos e confusos pertencentes ao campo emocional dos eventos e das pessoas são tirados de letra.

O contínuo desafio quanto a se viver bem e alcançar o bem-estar é sempre confrontado pelo caudal de situações difíceis que exigem uma postura marcada pelas emoções inteligentes, mesmo quando se é tomado por sensações e percepções diversas que se encontram distantes do entendimento pessoal ou da sempre requisitada zona de conforto. Que fique claro, nada tenho contra as respectivas zonas de conforto. Cada um sabe a sua e deve conquista-la da melhor forma possível. O que não vale é a preguiça para se tornar um ser humano bem equilibrado na dinâmica existencial.

Um dos mais profundos elementos para a elaboração das emoções inteligentes é a empatia. Colocar-se no lugar do outro para sentir o que o outro sente ou, ao menos, percepcionar o que o outro anseia, é um dos elementos mais preponderantes para a organização mental dos sentimentos. Isso evita, por exemplo, o surgimento de anseios equivocados e interpretações apressadas quanto a pessoas que compõem o tecido social. Em outras palavras, torna-se fundamental que o sujeito no auge de sua empatia, não sendo bobo, tenha a oportunidade de se conhecer bem, sabendo dos seus limites, assumindo aquilo que de fato é importante em seu determinado momento da vida.

Particularmente, tenho vivido muitas situações em que as vontades eruptivas do meu próprio ser tendem a consolidar ações que certamente vão criar constrangimentos a mim ou a alguém. Para evitar tais constrangimentos, eu procuro cadenciar as minhas emoções transformando-as em palavras, em narrativas e, até mesmo, em textos que favoreçam a preservação da minha identidade, o que é um grande desafio.

Expressar-se da melhor maneira possível em um ambiente qualquer nem sempre é fácil, mesmo porque as pessoas, em geral, precisam se esmerar em suas pretensas verdades. Mas quem pode ser inteiramente verdadeiro ou honesto com o outro? Ora, uma verdade até pode ser dita, mas ela precisa deslizar amorosamente na vida de outrem. Algo dito de forma direta, sem filtros, pode gerar sentimentos desconexos e interpretações díspares. Todos nós, sem exceção, somos seres da contradição e dotados de identidades fluídas. Sendo assim, o sentimento de impermanência e transitoriedades, tão comum também à natureza que organiza caoticamente este mundo e suas polissemias, é respeitado em alto e bom tom.

Enfim, eu gostaria muito que cada um de nós pudesse privilegiar o seu melhor lado, evitando a defesa aguerrida de pontos de vistas que não são, necessariamente, particulares; evitando-se as alterações de voz; evitando-se a raiva; evitando-se os ressentimentos, cadenciando as situações de forma tal a que não se perca a idoneidade de quem se é na essência, deixando vazar desnecessariamente, e somente, a aparência. Nunca é pertinente a exposição efêmera a quem não é interessante a revelação íntima do ser. Nunca é pertinente deixar de se viver bem com a consciência pessoal, exalando pelos rincões deste mundo as emoções inteligentes e os sentimentos bem resolvidos.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

DIA 53 - Solidão para quem precisa dar tchau à solidão

 


Será possível sentir a solidão mesmo em convivência com outras pessoas? Qualquer resposta premeditada seria ridiculamente idiota. Talvez, sim! Talvez, não.

Com este dilema no córtex pré-frontal, eu analiso os encontros solitários que ocorrem nos desertos existenciais. Para os incautos, uma singela consideração: o deserto é um lugar para poucos. Em especial, somente suportam as areias no deserto aqueles que se preparam para ele ou os que são forçados a vivê-lo, mesmo contrariados.

Há, indubitavelmente, uma relação muito próxima entre a solidão e o deserto que, metaforicamente, pode ser considerado a habitação da alma. A alma, se a concebermos como os gregos a concebiam, é o campo da psique e da subjetividade humana, ambiente paradoxal e desértico onde os desejos, os cerceamentos e as possibilidades se agitam continuamente em busca das respostas às perguntas insolúveis. No silêncio da solidão desértica a alma perambula como se fosse aventureira desbravadora. Ela só e todos sós com os pés descalços na areia quente.

A solidão que visita cada ser relaciona-se às dimensões psíquicas. É a solidão em se ter muito para oferecer ao outro sem a oportunidade de partilha. É a solidão de desejar a comunhão da partilha quando não se tem espaços ou motivos para ela. É a solidão que insiste e até persiste em ser quando não há possibilidades para ser. Mas, quem sabe, depois das chuvas, o arco-íris dê o ar da sua graça?

Em meio aos temores, a ansiedade não será ofuscada pelo sentimento de nada ser, nada poder. Na solidão, o desprezo requererá motivos para o ajuntamento e a possibilidade de sonhar com um novo tempo, uma nova vida.

Sei que muitos não conseguem ver a luz no fim do túnel. Ao contrário, tudo lhes parece cinza e sem definições. Nessa paleta de uma cor e algumas tonalidades, tudo pode ser e nada tem razão...

Somos todos solitários em busca de algo que, por estar tão ao nosso alcance, não podemos avistar. Somos assim solitários como Tales de Mileto, que sendo filósofo, teve a oportunidade de prever um eclipse, mas não conseguiu perceber o buraco diante de si. Caiu no buraco e foi ridicularizado pela mulher de Trácia.

E assim, a solidão continua a doer e provocar feridas profundas em todas as pessoas que, não tendo medo da dor provocada pelas feridas, fogem das feridas sem dor e sem cuidados. Optam, muitas vezes, pela caverna, o recôndito envolvido de trevas e obscuridade. Quem sabe um tempo de esquecimento do que se é, do que se faz, do que se almeja para mergulhar no abismo do silêncio e provocar o misto paradoxal do prazer, fugindo da autocomiseração. A solidão se compromete com a solidariedade e a solidariedade avilta-se com os jornaleiros da vida.

E nessa jornada efêmera e comprometida somos peregrinos, somos companheiros, somos talvez... e coisa alguma possuímos. Lançamo-nos ao inusitado da existência, sendo afrontado pela dimensão lúdica, vivendo ou morrendo como quem, mesmo em meio à solidão, continua acreditando na vida.

De uma maneira mais particular, vivi a solidão no primoroso tempo da adolescência, onde o amor dava os seus primeiro berros. Lembro-me que aprendi a tocar violão com as músicas que povoavam a cabeça da maioria dos meus colegas e amigos. Era a década de 80. Titãs, Barão Vermelho, Legião Urbana, entre outros. Além das tradicionais bandas de Rock, eu gostava também da irreverência da Blitz. A voz estranha de Evandro Mesquita era interessante de ser ouvida porque apresentava, ele mesmo também, a referida irreverência.

