terça-feira, 25 de julho de 2023

DIA 31 - Por uma boa dosagem de loucura

 


Um pensamento da psiquiatra alagoana Nise da Silveira ecoou em minha mente, provocando-me e convocando-me a refletir sobre a subjetividade de cada ser e o constante desafio de não se curar além da conta. Há sempre uma boa dose de loucura em cada um de nós e ela precisa ser continuamente preservada. Nas palavras do poeta Raulzito: Somos metamorfoses ambulantes e malucos beleza. Mais do que isso, é preciso ter a consciência ou a inconsciência, tanto faz, de que ser louco é ser feliz e não se preocupar com o que os outros pensam ou dizem.

Em outras palavras, podemos refletir que tudo o que nos constitui é emprestado da natureza que nos cerca: o corpo em que habitamos e sua base material, contém 30% de terra e 70% de água; o fogo que eletrifica os nossos órgãos internos e mantém, por exemplo, o coração batendo ativamente e, enfim; o ar que num contínuo ir e vir nos impulsiona energeticamente para as diversas ações que efetuamos. Então, o que de fato pode ser considerado nosso ou meu? Que posse nós temos nessa nossa existência? Ora, somos seres totalmente moldados pela natureza e, também, os únicos que sabem dos processos que são iniciados, que se constroem e se finalizam nos múltiplos ciclos do rio da vida. Somos os únicos seres capazes de reconhecer a finitude, tendo a certeza da iminente morte que nos assombra e nos contorce. Talvez, por esta razão, tentamos disfarçá-la continuamente, criando projetos e inventando ideias diversas.

As ideias bem estabelecidas quanto a se plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro, ecos da poesia do poeta cubano José Martí, são tentativas alusivas a este disfarce, além de uma maneira adequada de deixarmos os nossos rastros por aí, uma mentirinha boba que nos permitirá acreditar na ideia de eternidade, porque sabemos que não somos eternos. Deixamos rastros para dizermos que nossa vã existência não foi de toda em vão.

Por conta da insanidade alusiva ao que é viver e existir, é fundamental confirmá-la nas nossas loucas e inusitadas experiências e movimentos na existência. Pessoa alguma está condenada a ser o que os outros esperam que ela seja, a não ser que ela queira. Cada ser em si tem a possibilidade de viver o que quer viver, declarando a plenos pulmões o que realmente gostaria de ser. E qual o problema dessa declaração?

Há tempos, acolhi em minha clínica psicológica uma pessoa que aos 78 anos, afirmou categoricamente que se arrependia de não ter vivido o que gostaria de viver, por conta das expectativas das pessoas quanto ao seu comportamento. Eu, ao ouvi-la, fiquei consternado, buscando acolher a angústia presente em sua voz embargada. Ao mesmo tempo, deixei que o silêncio inundasse o setting terapêutico para que um grito ensurdecedor afetasse as nossas emoções, tanto a minha quanto a dela. O silêncio, tal qual adaga afiada que corta e rasga as roupas na hora do sexo, foi lâmina fria recostada no mamilo e desferiu golpes ferinos em nossas almas. Furtivamente, a lágrima escorria. Não há maior sofrimento do que viver uma vida não vivida. Nem a morte de uma criança amada no seio de uma família é tão lancinante. Todavia, esta é só uma metáfora para se perceber o nível de sofrimento existente em um ser que não existiu como queria existir.

Por isso, eu acredito piamente com fé cega e faca amolada, que cada um de nós deve se esforçar na tarefa de viver a melhor versão de si mesmo, sem medo, sem frescura, sem nojo. Curiosamente, temos nos campos da filosofia grega um pós-socrático chamado Diógenes. Este filósofo cínico vivia como um cão dentro de um barril. Ele não usava roupas e denunciava toda forma de estereótipos presentes em sua sociedade hipócrita. Era considerado um louco. Diógenes é um símbolo que continua a denunciar todas as formas de hipocrisia presentes na nossa sociedade atual. Os loucos são aqueles que denunciam as loucuras de uma sociedade insana. Eu acho que todos nós devemos ter muito de Diógenes. Que as babaquices de uma vida insossa não se façam presentes em nossa lide.

