sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

DIA 66 - Fazendo coisas novas a cada novo dia



Há algum tempo, eu assumi um desafio pessoal! Fazer em cada dia, algo especial, inusitado, diferente do habitual. Eu percebi, bem rapidamente, aliás, que a vida é bem passageira e que a gente precisa apreciar cada moranguinho que ela nos apresenta.

Num sábado qualquer, resolvi almoçar em um bar bem movimentado. Queria uma comida bem simples e bem temperada. O ambiente estava tumultuado, no fervilhar das manhãs de sábado no centro da cidade de Juiz de Fora. Sentei-me em uma mesa de canto, onde podia acompanhar o ir e vir das pessoas em uma galeria paralela ao bar. Pedi um chope para começar. Chegou-me rapidamente à mesa, com aquele colarinho a ser vencido. Sorvi deleitoso aquela cerveja gelada, sem pensar, pensando em como aquilo era bom.

Um grupo de coroas conversava ao meu lado. Não queria acompanhar a conversa, mas um deles falou: “Não vou ficar tomando mais chifres”!

Meus ouvidos se atentaram ao assunto, mesmo sem eu querer. “Pô! Tem onze anos que eu estou tomando chifre. Cansei”!

“Já te falei isso, carái! Tem que parar com essa merda! Tem que largar essa mulher! Ela já extrapolou! Pô”! Disse um outro coroa, que tinha um colar de metal, bem jovial, e parecia o ator americano Dani De Vitto.

Um outro, usando óculos quadrado de armação preta, sem barba e sem bigode, que ficava o tempo todo conversando, bebendo e comendo pastel, além de fiscalizar as bundas das meninas que desfilavam na galeria, entrou no bar e pegou uma cerveja de baixa qualidade, compartilhando com os seus amigos.

“Carái! Tem outra cerveja não! Essa aí parece mijo de vaca”! Disse o coroa jovial. Mesmo com esta piada mequetrefe, abriu a lata e encheu o copo, sorvendo o primeiro gole como se fosse um vinho francês. O importante naquele momento era a conversaria em torno do sexo na maturidade e não a qualidade da cerva.

Levei um susto. Uma pombinha cinza e manca entrou no estabelecimento, bicando restos de comida que estavam no chão. Uma espécie de utilidade pública. Pedi o cardápio ao dono do bar. Uma figura simpática, oriunda da China. Prontamente, me cedeu o cardápio e eu pedi um prato feito, com pouco arroz. Uma senhora assentou-se proximamente, só para beber água e atualizar as suas redes sociais. Não era casada e parecia querer uma aventura na noite. As sobrancelhas estavam bem feitas e o cabelo bem alisado. Devia ter uns 59 anos. O sapato vermelho revelava para mim que os seus passos precisavam ou queriam subvertê-la. Atentamente, futucava o seu celular.

Os coroas foram embora. Depois de várias goladas, era preciso estimular a coragem do amigo, para romper com aquela sequência de chifres.

Meu almoço chegou! Cheirinho delicioso e um prato contendo arroz, feijão, batatas fritas e salada. Pedi para o acompanhamento um bife acebolado de frango. Era um prato simples, mas estava delicioso.
Saboreei-o e deleitei-me naquele momento. Pedi mais um chope.
Muita gente rindo e falando alto. Uma pequena banda tocava alguns clássicos, chorinho, para ser mais preciso. Eram artistas em suas insanas lutas por reconhecimento através da arte diante do público.

Deu vontade de tomar mais um chope. Balancei a caneca de vidro e sorvi a última gota. Uns pastéis crocantes me convidavam a um novo prazer. Um chope com pastel. Resisti àquela transa.
Precisava pagar a conta e ir para o curso de Psicodrama. O dever me chamava, e eu já estava leve.

Outras coisas novas precisavam acontecer.

Paguei a conta.