E nesse processo de aprendizado, cansei de ensaiar a música que tinha por título: A dois passos do Paraíso. Seu início: “Longe de casa, a mais de uma semana. Milhas e milhas distantes do meu amor...”. De alguma forma, todas as pessoas, física ou emocionalmente, sempre se encontram a milhas e milhas dos seus amores. Mas distância alguma nesse mundão pode afastar pessoas que se gostam. A subjetividade e a efemeridade do amor ganham na jornada dos dias uma dimensão real inexplicável, que toca a alma e se concretiza num sentimento profundo de presença ausente, típica dos amantes dados à poesia.

Sinto que mesmo a milhas e milhas de distância, não posso impedir que os desejos se misturem, evidenciando o toque das almas. O acontecimento amor precisa ser eivado do carinho dos namorados e o desejo ardente dos amadores.

No cotidiano, quando se recebe a visita da solidão, é preciso sentir a pessoa amada bem próxima, como se fosse a presença de uma fada cuidadosa e zelosa. Todavia, é preciso se desfazer rapidamente dessa imagem pueril, pois o desejo pela beleza tem que deixar tudo bem vivo. Quando longe de casa, torna-se urgente desejar o envolvimento dos abraços, o toque dos beijos e a delícia das falas cheias de bobagens ditas à borda dos ouvidos.

Invariavelmente, um ser só é uma pecinha que falta no outro ser. Uma pecinha que sem a sua parte maior não funciona. Assim, é preciso uma mútua redescoberta como numa primeira vez, quando uma pessoa toca outra pessoa, sem distinção de gêneros ou orientações. Em meio aos gemidos e sussurros do prazer, o mais íntimo, importa se pertencer ao outro com o amplo direito de se perder para se achar em quem está próximo.

Nessas horas, dizer que se ama é muito pouco. Na verdade, no gosto e no gozo, amadores fazem estrelas e apequenam o planeta azul dando tchau à solidão.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

DIA 52 - E por falar em prioridades...

 


Eu sempre tenho abordado em meus textos e em minhas palestras sobre a importância de não vivermos de forma automatizada na complexidade do tecido social. Essa premissa assertiva objetiva, simplesmente, a possibilidade de favorecer a organização da vida nas respectivas agendas do nosso cotidiano, afinal de contas, como nos remete a sabedoria milenar, “há tempo para todas as coisas”. Tudo o que ocorre na face deste planetinha chamado Terra se qualifica dentro de um ciclo contínuo dos ventos e das águas que não pode ser controlado. Todavia, em tempos quentes como os que estamos experimentando na atualidade, condicionamos os ventos em ventiladores e as águas em tubulações e recipientes. Mas, ainda assim, são entidades libertas e que não podem ser controladas.

Diante do importante fato de que não podemos controlar os entes, tampouco a nossa própria existência, torna-se fulcral pensarmos no parco estabelecimento das prioridades, pois a vida requer uma mínima organização em suas demandas. Em que pese a possibilidade de navegarmos em um rio contemplando todas as belezas naturais que se revelam aos nossos sentidos, não podemos nos eximir ao fato de que alguns aspectos precisam ser percepcionados de forma mais atenciosa. Há instantes que são únicos e devem ser fotografados pela retina. Da mesma forma, há demandas que precisam de considerações mais reflexivas, pois se tornam fundamentais para os alicerces existenciais.

Entretanto, o que vem a ser prioridade? Segundo o dicionário: “prioridade é a condição de algo que necessita correr de maneira imediata, preferencial ou emergencial. Normalmente, a prioridade está relacionada a algo importante que ocorre em primeiro lugar, quando em uma relação com outras questões, sejam de tempo ou de ordem”. O psicólogo humanista Abraham Maslow nos oferece uma perspectiva muito interessante ao apresentar a sua pirâmide de necessidades. Sua teoria é conhecida como uma importante teoria de motivação.

Em sua premissa, as necessidades humanas se qualificam em uma escala de valores que devem ser transpostos. Em outras palavras, no momento em que uma pessoa vence uma necessidade, outra sobrevém em seu lugar de acordo com a importância e a influência. Os cinco níveis a serem superados são: Necessidades fisiológicas básicas (respirar, comer, beber, dormir e transar); Necessidades de segurança; Necessidades de associação (harmonia relacional e afetos); Necessidades de Autoestima (dignidade, respeito, prestígio e reconhecimento) e Necessidades de realização integral (ser autônomo e fazer o que se gosta). No aprofundamento dos seus estudos, Maslow identificou ainda outras duas necessidades adicionais: a Necessidade de conhecer e entender (conhecer e entender o mundo ao seu redor, as pessoas e a natureza) e a Necessidade de satisfação estética (beleza, simetria e arte em geral). Sobre esta última, Maslow expressa:

"Um músico deve compor, um artista deve pintar, um poeta deve escrever, caso pretendam deixar seu coração em paz. O que um homem pode ser, ele deve ser. A essa necessidade podemos dar o nome de auto realização.” Abraham Harold Maslow (1908 - 1970).

 

Com base na ideia da pirâmide das necessidades de Maslow, podemos estabelecer algumas prioridades com base nos objetivos que pretendemos alcançar sem sermos seduzidos pela euforia do sucesso. A finalidade de visualizar as prioridades é fundamental, pois no processo de elencar aquilo que tem que vir antes ou depois, a orientação básica deve sempre se perguntar pelo que é importante e/ou urgente. Essa dinâmica ajuda cada pessoa na identificação daquilo que é a prioridade. Ora, existem coisas que são importantes e urgentes; outras que são importantes, mas não urgentes; outras, ainda, que são urgentes, mas não importantes e outras, enfim, que não são importantes e nem urgentes. Brincar com estas ideias ajuda cada ser em uma mínima organização das prioridades. A organização não significa o estabelecimento de um processo automatizado, mas do reconhecimento à luz de nossa própria existência, das situações que podem nos favorecer na complexidade dos dias vividos, a fim de que o bem-estar pessoal se estabeleça na dinâmica existencial.

Imaginemos psicodramaticamente uma dinâmica: encontramos uma lâmpada mágica e nela um gênio. Este vai nos dar a oportunidade de fazermos rapidamente três pedidos concretos, oriundos dos nossos desejos. Será que estaríamos preparados para fazê-los ou titubearíamos? Será que teríamos em claridade o que, de fato, desejamos em nossa interioridade? Será que saberíamos, de fato, quais são as nossas prioridades?

Diante de uma possibilidade tal como esta, seria salutar que as necessidades e as prioridades de cada ser estivessem na ponta da língua, para que pessoa alguma seja surpreendida quando visitada pela surpresa.