Por esta razão, uma boa dose de loucura se faz necessária na vida de qualquer um de nós. O que de fato queremos é a aventura de nos embriagarmos na paixão até aquele momento em que o corpo extasiado se vê completamente molinho, por se sentir recheado da pequena morte, la petit mort. Ou então, naquele momento em que a dinamite e o fogo se misturam num paiol de estrelas onde um mísero colchonete no chão serve de esteio para o amor se fazer presente e acontecer de forma surreal.

Enfim, continua a ecoar em meus mais distintos dilemas escondidos naquele baú antiquíssimo de bordas assimétricas, a frase que emoldura este texto. Que a loucura sempre preceda a cura, essa vontade de cuidado, e que a gente cometa mais besteiras no cotidiano, mais bobagens na trilha que ainda se possibilita aberturas, permitindo que a lâmina afiada continue a ameaçar as pétalas da rosa, as luas gêmeas e o túnel amaríneo.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

DIA 30 - A Cura pessoal pela criatividade e espontaneidade

 


Há um processo de cura pessoal no desenvolvimento psicoterápico que ocorre nos grupos. De antemão, deixamos claro que partimos da premissa etimológica de cura como cuidado e vigília. Essa premissa nos coloca frente ao movimento dialógico que ocorre no tecido social, segundo a concepção de Jacob Levy Moreno. Por um lado, a preocupação com o subjetivo que nunca se ausentou de sua obra; por outro, a convicção de que o ser humano somente pode se perceber completo na sua relação com o outro, num processo interpessoal.

À priori, importa-nos salientar que o ser humano é um ser de relações. Antes mesmo de sua estreia no palco da existência, influências oriundas de sua matriz materna compõem os aspectos mais altissonantes de sua constituição psíquica. Sobre este aspecto, Martim destaca:

Embora em suas obras, faltem capítulos dedicados ao estudo teórico do “animal político”, nelas é possível encontrar afirmações sobre esta natureza social. O estudo do indivíduo em relação com os demais ocupa a maioria de suas páginas fundamentalmente das que se referem à primeira etapa do existir humano, ou seja, a matriz de identidade. Quando a criança nem mesmo percebe a diferença entre si-mesma e seu ego auxiliar materno, já está vivenciando na relação com a mãe, a sociedade. (Psicoterapia do Encontro, 163-164).

 

Para Moreno, portanto, a perspectiva dialógica que vê o sujeito e o objeto não possui uma dissociação. O subjetivo e o grupo estão inter-relacionados e contribuem com a existência de ser. Em outras palavras, “a pessoa humana é o resultado de forças hereditárias (g); forças espontâneas (e); forças sociais (f) e forças ambientais (a)”. (Psicodrama, 168). Como se percebe, todas as quatro forças elencadas possuem uma conotação social, com pertinente base fisiológica, com dois órgãos complementares que atuam de maneira recíproca: o princípio da bissexualidade e o princípio da bissociabilidade.

Essa ideia nos leva a compreender, de forma mais efetiva, que há uma expressiva aproximação da psique, do corpo e da ação. Dessa forma, é pela atuação dos papéis que o ser se conhece e se dá a conhecer no grupo. Complementam-se, portanto, os dois princípios – bissexualidade e bissociabilidade – na ação desenvolvida dramaticamente pelo corpo em ampla manifestação da criatividade e da espontaneidade, possibilitando os processos de encontro de si-mesmo e com o outro. Este processo garante a ruptura das conservas culturais e a possibilidade de rematrizações.

Neto (1989), ao tecer aproximações que podem ser consideradas por nós, afirma que o eu na perspectiva moreniana, somente pode ser descrito em uma dimensão corporal (Paixões e Questões de um Terapeuta, 94). Este autor amplia a sua argumentação afirmando:

O eu começa a se formar através dos papéis psicossomáticos e da vivência infantil de certas zonas corporais em ação. [...]. E aí, tanto faz que aceitemos ou não a noção de papel psicossomático, o importante é que certas necessidades fisiológicas colocam certas zonas corporais em ação. (Paixões e Questões de um Terapeuta, 94).