A pombinha não voltou mais.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

DIA 65 - Uma manifestação contra os fechamentos obtusos da vida aberta

 


Tenho um problema sério com os recintos fechados e com os fechamentos obtusos. Afeito que sou ao espaço amplo que se abre para os sóis das manhãs e das tardes, apego-me ao que pode me fazer respirar os 20% de oxigênio que eu preciso para a continuidade do meu metabolismo. Fosse mineiro, gostaria de morar naqueles casebres de janelas abertas e frágeis portas cheias de frestas. Todavia, sou carioca, e talvez, por um acidente deste meu percurso existencial, tenha me acostumado a gerenciar a minha infância e a minha adolescência junto às belíssimas praias de tons azuis esverdeados do litoral brasileiro.

Tenho, também, um problema sério com as pessoas fechadas e de mente embotada. Não consigo gastar tempo com gente que não consegue ver a vida como ela é, ou seja, com suas contradições e dicotomias. Ora, a vida real é marcada pelas possibilidades aventadas por Eros ou por Tânatos, pulsos de vida e pulsos de morte. Não há como fugir-se dos paradoxos que esbofeteiam o ser humano em sua lida diária. Os eventos que ocorrem na dinâmica existencial não podem ser amparados pelas palmas das mãos, sequer pela mente. Algumas escolhas podem controlar o rumo da prosa de cada qual, mas o fato é que todo ser humano é tomado de assalto quanto ao acaso que abraça e zela por todo o universo. Talvez, por este motivo, Einstein tenha dito de forma enfática que o único Deus que ele aceitava era o sinalizado por Espinosa. E qual era o Deus do filósofo holandês? Um Deus despersonalizado e geométrico, estabelecendo-se numa simbiose perfeita com a natureza: Deus e Natureza, a mesma coisa. Como Espinosa indica: “Tenho uma concepção de Deus e da natureza totalmente diferente da que costumam ter os cristãos mais recentes, pois afirmo que Deus é a causa imanente, e não externa, de todas as coisas. Eu digo: Tudo está em Deus; tudo vive e se movimenta em Deus”.

Independente do posicionamento de Einstein ou Espinosa, é inegável a energia que movimenta o mundo e seus engendramentos. Sei que muitas pessoas apegadas à segurança de suas palavras e atos, preferem agendar o cotidiano com a (i)lógica do destino, como se tudo o que acontecesse na dinâmica existencial estivesse pré-determinado por um poder do além. Ora, se o futuro ainda não aconteceu, como haver um destino? De minha parte, prefiro conceber a ideia de que a vida é uma grande e inédita aventura e que cada um é protagonista do seu existir, quando possível. O cotidiano e sua simplicidade é o campo fantástico onde se pode viver a aventura da vida, seus encontros e desencontros, suas pessoas ou situações.

A questão de fundo que se evidencia em um segundo plano, refere-se à fuga do sofrimento que surge por conta do inusitado. Tem gente que acha que, mediante fechamentos obtusos e controles do cotidiano, se pode evitar o sofrimento. Ledo engano. Sofrimento não se evita com fechamentos. Aliás, sofrimento não se evita. Sofrimento ocorre e exige renovações e recomeços, tanto nos níveis subjetivo ou objetivo, pessoal ou comunitário. Ele está presente na dinâmica existencial porque nunca se sabe bem o que vai acontecer na aventura da vida, e está tudo bem. Em tempos passados, escrevi uma crônica que considera a vida nas dinâmicas da montanha russa e do carrossel. Corroboro sempre que a vida é bem mais uma montanha russa, com seus anseios, medos, sustos, contentamentos e alegrias. Tudo isso junto e misturado num contexto cheio de sonhos e pesadelos. Às vezes, muito mais pesadelos. A gente só não pode se perder o foco de que no meio do abismo, como diria Rubem Alves, a gente tem que curtir o que dá pra curtir e saborear aquele moranguinho na beira do abismo. Vejo isso na cultura nordestina brasileira, que tanto amo. Acontece que há um legado sertanejo que transforma grandes infortúnios em esperança. No fundo, manifesta-se ali uma religião cultural ou uma cultura religiosa que se espraia numa vontade de superação artesanal e musical que, ao mesmo tempo, sente o sofrimento inerente à vida e manifesta a vontade de revogação da situação com o grito: “Deus é mais”!