Enfim, o estabelecimento das prioridades não pode ser assumido como uma camisa de forças, mas como uma orientação para que os horizontes não se percam, pois como bem disse o Gato Cheshirepara a Alice: “Para quem não sabe aonde vai, qualquer caminho serve”.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

DIA 51 - O bufão nosso de cada dia

 


Na chamada e reconhecida Idade Média, a figura do bufão se evidenciava nos palácios e se caracterizava como uma representação alusiva ao contrário da realidade aparentemente revelada. De fato, o bufão era uma figura marginal cuja fala era destoante e, ao mesmo tempo, proibida e ouvida por todas as pessoas próximas. Encontrava-se sempre na oposição do que era assimilável socialmente.

Geralmente, o bufão possuía uma deformidade física ou era uma pessoa com nanismo. A deformidade física era percebida como uma espécie de afronta ao comum ou ao relativamente comum. Além disso, estava sempre vestido de uma forma não usual para chamar, ainda mais, a atenção das gentes. Segundo a Escola de Teatro de São Paulo, o termo bufão se refere a:

 

Uma figura dramática marginalizada da idade média, uma espécie de palhaço caracterizado entre o grotesco e o charme; era utilizado para se referir a pessoas muito feias ou com algum tipo de deformidade. Os bufões zombavam das pessoas consideradas “bonitas” e também criticavam os setores dominantes da sociedade, tais como o Governo, a Igreja e a burguesia. Típico da dramaturgia cômica, o arquétipo concentra em si a manifestação exagerada dos sentidos humanos. O bufão também é popularmente conhecido como o ‘bobo da corte’ ou o ‘arlequim’’’. Transgressor das regras sociais, ele utiliza muito do desprezo, ironia e da desinibição em suas representações. (Disponível em: https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/o-que-e-bufao).

 

Ora, é factível pensar que todas as pessoas possuem um lado arquetípico bufônico em suas vidas, uma personalidade distinta das que são naturalmente percebidas pelos outros na complexidade do tecido social. Aliás, todas as vezes que nos surgem sentimentos os mais diversos, principalmente os marcados pela “loucura” ou por desvios que se estabelecem sem as máscaras, sem as fantasias ou sem nenhum tipo de aprisionamento, o bufão se evidencia desfraldando a realidade de sua persona mais autêntica e mais interiorizada. O lado bufônico de cada um de nós revela a livre expressão do ser e a ausência da mínima possibilidade de se querer fazer média com qualquer pessoa que seja. Ao mesmo tempo, não se afina com a manutenção dos poderes desta ou daquela autoridade. Ao contrário, ri e gargalha do poder.

Na dinâmica do amor como um acontecimento, a presentificação do bufão que há em cada um de nós concebe a realidade que se dispõe diante dos olhares através de formas (i)lógicas e despudoradas. O bufão em seu espaço de espontaneidade inadequada, eivado de liberdade na dimensão do amor, pode dizer muitas coisas e apresentar possibilidades e situações outras que chocam e subvertem as realidades que se encontram cristalizadas.

Eu entendo que pessoa alguma deve aprisionar o seu bufão interior, especialmente se existem nos horizontes utópicos emocionais a possibilidade da manifestação do acontecimento amor. Aliás, a estrutura existencial de cada pessoa não pode prescindir a manifestação bufônica. A lida diária e todos os seus inconvenientes requer uma boa dose de comicidade e bom humor, especialmente na dinâmica relacional, quando o cotidiano é embotado e a vida fica embrutecida, desembocando no desequilíbrio das relações que envolvem as palavras e os gestos. Nas dinâmicas internalizadas, pode-se considerar o entendimento das regras, mas, também, a abertura para a manifestação do sempre estranho habitante de outro mundo que vive em cada um de nós, aquele capaz de desorganizar a vida relacional, dando-lhe novo sabor.

Mais do que sentimentos, o amor, ou o que se pode entender dele, refere-se a múltiplas atitudes que ocorrem entre duas pessoas ou mais. É um acontecimento que extrapola as relações sociais. No fundo, o que pensamos ser o amor é o nome que a gente dá a um monte de coisas que a gente sente ou fala e não entende. Existe coisa mais bufônica do que esta?

Essa perspectiva pode favorecer o convite a que cada pessoa se abra à propensa discussão internalizada sobre o significado do desejo e do prazer na corporeidade. Ao amar, o amador ou amante não pensa em outra coisa a não ser em seu próprio bem-estar, seu estado de satisfação. Essa coisa assimilada pelas pessoas de que o amor é uma entrega ou um cuidado é pura balela. Se assim entendemos, nos depararemos com a fragilidade que é existir e viver o amor em suas múltiplas formas, configurações e manifestações. E está tudo bem, dentro dos conformes.

Essa característica camaleônica das emoções e dos sentimentos em cada um de nós se encontra diretamente coligada às relações afetivas e, mais do que isso, à autêntica expressão do amor que encontra maior e mais significativa expressividade em sua manifestação bufônica. A pessoa que vive expressando o amor não pode prescindir uma boa dose de “loucura”. Como diria Nietzsche: “Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura”.

Portanto, acho que todas as pessoas deveriam se permitir mais a alegrai e a posse de coisas leves, sem a tônica da cobrança, sem o receio do desajuste ou o medo de passar vergonha. Anula-se o melhor da vida quando se provoca o aviltamento das possibilidades do ideal de liberdade ou então, quando se perde a precisa intensão de se querer viver como quer, dentro das múltiplas possibilidades ofertadas pela vida. É preciso um pouco mais de desordem ao caos que imaginamos ou vivemos. Nada de valorizar a seriedade e a severidade da vida. Abraçar a comicidade inusitada é o que abre o amor em diversos paralelos desconexos. O bufão nosso de cada dia precisa quebrar o nosso cotidiano e oferecer outra lógica que não seja tão pesada a nós, mesmo que seja brega e cafona.

 

 

domingo, 26 de novembro de 2023

DIA 50 - Delírios de alguém que não deu certo... Ou será que...

 


A vida não obedece a planos. Então, pra quê fazer planos? Que a minha sina me mantenha andarilho, vivendo metamorfoses contínuas.

Ando sem paciência para me sentir lapidado por qualquer ferramenta afiada, oriunda de qualquer ourives. Quero o meu estado bruto, que como fruto maduro e viscoso, é acolhido e comido sem bestagens, a boca toda lambuzada. De pecado se lambuza a minha alma, sombra andaluz sem cheiro e sem curvas que acaba me seduzindo.

Mergulho em lagos profundos cheios de olhos estranhos para me estranhar num corpo que se pretende livre. Quero poder respirar, e sem pirar, aspirar o intenso perfume em minhas narinas dilatadas. Preciso me perder para me jogar em jorro puro de te(n)são definida. Que me acolha e me recolha o puro lago de águas plácidas.