 

Decorre dessa referência a ideia de que o corpo em ação se torna a primeira referência receptora de experiências diversas, no tempo e no espaço, no campo em que Moreno chama de Matriz de Identidade. É no encontro com o outro, mediante a experiência dos afetos no corpo que a criança, desde os seus primeiros tempos de vida, vai se percebendo. Segundo Neto:

É essa dimensão do corpo assim conformada e codificada que designa o eu; entretanto, ao lado da imagem e dos fluxos domesticados e modelados, pululam todos aqueles que resistiram a esse processo forçado e artificial de unificação. Por isso, costuma-se dizer e qualquer bom terapeuta sabe disso – que o eu e a singularidade de cada um não designam a mesma coisa. Somos sempre uma multiplicidade representada por uma unidade. (Paixões e Questões de um Terapeuta, 96).

 

De fato, o corpo é o aglutinador das imagens e afetos, fazendo com que nos tornemos múltiplas representações. A artificialidade se encontra na ideia de uma unidade de ser. Moreno faz questão de frisar a importância e a pertinência em se atingir a coordenação do corpo e da expressão verbal, bem como a diminuição dos gestos pessoais e idiossincráticos sem uma preocupação expressiva com os papéis sociais. (Paixões e Questões de um Terapeuta, 93). Em outras palavras, o agente múltiplo de improvisação e criatividade encontra o seu ponto de partida dentro de si mesmo, no princípio da espontaneidade.

Entretanto, mais do que isso, somos seres de interações sociais e desenvolvemos múltiplos papéis, os mais diversificados. Nessa compreensão, somos atores e atrizes no palco da existência e nos envolvemos em diversos dramas, dramalhões e algumas comédias que nos destinam ao alcance do melhor sentido de nossa vida – ou de nossas vidas –, visto a multiplicidade do que somos em nossa subjetividade. Moreno sonhava com a possibilidade das pessoas alcançarem as suas melhores versões pelo dispositivo da espontaneidade, acrescido da capacidade criativa, se contrapondo à automação requerida pela sociedade. Na possibilidade de se afirmar como um ser inteiro em inter-relações, mediante as dramatizações possíveis e adequadas do corpo, o ser humano pode se encontrar consigo e ser plenificado em si-mesmo. O teatro da vida aguarda pelo protagonismo de cada um.

terça-feira, 11 de julho de 2023

DIA 29 - Pela reinvenção das inconsequências

 


Eu acho que todos nós deveríamos nos embriagar continuamente na tarefa de reinventar a vida em suas inconsequências. É preciso despetalar as flores lindas que cerceiam o pântano para que algo novo aconteça. É muito estranho pensar no fato de que tudo tem que ser como sempre foi ou ainda é. Eu tenho uma paixão pelo inusitado e pelas coisas que acontecem numa mesa de bar, onde se comem bolinhos de bacalhau. Ah! Tá! Tudo bem! Os bolinhos têm mais batatas do que bacalhau, mas as geladas estavam nevadas, tipo “perninhas de pedreiro”, como se diz popularmente.

Quando vivo estas experiências, me localizo novamente naquela única ideia fixa quanto a ser continuamente surpreendido, tendo os meus olhos encantados diante do novo. Talvez isso se deva aos meus sofrimentos poéticos, os mesmos que brotam no cotidiano situacional dos meus espaços infinitos. Por isso, exponho-me em meus risos e danças em gestos espontâneos para ser o que realmente quero ser.