Hoje, especialmente, meu corpo requer um mergulho na profundidade do mar, entre ondas e vagas, para se perder no universo azul esverdeado. Perdido no interior das águas salinas, lanço-me ao absoluto sem parâmetros, sem fechamentos obtusos, afirmando, ainda, o quanto é insensato querer controlar a vida que não pode ser controlada. Diante dos paradoxos que continuam a me esbofetear, respeito a intuição do momento e abraço o acaso se ele quiser me abraçar. Assim vivo, pois as tramas da vida sempre precisam ser vivenciadas com ampla ousadia.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

DIA 64 - Da natureza da coragem



Uma amiga a quem muito prezo mandou-me um recado tecendo considerações sobre um livro de crônicas que tive a oportunidade de publicar há alguns anos. Este recado carinhoso gerou-me sentimentos múltiplos e a vontade de dialogar com as suas percepções. Basicamente, ela me falou a respeito de coragem e de liberdade. Ela sentiu, no contexto das emanações de minha alma subversiva que eu estava tecendo críticas em relação às injustiças que tentavam amordaçar a vida humana, favorecendo a ampliação do espaço destinado às estruturas de poder, e que isso era muito corajoso da minha parte.

Eu preciso confessar que eu não sou corajoso. Aliás, minha vida é marcada pelo medo, pela ansiedade e pela angústia. Coragem substantiva não me define. Coragem substantiva não existe em minhas palavras, em minhas ações, tampouco em meu velho e carcomido dicionário de bolso – coisa antiga. Por uma causa que não sei mensurar, a coragem que eu não tenho surge em minha vida como uma erupção vulcânica em dados e espasmódicos momentos cotidianos. De repente, me vejo completamente tomado de uma ira sem precedentes e passo, então, a falar, agir e escrever coisas que não havia pensado ou medido. Assim, compreendi que pessoa alguma é corajosa fortuitamente, mas se enche de coragem ante a uma situação inusitada que lhe fere a alma ou a vida.

Ao mesmo tempo, passei a pensar no intrigante livro A Coragem de Ser, escrito pelo filósofo e teólogo Paul Tillich. Neste livro, o autor reúne os conceitos ético e ontológico alusivos à coragem e à angústia, afirmando que “a coragem de ser é o ato ético no qual o homem afirma seu próprio ser a despeito daqueles elementos de sua existência que entram em conflito com a sua autoafirmação essencial”. Nessa perspectiva, a coragem é uma atitude e uma potência do ser-em-si que recebe a si-próprio de volta, num processo de contínua autoafirmação frente ao não-ser. Não é fácil encarar os desafios mais diversos que se apresentam no campo da existência e, ainda assim, buscar a autoafirmação. Embora haja muitos medos envolvidos, como, por exemplo, o medo da perda, o medo da frustração, o medo da rejeição, o medo da morte, entre outros, dando a ideia de que coragem se relacione ao poder da mente para vencer o medo, para Tillich a coragem existe para refrear a ansiedade e angústia. Em suas palavras: “Coragem é usualmente descrita como o poder da mente para vencer o medo. O significado do medo pareceu por demais óbvio para merecer inquérito. Porém, nas últimas décadas, a psicologia profunda em cooperação com a filosofia existencialista, tem conduzido a uma decisiva distinção entre medo e ansiedade e a definições mais precisas de cada um destes conceitos”. A coragem aparece como uma postura e uma atitude concreta no aqui e no agora, obscurecendo o medo e seu objeto conhecido, e a ansiedade, quanto ao não-ser e a sua finitude, evidenciando as emoções e atitudes necessárias para o enfrentamento dos diversos monstros, inclusive os imaginários.