Enquanto o sino da catedral bate, reflito o amor cuja crença me desacredita. Vejo o instante da dor e a dor do instante, sangria que escorre no rito. Subo o monte com uma vela acesa, para rever toda uma vida afetada. Almejo cuidar das minhas tardes e manhãs, enquanto a vigília na noite e da madrugada me atiçam a imaginação e escondem o meu sono. Já não quero viver a metade da metade, pois detestaria reviver o meu refém reprimido.

De asas abertas, como anjo ou demônio, lanço-me ao abismo sem caminho do carinho. Talvez, devotar os meus afetos bem vivos sem expor a dor da existência. Nem sempre insisto, às vezes resisto. Gosto do simples do dia.

Não quero o amor de Romeu,

tampouco a paixão de Julieta.

Ela morreu de amor.

Ele a seguiu, cegueta. Minha constatação é racional, pois a morte é e sempre será a minha conselheira.

Não nutro apelos quanto ao mal, quero o toque real e sensível de qualquer maneira, aquela que me auxilie a encontrar os fragmentos da minha solidão insólita.

Vivi em Paris os momentos de uma brisa fria, melancólica. Sozinho, vivência desértica e cheia de luz. Já não falo de paixão ou amor, minha homeostase é eclética. Às vezes, sinto-me em horror de bicho. Emboto-me, bem desconstruído num fatídico caminho de pedras pontiagudas. Disfarço, afugento o labor moído e rabisco o meu velho pergaminho de papiro. Aproximo-me de pessoas que me encantam para rebuscar as explosões de vida, das inteligências pensantes e pulsantes que emanam das íris dos que tem gosto de vinho licoroso na boca. Meus olhares fazem figa. Querem os belos momentos vividos em outros tempos. Perdi os lamentos e não choro lágrimas.

Há linhas na palma de minha mão e elas não querem dizer coisa alguma. Ainda desejo viver pra cuidar dos meus sintomas. Tomo o cuidado para não esconder os meus monstros grandes, fortes e cafonas. Ainda ouço o meu pai me dizer que um homem tem que arcar com as suas calças. Isso ecoa em minha mente diuturnamente.

À noite, a poeira se faz valsa ou, quiçá, pó ardente, talco aderente. O único repouso que eu encontro está na expressão: eu não sei! Apego-me a tais palavras de real confronto como se fossem um bálsamo para um guerreiro ferido. Recluso em minha lida, sigo questionando os meus medos. Não sei onde estão.

Alguns cavalos empurram a minha viga enquanto me vingo de mim mesmo. Não tenho certezas do futuro. Não posso mentir sobre isso. Amor se faz num monturo. Não crio expectativas e todas as minhas certezas se foram para um saco todo fodido. Nem fé eu tenho mais. Um cadinho de teimosia. Rasgo as páginas do livro lido e sem dinheiro no bolso, caminho sem perspectivas, tentando me sentir um áulico com decente dignidade.

Já remei tanto na vida, mas acho que morrer na praia é pura maldade. Talvez, eu tenha desmaiado ou morrido. Desiludido, sabe? Disfarçar as minhas agonias e sofrer é meu marco temporal.

E por favor, não me digam do meu potencial e nem que sou um cara legal. Flutuo ao vento, nem sei pra onde vou. Não dou conta de mim, tampouco de ninguém que me frustre. Na reta final, tristezas num tempo real.

Ainda respiro, almejando escrever um livro bem ácido, daqueles que escorrem num abismo. O rosto está plácido, mas o corpo está aplacado pelas bobagens de alguém que, para a sociedade em geral, não deu certo.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

DIA 49 - Pela simplicidade da vida...

 


Quando eu estava nos anos escolares, mais especificamente no Ensino Fundamental II, eu gostava muito das operações matemáticas que simplificavam números e frações. Eu que nunca fora muito afeito aos ordenamentos lógicos, acreditava que aqueles processos de simplificações favoreciam as minhas formas de ler e conhecer mais claramente a própria ciência matemática. Todavia, o meu encanto pela “bendita” matemática ficou por aí mesmo. Hoje eu a utilizo como arte. Tá de bom tamanho.

Passados os anos, já caminhando pelas ondas da maturidade, vi-me influenciado por uma série de perspectivas e olhares que me convocavam para a urgente e importante ação de simplificar a forma como a vida se me apresentava. Consciente das muitas demandas que me abordavam, especialmente as que ocupavam os meus pensamentos e as minhas reflexões, me debatia frente ao gasto insano da minha energia vital e psíquica com problemas e situações que não me traziam acréscimo, tampouco sentido. Passei, então, a investir naquilo que realmente eu considerava importante para mim. E o importante era a simplicidade mais simples e simplória.

Enquanto muitas pessoas se gastam, pensando em comprar isto ou aquilo ou pensando em fazer esta ou aquela viagem, coisas interessantes obviamente, mas não vitais, eu me propunha a andar na contramão – nada de me gastar ou gastar com algo. Em tempos de convocação para o consumo desenfreado, eu insisto em querer aliviar os pesos mortos – talvez dezenas de paralelepípedos – da minha mochila, pois em minha jornada, seja ela qual for, almejo andar leve, quase flutuando.

A pergunta basilar que me acompanha é a seguinte: do que realmente preciso para viver bem? Será que a compra de um novo automóvel me faria viver bem? Será que a aquisição de um apartamento na orla de uma praia me faria viver bem? Será que uma viagem internacional me faria viver bem?

Ora, não tiro o mérito dessas possibilidades e conquistas triviais, mas todas as dimensões alusivas a uma conquista material possuem prazo de validade. Tudo o que existe neste universo possui princípio, meio e fim. Só na música do cantor brasileiro Fábio Júnior é que o amor não se configura como uma história com princípio, meio e fim. O fato é que todas as conquistas chegam, mas, também, escorrem das mãos, por entre os dedos.

Além desta constatação, gostaria de destacar que a simplificação da vida pode favorecer a quebra da ansiedade, porque se uma dada pessoa não alimenta a necessidade de se suprir com múltiplas parafernálias, objetos, sonhos remotos ou coisas do gênero, poderá gastar o seu tempo para o cultivo do que realmente importa, ou seja, para ser quem é. Com essa conquista, tornam-se desnecessários 13 pares de tênis ou 172 camisas ou, ainda, 18 litros de perfume. A verdade é que coisa alguma é suficiente para fazer uma pessoa se sentir bem e feliz. Ter-se o básico para uma pequena diversificação no cotidiano é mais do que o suficiente.

