Um pensamento da psiquiatra alagoana Nise da
Silveira ecoou em minha mente, provocando-me e convocando-me a refletir sobre a
subjetividade de cada ser e o constante desafio de não se curar além da conta.
Há sempre uma boa dose de loucura em cada um de nós e ela precisa ser
continuamente preservada. Nas palavras do poeta Raulzito: Somos metamorfoses
ambulantes e malucos beleza. Mais do que isso, é preciso ter a consciência ou a
inconsciência, tanto faz, de que ser louco é ser feliz e não se preocupar com o
que os outros pensam ou dizem.
Em outras palavras, podemos refletir que tudo o
que nos constitui é emprestado da natureza que nos cerca: o corpo em que
habitamos e sua base material, contém 30% de terra e 70% de água; o fogo que eletrifica
os nossos órgãos internos e mantém, por exemplo, o coração batendo ativamente
e, enfim; o ar que num contínuo ir e vir nos impulsiona energeticamente para as
diversas ações que efetuamos. Então, o que de fato pode ser considerado nosso
ou meu? Que posse nós temos nessa nossa existência? Ora, somos seres totalmente
moldados pela natureza e, também, os únicos que sabem dos processos que são
iniciados, que se constroem e se finalizam nos múltiplos ciclos do rio da vida.
Somos os únicos seres capazes de reconhecer a finitude, tendo a certeza da
iminente morte que nos assombra e nos contorce. Talvez, por esta razão,
tentamos disfarçá-la continuamente, criando projetos e inventando ideias
diversas.
As ideias bem estabelecidas quanto a se plantar
uma árvore, ter um filho e escrever um livro, ecos da poesia do poeta cubano
José Martí, são tentativas alusivas a este disfarce, além de uma maneira
adequada de deixarmos os nossos rastros por aí, uma mentirinha boba que nos
permitirá acreditar na ideia de eternidade, porque sabemos que não somos
eternos. Deixamos rastros para dizermos que nossa vã existência não foi de toda
em vão.
Por conta da insanidade alusiva ao que é viver
e existir, é fundamental confirmá-la nas nossas loucas e inusitadas experiências
e movimentos na existência. Pessoa alguma está condenada a ser o que os outros
esperam que ela seja, a não ser que ela queira. Cada ser em si tem a
possibilidade de viver o que quer viver, declarando a plenos pulmões o que
realmente gostaria de ser. E qual o problema dessa declaração?
Há tempos, acolhi em minha clínica psicológica
uma pessoa que aos 78 anos, afirmou categoricamente que se arrependia de não
ter vivido o que gostaria de viver, por conta das expectativas das pessoas
quanto ao seu comportamento. Eu, ao ouvi-la, fiquei consternado, buscando
acolher a angústia presente em sua voz embargada. Ao mesmo tempo, deixei que o
silêncio inundasse o setting
terapêutico para que um grito ensurdecedor afetasse as nossas emoções, tanto a
minha quanto a dela. O silêncio, tal qual adaga afiada que corta e rasga as
roupas na hora do sexo, foi lâmina fria recostada no mamilo e desferiu golpes
ferinos em nossas almas. Furtivamente, a lágrima escorria. Não há maior
sofrimento do que viver uma vida não vivida. Nem a morte de uma criança amada
no seio de uma família é tão lancinante. Todavia, esta é só uma metáfora para
se perceber o nível de sofrimento existente em um ser que não existiu como
queria existir.
Por isso, eu acredito piamente com fé cega e
faca amolada, que cada um de nós deve se esforçar na tarefa de viver a melhor
versão de si mesmo, sem medo, sem frescura, sem nojo. Curiosamente, temos nos
campos da filosofia grega um pós-socrático chamado Diógenes. Este filósofo
cínico vivia como um cão dentro de um barril. Ele não usava roupas e denunciava
toda forma de estereótipos presentes em sua sociedade hipócrita. Era
considerado um louco. Diógenes é um símbolo que continua a denunciar todas as
formas de hipocrisia presentes na nossa sociedade atual. Os loucos são aqueles
que denunciam as loucuras de uma sociedade insana. Eu
acho que todos nós devemos ter muito de Diógenes. Que as babaquices de uma vida
insossa não se façam presentes em nossa lide.
Por esta razão, uma boa dose de loucura se faz
necessária na vida de qualquer um de nós. O que de fato queremos é a aventura
de nos embriagarmos na paixão até aquele momento em que o corpo extasiado se vê
completamente molinho, por se sentir recheado da pequena morte, la petit mort. Ou então, naquele momento
em que a dinamite e o fogo se misturam num paiol de estrelas onde um mísero
colchonete no chão serve de esteio para o amor se fazer presente e acontecer de
forma surreal.
Enfim, continua a ecoar em meus mais distintos dilemas escondidos naquele baú antiquíssimo de bordas assimétricas, a frase que emoldura este texto. Que a loucura sempre preceda a cura, essa vontade de cuidado, e que a gente cometa mais besteiras no cotidiano, mais bobagens na trilha que ainda se possibilita aberturas, permitindo que a lâmina afiada continue a ameaçar as pétalas da rosa, as luas gêmeas e o túnel amaríneo.