Em todos os dias, pessoas as mais diversas lutam continuamente com os seus medos, suas ansiedades e suas angústias, especialmente quanto à finitude. A convocação que cada ser se impõe, especialmente quanto a buscar posturas corajosas de autoafirmação frente às contínuas lutas cotidianas, é o que favorece a manifestação da coragem de ser. É justamente no momento em que a adrenalina inunda a corrente sanguínea que o autocontrole precisa se manifestar. Quando a emoção toma o lugar da consciência, os batimentos cardíacos e a pressão arterial precisam ser controlados mediante a respiração pausada e contínua. Um copo com água ajuda bastante. Em momentos de perigo iminente, a coragem brota em meio ao medo, à ansiedade e a angústia. Somente se manifesta com coragem quem tem medo, ansiedade e angústia. Somente tem coragem quem enfrenta o medo de arriscar. É nessa dialética contínua, entre medo e coragem, angústia e autoafirmação, que cada pessoa descobre, paulatinamente, as possibilidades de se buscar na dimensão do amor as possibilidades de afastamento do medo, da ansiedade e da angústia.

Como um gêiser que se manifesta do interior da terra, fazendo espargir o seu fluxo cheio de pressão, a coragem deve se manifestar num processo de autoafirmação à despeito das situações aflitivas e afrontosas que se manifestarem no cotidiano existencial. Quando o corpo for confrontado pelo infortúnio, a teimosia para se pensar diferente se torna uma condição amplamente necessária. Essa teimosia é a manifestação da coragem para se tomar a decisão certa nas situações limites que são experimentadas por cada ser.

À minha amiga, eu respondo: não sei se tenho coragem, mas a expresso continuamente, mesmo diante dos meus medos, minhas ansiedades e minhas angústias.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

DIA 63 - Conscientização, vida nova e os perigos do processo psicoterápico

 



O cotidiano e os seus consequentes eventos singulares são constantemente interpretados pelos seres humanos da forma como cada qual os interpreta. Em geral, a pessoa interpreta os seus acontecimentos mais pessoais a partir dos seus sentidos e das suas percepções. O que se revela no mundo não é captado da mesma maneira por todas as pessoas. Cada qual constrói a sua narrativa de forma a se sentir em segurança com ela.

No processo psicoterápico, as nuances perceptivas se entrechocam o tempo todo entre o psicoterapeuta e seu cliente, tocando singelamente os limites das dimensões da espontaneidade e da criatividade. Os entrechoques e toques visam um novo viver marcado pelo bem-estar de melhor ser, na dimensão do que Fritz Pearls batizou de awaraness – uma dimensão especial de contentamento com as possibilidades de viver melhor, uma consciência de si perceptiva; a tomada de consciência global no momento presente, a atenção ao conjunto da percepção pessoal, corporal e emocional, interior e ambiental. Obviamente, nestes intercruzamentos perceptivos, verdades absolutas e discussões sobre o certo e o errado não cabem. E todos os debates, conversas e revelações ocorrem na zona nebulosa dos sensos ativos em processo, no campo do segredo das palavras e dos sentimentos, na escuridão profunda das cavernas mais obscuras, frias e silenciosas. Nelas, às vezes, uma pequena fogueira é acesa para favorecer os sentidos e, ainda, se perceber vivo.

Por entender os interstícios da psiquê humana, o respeitado psicanalista Contardo Calligaris usou de uma metáfora para falar do trabalho do psicólogo ou psicanalista como o trabalho de uma puta. Confesso já ter meditado múltiplas vezes sobre esta metáfora e cheguei à conclusão que o psicanalista estava certo. Com essa metáfora, eu que já respeitava as putas, passei a respeita-las ainda mais. De fato, psicólogos, psicanalistas e putas acolhem pessoas em suas mais desditosas intimidades, na nudez expressa sem constrangimentos, sem estabelecerem juízos preconceituosos ou julgamentos indevidos. Nas situações de acolhimento há vazios e interpenetrações, vergonha e exposição, alívio e angústia, recuos e avanços, transferências e contratransferências, tanto positivas quanto negativas. Não se pode perder de vistas a ideia de que o risco em se estar exposto em uma zona paradisíaca onde tudo é permitido, sem repressões ou reprimendas, o ser em situação se permite experimentar o doce sabor da liberdade e do amor, quem sabe para conseguir ser quem se pretende ser, o que é extremamente legítimo. Todavia, para os que não conhecem ou não experimentaram o processo psicoterápico, deparar-se com alguém em estado de graça ou disposto a virar o mundo de ponta cabeça é assustador.