No fundo, quando alguma pessoa compra para si algo, muitas vezes não compra por necessidade. Talvez, o que mova uma determinada pessoa a adquirir o que não precisa seja o desejo de revelar ao outro o seu poder de compra. Todos os dias, o sistema de mercado lança nas mídias em geral diversas novas opções para o consumo. Visam despertar o desejo, a fim de que as pessoas gastem os limites dos seus cartões de crédito ou economias com produtos que aparentemente favoreçam o bem-estar pessoal. Aqui, vale aquela velha premissa tão bem abordada por Erich Fromm e outros pensadores, a saber, de que é mais importante ser a ter.

Diante da vida social e seus prazeres, cada pessoa precisa apreender melhor o seu processo de simplificação. Nada melhor do que se assentar em uma cadeira e com a alma sossegada, contemplar a viva natureza que se revela exposta a cada um, permitindo que ocorra a simbiose e a inundação de uma tranquilidade contínua que aglutine o segredo da boa vida ou da vida boa. Tal vida se resume justamente na consideração de que tudo é muito simples, lindo e complexo. E está tudo bem. Por que matar-se tanto com as atividades rotineiras dos respectivos trabalhos desempenhados? Por que perder a oportunidade de festejar ou celebrar a vida, divertindo-se sem limites? Por que deixar tudo tão chato, assombrado e estranho? Aliás, eu detesto a chatice dos dias. Eu gosto mesmo é de coisas novas e se elas não me chegam, eu as crio.

Portanto, acho crucial que cada pessoa encontre em seu cotidiano as possíveis formas de leveza. Talvez, dessa maneira, a gente encontre o segredo de vivermos mais livres e soltos, como flores e passarinhos. Já que cada pessoa é nada mais, nada menos, que uma faísca no meio do incêndio, eu entendo ser coerente assinalar a ideia de se investir em um novo olhar sobre as dimensões existenciais com a simples vontade de se perceber o quanto de beleza, esplendor e simplicidade elas contém. Beleza, esplendor e simplicidade similar ao bater de asas de um beija-flor entre as flores cheinhas de néctar.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

DIA 48 - Incômodos quanto à violência contra a mulher...

 


Nem todos os dias em que temos a oportunidade de viver são bons e tranquilos. Continuamente, experimentamos as variações que ocorrem no desenrolar dos segundos, dos minutos e das horas; da aurora ao crepúsculo.

Nestas variações, somos aturdidos por problemas, os mais diversos, cujas perspectivas podem provocar o desequilíbrio emocional. De fato, as dificuldades que ocorrem com cada um de nós são inerentes à nossa condição de seres viventes neste mundo. Aliás, não existe absolutamente coisa alguma que aconteça conosco que não seja pertencente às esferas existenciais nas quais estamos inseridos. Obviamente, muitos destes acontecimentos nos incomodam profundamente.

No atual momento da minha vida eu tenho me sentido bastante desconfortável com as formas pelas quais os homens se relacionam ou tratam as mulheres. Eu aqui me incluo, pois não sou melhor do que qualquer um dos homens e nem me considero assim. Não sou um exemplo para qualquer pessoa alheia seguir. Todavia, vivo a sempre viva insistência pela condução de minhas posturas mais pessoais de uma forma tal que as minhas convicções sejam razoavelmente coerentes. Não posso abrir mão da elegância e da gentileza para com todas as mulheres, tanto as próximas como as distantes, indistintamente. Mesmo com essa minha insistência pela coerência, não me sinto ou me vejo como um arauto dos relacionamentos perfeitos, nem mesmo nas horas em que fui convocado a sê-lo. Sei dos meus podres e posso conta-los a quem de direito, um a um, acompanhado, obviamente, de uma gelada e alguns deliciosos petiscos numa mesa de bar.

Acontece que, por uma razão lógica, sinto-me um artesão e, como tal, eu procuro desenvolver a minha obra de arte relacional da melhor maneira possível, sem uma preocupação quanto ao êxito final. Como um bom artesão, faço o que posso dentro das minhas limitações, com o que tenho e no momento oportuno. Gosto de assim sê-lo. Dessa maneira, talvez, eu possa oferecer um pouco do que é melhor e mais autêntico em mim mesmo ao que me circunda.

Mediante esta postura, o que almejo oferecer? Sem ser pretencioso, almejo apresentar algumas possibilidades em meu viver que possam favorecer a reflexão em torno do aumento da gentileza dos homens para com as mulheres. É crucial que os homens em meu entorno ampliem as suas visões para que alcancem uma maior consciência de quem são e de como podem melhorar as suas formas de cuidado para com as mulheres em geral.

Este autoexame é fundamental para que se evitem litígios e discussões indevidas contra as mulheres.  Infelizmente, muita violência é gerada dentro das casas. Muitos homens intimidam as mulheres de formas verbal, física e psicológica. Batem e até estupram as mulheres com as quais se relacionam. Há estupros no casamento. Como é cruel recebermos as notícias pelas mídias apontando as situações em que as mulheres são completamente expostas em situações constrangedoras.

Na minha atuação como psicólogo tenho acolhido diversas mulheres de várias idades e de vários amores, e todas elas trazem os seus respectivos relatos quanto aos maus tratos, abusos morais e abusos sexuais. Quando acolho as narrativas, não consigo me eximir ao fato de sofrer empaticamente estes níveis de violência. Atônito em meus pensamentos e corado de vergonha, fico cabisbaixo e angustiado, especialmente por muitas pessoas – mulheres e homens – acharem que tudo isso é normal. Toda e qualquer violência contra a mulher é a prova visível e cabal de que fracassamos como sociedade e como família.

Enfim, eu espero sinceramente que no decorrer dos tempos, mediante os acolhimentos oferecidos por mim no setting terapêutico, as palavras se transformem em ações e estas ações favoreçam a conquista dos direitos das mulheres. As mulheres pelas mulheres e os homens se sensibilizando mais, evidenciando o respeito e as palavras gentis, se responsabilizado, também, por esta luta. Toda a sociedade precisa renunciar às possibilidades trágicas e violentas que se anunciam às mulheres em suas vidas cotidianas, a fim de que, com os olhos trocados com o outro, provoquemos e proporcionemos paulatinamente o desenvolvimento de um olhar mais integral e mais humano. De todos para com todos, favorecendo a igualdade de direitos.

Ao final, quem ganha somos nós e a vida boa aplaude.

 

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

DIA 47 - Duvido do amor! Que ele seja eterno enquanto hard...

 


Eu duvido do amor!

E quando duvido, questiono!

E quando questiono, complico!

E quando complico, viajo aos interstícios de mim mesmo,
para encontrar com o que, talvez, nunca seja parte de mim mesmo ou que seja o todo do meu todo, em minha plenitude.