Será que sempre aceitamos o amor que achamos merecer? Pergunta boba quando o assunto mesmo é fazer o que precisa ser feito! Há abraços e beijos, e beijos e carícias que falam mais do que mil palavras. Chego a essa constatação com certa propriedade,  por acreditar piamente que tal tarefa tem a ver com aquilo que nos torna mais humanos, mais gente. Não somos mônadas estruturais ou estátuas condenadas à eternidade das praças históricas que temos a oportunidade de visitar nos grandes centros turísticos.
Mais do que isso, somos seres dotados de experiências e de movimentos que buscam mais experiências e mais movimentos num contínuo deslizar na flora do rio que uma hora chegará ao mar. Somos destinados a nos ressignificarmos continuamente na arte de atravessarmos o túnel sentindo a liberdade de ser, simplesmente ser...
Não posso mentir! Tenho orgulho da minha redenção de vida. Saí do caminho para me arranhar nas trilhas fechadas de uma mata selvagem. Gastei grande parte do meu tempo e da dinâmica do meu ser em uma esfera de atividades da qual eu gostava e me animava, mas que, depois de vinte minutos, deixou de fazer sentido para mim. Foram vinte longos minutos. Depois, resolvi abraçar outra perspectiva insólita e sem sentido para, depois de vinte minutos, montar uma rede à beira de um precipício com a finalidade de me balançar na amplitude da psicologia. Com isso, dei à minha vida outro sentido, um novo sentido com sabor de satisfação.
Eu acho que a vida realmente precisa de aspectos totalmente novos que alimentem a dinâmica da própria existência, lançando o ser para o avanço e o alcance de novos horizontes.

Trago para este momento reflexivo uma perspectiva presente na obra do filósofo alemão G. W. F. Hegel que afirmou uma dimensão muito interessante ao estabelecer, mediante linhas específicas da dialética aristotélica, filósofo grego, a ideia de uma dialética marcada por três estruturas: a tese, a antítese e a síntese. Não se pode relevar o brilhante argumento do filósofo alemão ao pensar as estruturas do pensamento pela lógica do idealismo, considerando a fórmula: “o real é o racional e o racional é o real”. E nessa espiral sem fim, ou quase sem fim – tem a questão do Estado nessa parada –, que Hegel provoca a sempre viva relação entre sujeito e objeto num percurso que almeja o diálogo contínuo e aberto. Com base na dialética de Hegel, o filósofo francês Paul Ricoeur elabora a sua dialética aberta e sem fechamentos, ampliando o debate da interpretação, apontando para a sua hermenêutica fenomenológica.  Assim, de braços dados com o método dialético apresentado por Hegel e amplificado por Ricoeur, afirmo categoricamente a minha vontade pela reinvenção da invenção da vida e pela redenção da alegria no cotidiano. Eu realmente não consigo conceber a vida sem a alegria, pois para mim a predisposição à alegria é o elemento central e situacional do ser humano perante a vida que, em suma, é muito curta como flash: uma faísca no meio de incêndio, como bem nos disse Heráclito. A vida não pode ser vivida de qualquer maneira, mas de formas aprofundadas e intensas.

Uma pergunta deve permear o pensamento de todo aquele que quer reinventar a vida: O que realmente posso fazer para que se tenha mais prazer, mais satisfação e mais alegria na existência? Tal pergunta vai requerer de cada ser um debruçar-se sobre a ideia presente no pensamento do psicanalista Roberto Freire, pai da Somaterapia, que nos convoca a realmente vivermos a vida mediante o nosso mais intenso pulso pelo tesão, pois é o tesão que mobiliza o ser humano para fazer aquilo que modifica a rotina e a automação. O tesão é a vacina. Por isso a máxima citada recorrentemente por Roberto Freire: “Sem tesão, não há solução”. Eu já perdi a conta de quantas vezes li o livro deste autor, pois ele alimenta a minha alma e me convoca a reinventar a vida que tenho, vivendo cada momento como sendo o melhor momento. Meu corpo tem fome de afetos e desejos que se debruçam nas janelas sensíveis de minha poesia, fazendo com que a todo instante eu afirme o fato de que a vida vale a pena ser vivida.

Portanto, o desafio contínuo é pela reinvenção da vida em suas inconsequências. As flores se reinventam, mesmo quando despedaçadas e tudo vira movimento, dança, risos e estranheza.


DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

  Quando eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado c...