Plenificado de nada, singro o mar dos meus pensamentos desconexos em uma jangada já desgastada pelo tempo e pela lida, ansiando a insanidade dos fragmentos que me foram adicionados por pessoas que eu encontrei nos corredores apertados desses canais da vida, os mais diversas. Algumas eram próximas, outras bem distantes. A maioria era amistosa, algumas poucas bem cruéis. De todas elas, recebi a afetação sem anfetaminas, enquanto o rio caudaloso que eu filosoficamente observava me ensinava sobre o sentido sem sentido da existência e seus fluxos nômades.

O rio, nem tão rio assim, fazia-me rir, pois era nada mais que um riacho. Diacho! Ele tinha amor ao amar e desejava perder-se no seu objeto amado para nunca mais ser o que sempre foi. Expressava assim, mediante o mavioso dançar das águas em correntezas e redemoinhos a indicação do seu destino, cujo destino era não ter destino algum.

Todas as coisas se fazem e se refazem em seus ciclos e a água, este ser extraterrestre que habita este planetinha de fazer rir, tão grandioso em suas bobagens e guerras sem razão, viaja livremente pelos céus em nebulosas formas disformes,  para desaguar onde quiser, banhando plantações ou inundando cidadelas, casas e favelas, sem pedir permissão. Mesmo quando impostas às garrafinhas plásticas, nada as detém. Livram-se daqueles recipientes transparentes para em suas transparências habitarem os obscuros dos abismos oceânicos, das profundezas dos rios e das corporeidades humanas. Enquanto faço a água circular em todo o meu corpo até o momento de libertá-la de mim, num ato compulsório e gozoso, experimento toda esta louca dimensão dos ciclos nos quais estamos condenados a coexistir.

Mergulho frente a onda altiva e penetro toda a sua vaga salgada de areias remexidas, para me rever do outro lado de suas correntes sem certezas. O mar não tem cabelos...

Percebo como a existência congela a coluna vertebral, provocando os encontros e os desencontros entre as gentes dos diversos continentes.
Em várias casas, dores.

Em cada uma das dores, sofrimento.

Em cada sofrimento, a singularidade dos sabores daquele fruto proibido no paraíso, nunca dantes encontrado, sempre telúrico e perdido.
Um casal se beija na rua. Pós e poeiras misturam-se nas bocas molhadas de salivas.

Outro anda cabisbaixa-mente, sem dar as mãos. As algemas sentimentais parecem já fracionadas e um restolho de afeto agride ainda a alma.

Um terceiro conduz criancinhas que deveriam fazer um pacto para serem escondidas pelo próprio tempo.

Um quarto está desiludido com a ilusão plantada ao longo dos anos pueris e adolescentes. Seu quarto foi pintado com as cores da desilusão e sua cama desabrochou-se silenciosa, aflita?

Um quinto se agride em palavras e gestos, não necessariamente nesta ordem. Palavras fazem mal quando “mal-ditas”. Fazem bem quando “bem-ditas” na boca da criancinha em seu arrolhamento com hálito de leite materno.

A mulher expõe o seu seio para alimentar o mundo, dando contornos de sensibilidade ao amor em seu fragmento de dádiva. No gesto sereno de pura dádiva ao infante, por sua vez, aguerrido em suas sucções e mordiscadas junto ao seio túrgido, a vida vai se entranhando, se estranhando e se emaranhando em figuras nada geométricas riscadas em situações e circunstâncias que não cabem nas profundidades obscuras dos oceanos, complexificando a vida.

Os relacionamentos que emaranham a vida são mais complexos ainda, pois poliedros eivados de diversos ângulos e lados.

É preciso bailar os dias no céu, revelando, de tempos em tempos, seus pirilampos de luz. Tudo é tão próprio, tão singular.

Gosto de me aninhar de novo em minhas dúvidas, a fim de respeitar, até mesmo, o ciclo que ocorre em torno do sol.
Quero me seduzir de mim mesmo para experimentar o encantamento da nudes do amor que eu duvido, mas que se reflete em minha crua retina.

Eu, de mim mesmo, continuo a me debater frente ao amor, aquele mesmo que eu questiono. Enquanto assim questiono, teimosamente insisto em fazê-lo acontecer nas finas teias relacionais que me envolvem continuamente em meu cotidiano, tentando fazer como bem sugeriu Vinícius de Moraes, o "poetinha": que o amor duvidado seja eterno enquanto dure, ou enquanto hard...

terça-feira, 31 de outubro de 2023

DIA 46 - Temos mais onze meses para o "Outubro Rosa"

 


Chegamos ao final do mês de outubro, mas não ao final do movimento internacional de conscientização para a detecção precoce do câncer de mama. Outubro emoldurou as ações batizadas pela alcunha de “Outubro Rosa”. Originalmente, quem lançou esta campanha foi a Fundação Susan G. Komen for the Cure, em 1990 e ela se configura em vários países do mundo. De nossa parte, em nosso pequeno microcosmo, na condição de psicólogo ligado ao CRAS perante os desafios da saúde mental, acompanhamos de forma direta ou indireta as ações que objetivaram compartilhar informações e promover a conscientização sobre o câncer de mama.

Ora, o câncer de mama é o tipo que mais acomete mulheres em todo o mundo. Cerca de 2 milhões de casos novos ocorrem estimativamente a cada ano. No Brasil, o surgimento de novos casos gira em torno de 60% para cada 100.000 mil mulheres. Infelizmente, o câncer de mama ocupa o primeiro lugar no ranking de mortalidade de câncer entre as mulheres no Brasil. As maiores taxas de incidência e de mortalidade estão nas regiões Sul e Sudeste, onde há uma maior aglomeração. Isso levou o Governo Federal a criar a Lei nº 13.733 de 2019, que instituiu o mês de conscientização sobre o câncer de mama – outubro rosa, período em que devem ser desenvolvidas as seguintes atividades, entre outras:

I – iluminação de prédios públicos com luzes de cor rosa;
II – promoção de palestras, eventos e atividades educativas;
III – veiculação de campanhas de mídia e disponibilização à população de informações em banners, em folders e em outros materiais ilustrativos e exemplificativos sobre a prevenção ao câncer, que contemplem a generalidade do tema.

 

Todos os interessados e as interessadas no assunto sabem que não existe uma causa para a aparição e desenvolvimento de qualquer câncer. A doença ocorre por conta de uma conjunção de fatores, os mais diversos. Obviamente que os fluxos nos quais cada um de nós se envolve em determinados ambientes podem contribuir neste processo. Sempre observo o fato de muitos buscarem causas clássicas ou cartesianas para as doenças e as enfermidades, mas, sabemos, toda e qualquer doença possui causas multifatoriais.

Eu entendo que o corpo é o único lugar em que habitamos no universo. E, portanto, ele deve ser cuidado continuamente. A grande receita para o cuidado corporal é muito antiga, e ela se refere à busca pelo equilíbrio em todas as esferas da existência: biológica, emocional, afetiva, sexual, psíquica e social.

Curiosamente, as campanhas do Outubro Rosa tiveram uma abrangência maior no campo virtual a partir da pandemia da SARS-COV-02. Muitas lives e documentários buscaram evidenciar a importância do toque e o acompanhamento a qualquer sinal diferente na mama. Por exemplo, encontra-se disponível no YouTube um vídeo que considera a questão, buscando aumentar a criatividade daqueles que querem ampliar este campo de informação. Disponibilizamos o link ao final do artigo. Obviamente, a inovação na forma de comunicação e abordagem sobre o câncer de mama foi fundamental para a promoção da saúde da mulher e de alguns homens que também podem desenvolver este respectivo câncer.

Todavia, o que me levou a escrever este texto neste dia, mais do que enfatizar mais uma vez a importante campanha no mês, é a de alertar os cidadãos e as cidadãs a se alinharem continuamente em ações que não se permitam qualquer nível de paralisação. É preciso que a conscientização seja contínua em todos os outros onze meses e que todos, indistintamente, acompanhem os avanços do Instituto Nacional de Câncer – INCA.



Hoje, dia 31 de outubro, afirmo contundentemente que as campanhas de conscientização para a prevenção do câncer de mama devem continuar. Mais do que isso, serem ampliadas no cotidiano dos profissionais da saúde e de todos os cidadãos e cidadãs que almejam o bem-estar dos seus amores, bem como de todos aqueles que querem viver com ampla qualidade de vida. Em meu ponto de vista como profissional da saúde mental, empenho-me para que preconceitos e barreiras relativas à corporeidade sejam postas de lado, afinal de contas, quando o assunto alusivo à qualidade de vida está em jogo, o que vale é a luta contínua.

Enfim, quero ressaltar que existem exemplos significativos nesta luta. É o caso da pedagoga Keila Ferrari que se dedicou à escrita terapêutica em seu blog: Lua em Primavera, enquanto lutava contra o câncer de mama. Alcançou a cura em 2018, mas no mesmo ano descobriu uma recidiva com metástase no pulmão. Nesta luta, declarou: “Tem dias melhores e outros piores, mas as noites têm sido difíceis, pois bate aquele medo da morte”. Quanto ao blog, afirma: “Tenho buscado dar voz de forma poética a mulheres que passam pelo mesmo problema. É uma forma de expressão, assim como a dança, distrai um pouco”. O blog pode ser conferido neste link: https://professorakeylaferari.blogspot.com/.

 

 

Fontes:

1. Instituto Nacional de Câncer – INCA

2. Union for International Cancer Control (UICC)

3. Repensando as campanhas sobre o câncer de mama. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1UmTPQYrSDE.

 

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

DIA 45 - Imagens refletidas nas sombras irrefletidas

 


Eu me vejo espelhado, mas nem sempre confortável. Prefiro o reflexo das lagoas translúcidas que acolhe em sua lâmina o céu e as suas nuvens, quando há nuvens. Em qualquer delas, reconheço as distorções e os reflexos do que imagino ser real, se é que existe algo real.

De posse do irreal que me habita, tenho fortes impressões sobre o meu eu e elas não são ideais. Revelam-me as minhas sombras e os levianos espectros do meu doar decantador. Reconheço-me como um doador contumaz, especialmente quando o assunto é o acolhimento às pessoas em suas inquietações mais profundas.

Em todo o tempo, eu procuro o meu gozo fortuito peregrinando nas trilhas do meu segundo (in)sano e passageiro. Como transeunte, saliento o meu egoísmo e me cubro com retalhos de pano azul turquesa. Quero destacar-me na avenida das pirambeiras enquanto me escondo em minha mais íntima intimidade e paraliso as batidas do meu coração.

Dizem-me que eu não posso ser egoísta, somente altruísta. Todavia, cansei-me do altruísmo exagerado e sem tréguas, e me lanço à aventura insana de escalar a montanha sem equipamento de proteção. Será que chegarei ao cume? Não sei e nem pretendo saber. Já tá valendo a rota torta que me entorta a coluna e me faz doer a perna direita. Preparo uma pequena refeição leitosa para me deleitar, com alguns cereais e uma carne de sol.

Eu que não fumo, tento deletar a minha fome com uma lasca de pão quase bolorenta, enquanto ofereço lentilhas a qualquer alma faminta que me dê os seus direitos de fêmea. Não nego o que possuo e persigo o meu dilema emocional, sem saber, de fato, qual ele é. A fêmea no cio.

Sei que o mundo gira tal qual uma montanha russa, daquelas radicais que liquidificam sensações. Eu, igualmente, rodopio em um trilho imaginário e agressivo, soberano. Tudo é meu e eu me completo, me bastando sem me considerar um bastardo. Passo a viver assim, sem fazer nenhum plano para ontem, sequer para amanhã. Aliás, agora é a hora do looping.

Completamente atordoado, passo a percorrer os caminhos que me levam à mina de rubis. Quando retorno de seu subterrâneo, meus olhos se sentem agredidos pelos raios de sol da aurora magistral. Não tenho óculos escuros. Meu grau é grandão. Tais caminhos e jornadas trazem o amor e o poder de volta ao self interior, o que sustenta o egoísmo. Na perspectiva do andarilho, experimentar cenários que se modificam e se transformam continuamente. Mudo com eles e colho o pó em ouro puro. Perdi as contas de quantas vezes eu me perdi em minhas andanças.

Adoro perder-me e subtrair-me. Nunca fui muito bom em matemática. Sempre afoito às artes humanas, minha fascinação. Com o ouro, espalmo as minhas mãos, balanço-as ao ar tentando tocar o horizonte que se esvai, dando lugar à dama da noite. Minha boca calada já não quer calar-se, a língua já foi mordida. Junto aos camafeus, procuro me refazer na saudade.

Às vezes, cai sal na ferida, pandemia que arruína Proteus. Eu grito na gruta, luzeiros acesos, agonia que não cessa. O olhar mais perdido agora tenta contemplar a noite sem estrelas e as mãos cheias de purpurinas douradas que não me deixam rico. Enquanto as pálpebras escondem os olhos que ardem, o cansaço visita todo o corpo. O chão empoeirado convida ao deitar-se maviosamente, sem conforto. A garganta já ressecada requer o líquido límpido, incolor e sem sabor.

Nem tudo é dor, e o momento requer posturas eivadas de vivacidade. Nadar no rio é opcional, mas as águas escondem as pedras lodosas. Contusões e feridas podem ocorrer. Preciso repousar e enquanto assim faço, deparo-me novamente com a minha imagem refletida, agora em uma lápide de granito. Ela ainda está retorcida e eu me contorço em sentimentos e desejos vulcânicos. Minha Nárnia pessoal continua viva.


segunda-feira, 23 de outubro de 2023

DIA 44 - O inefável...

 


Resolvi escrever sobre o inefável. De antemão, quero deixar claro que eu sei que é bem paradoxal escrever sobre esta dimensão, justamente pela impossibilidade de situar em um texto algo que não pode ser descrito como sujeito ou objeto, mas como fenômeno. Todavia, entendo que este é um desafio válido.

Segundo os dicionários disponíveis nas redes digitais, inefável significa aquilo que não se pode nomear ou descrever em razão de sua natureza, força, beleza. Trata-se daquilo que é indizível, indescritível e que causa imenso prazer. Em suma, o inebriar-se no pleno encantamento das delícias.

Ao longo dos meus anos de vida e existência vivenciei algumas experiências e percepções que não poderiam ser traduzidas em palavras. Lembro-me que a minha primeira experiência com o inefável se deu no meu encontro com a praia. Eu e os meus pais, juntamente com a minha irmã pequena, fomos ao Recreio dos Bandeirantes no litoral do Rio de Janeiro. Quando me deparei com aquela areia branca e espessa, misturada àquele mar azul dividido por uma pedra ovalada, vivenciei a minha primeira experiência indizível. Na revisita às minhas memórias, considero esta como a primeira manifestação de encantamento da qual me recordo.

O inefável também se manifestou em minha vida nos sonhos, especialmente os que eu sonhava que estava voando. A sensação de voar sobre todos os espaços vivenciais era realmente indizível. Palavra alguma poderia orientar o sentimento que se manifestava em meu ser, mesmo depois em vigília. Na memória se manifestavam o sonho e aquela sensação de liberdade, experimentada pelos pássaros. Obviamente, como um ser em construção, eu nunca pude voar em minha realidade, mas o sonho e sua potente linguagem me impulsionavam a sentir o que não se manifestava em minha realidade. Eu, de minha parte, produzia a arte.

Eu entendo que a experiência do inefável ocorre todas as vezes que temos a oportunidade de focar o momento de uma forma consciente ou inconsciente. Tudo o que percepcionamos de uma forma intensa e inigualável num determinado momento, no aqui e no agora, pode se traduzir em experiência do inefável. Aliás, para mim em especial, é justamente a percepção atenta e intensa no aqui e no agora que garante a experiência do inefável. Nela, não há possibilidades para teorizações cartesianas, somente para percepções e sentimentos profundos nunca antes evocados pelos sentidos. Trata-se da percepção pela percepção, do sentir pelo sentir, do experimentar pelo experimentar de uma forma aprofundada. Em outras palavras, não somente molhar os pés e os tornozelos, mas se afogar nas águas profundas, transparentes ou turvas de um mundo ainda não percepcionado.

Lembro-me de outra experiência do inefável vivida na Igreja de Santo Agostinho em Paris. Fui ao recinto com alguns amigos. Lá, deparei-me com uma orquestra e uma solista que tocavam o coração dos que ali estavam presentes de uma forma absurdamente encantadora. Enquanto cerca de mil pessoas faziam contido silêncio diante da apresentação, a música e a voz da solista faziam os pelos da pele arrepiarem-se. Faltavam-me palavras para descrever o que eu sentia, porque, de fato, eu não sabia o que era ouvir conjuntamente a tantas pessoas que se encontravam em silêncio absoluto, aquilo que tocava a alma de cada uma de uma forma única. As palavras cantadas sequer eram entendidas, pois expressas em latim. Enquanto eu percepcionava todo aquele momento, a melodia, o incenso, o silêncio e as pessoas, brotavam dos meus olhos copiosas lágrimas quentes. Elas escorriam pelo meu rosto. Eu não tinha a coragem de levantar a minha mão direita para enxugá-las, pois elas produziam em mim um sentido que eu ainda não havia sentido. Experiência similar eu vivenciei quando visitei o Jardim de Monet. Foi inefável percepcionar aquela miríade de cores, flores e perfumes. Silenciei a minha alma e fotografei aqueles instantes que para mim se tornaram instantes eternos. As melhores fotografias foram as que impregnaram a minha retina.

Como já afirmei, para mim, a experiência do inefável se revela na profundidade da percepção do momento. Quando eu retornei dos meus estudos no exterior, depois de longo tempo fora do Brasil, tive a oportunidade de “matar” a saudade dos nossos famosos “pãezinhos de sal”. No trajeto entre São Paulo e Juiz de Fora, depois de ter viajado a noite toda, parei em um posto com apoio logístico e restaurante. Pedi um café puro e comi quatro “pãezinhos de sal”, como se fossem um manjar dos deuses. Embora eu cheirasse e saboreasse aqueles pães quentinhos, eu fui muito além. Minhas percepções me levaram a uma experiência do indizível, embora, para muitos, comer “pãezinhos de sal” seja uma experiência trivial, cotidiana e corriqueira.

O inefável não somente tem a ver com o inusitado e novo, mas com o simples e básico. Ele se revela no beijo afetuoso, no abraço apertado, no toque sensível na pele, nos encantamentos que são originados nos brilhos que escorrem dos olhos. Revela-se também na intensidade da entrega, no desejo pelo outro, na vontade pelo bem-estar da pessoa amada, na profundidade do encantamento provocado pelo sorriso solto leve aberto e, obviamente, no orgasmo.

As experiências, complexas ou simples, que não podem ser ditas ou descritas, têm a ver com a percepção do inefável. São como encontros com sistemas planetários que nós nem imaginamos que existam. A experiência do indizível é tão profunda, tão única, tão subjetiva e tão própria àqueles que saboreiam a vida em seu instante-segundo, que nos lançam ao terreno das contradições. Como nos lembra Ferreira Gullar

Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

 

Uma parte de mim

é multidão;

outra parte estranheza

e solidão.

 

Uma parte de mim

pesa, pondera;

outra parte delira.

 

O mundo sem fundo, multidão, estranhamento, solidão, ponderação e delírio só podem ser percepcionados na dimensão do inefável, no encontro do beija-flor com o seu lírio preferido, nas contradições. Enquanto eu tento encerrar este texto, sou surpreendido na rádio pela música “Paralelas” do inesquecível Belchior. Parei a escrita para ouvir a música com os olhos fechados, percepcionado a profundidade do que não poderia dizer ou escrever. Somente senti a música percorrer a minha corporeidade a ponto de eu mesmo querer abrir as janelas da minha casa e gritar bem alto, enquanto o carro passa: “Meu infinito sou eu”.

DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

  Quando eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado c...