Na sabedoria milenar, há uma narrativa sobre um homem que vivia nos escombros e cemitérios, assombrando e assustando os concidadãos. Um dia, o mestre da Galileia atravessou todo um lago só pra encontrar este homem. Num processo que não podemos avaliar, aquele homem se refez e se organizou. A cidadela, ao invés de ser favorável ao homem e celebrar a sua conquista pessoal, o que lhe deu mais dignidade de vida, se manifestou contrária ao processo libertador e perseguiu a quem provocou a metamorfose. É curioso como as pessoas no entorno de alguém que se liberta das amarras aprisionantes rechaçam de forma perniciosa e, muitas vezes, grotesca, o liberto. Para muitos, a lagarta precisa continuar a ser lagarta por toda a vida. Se ousar se transformar em borboleta, precisa ter as asas cortadas, pois as pessoas encarceradas em suas verdades sem amor não suportam quando um sorriso se esboça como genuíno sorriso e não como maquiagem embotada.

Na condição de um psicoterapeuta, eu vivencio semanalmente as glórias e as agruras decorrentes de minha ação e palavras. Sempre provoco os meus clientes a saírem de suas vidas letárgicas a fim de abraçarem as novas possibilidades que se abrem em um novo dia. Sempre há um arco-íris colorindo o céu quando raios de sol rompem a tempestade que banhou a terra, as árvores e as pedras que choram sozinhas. Em minhas provocações, incito cada um a sair de suas ideias congeladas ou cristalizadas para oportunizarem uma outra experiência em si mesmas.

Outro dia, perguntaram-me se o que eu faço é perigoso? Eu respondi prontamente que sim. Aliás, é muito perigoso, uma espécie de aventura constante que singra o mar das emoções extenuando-se em encontros e desencontros, alegrias e choros, conquistas e perdas. Às vezes, pergunto-me se toda e qualquer provocação vale à pena. Não tenho uma resposta pronta e acabada. Acho se tratar de uma pergunta complexa. Quando sou questionado em minha prática e ação, recolho-me silenciosamente, pois somente o tempo poderá me defender. Sem pontuar as razões que me levaram a esta ou aquela ação psicodramática, espero o plausível tempo onde a minha historicidade e a minha ética será salvaguardada, nem que seja na brisa suave que roçará o meu rosto.

Enfim, não importa como as pessoas interpretam os fatos. Importa, sim, como eu me entendo enquanto eu-mesmo. Por enquanto, eu somente espero que haja o mínimo de respeito e, assim como eu me recolho em mim, que outros também o façam, afinal de contas, a “putaria” sempre estará em ordem se visa o awareness.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

DIA 62 - Será que precisamos saber qual é o sentido da vida?

 


Qual é o sentido da vida? Será que existe algum sentido para a existência de cada um de nós?

O psicanalista Contardo Calligaris apresentou em uma de suas conferências uma resolução interessante e significativa sobre o que de fato vem a ser o sentido da vida. Para ele, em especial, o sentido da vida possui uma característica mais singularizada e refere-se justamente á própria “vida que cada um de nós leva”. Nesta perspectiva, o sentido não está no ponto partida ou no ponto de chegada, mas em todas as circunstâncias que emolduram o cotidiano de cada pessoa em sua subjetividade. Eu, particularmente, gosto muito da premissa de Calligaris, especialmente porque ela me aponta a ideia de que cada um de nós pode: criar, recriar, achar ou desenvolver o próprio sentido da vida na vida em cada um leva.

Quando penso e reflito sobre a vida e as percepções que ocorrem em meus sentidos, buscando compreender os aspectos biopsicossociais e, mesmo, a existência que eu tenho, minha mente viaja e imagina as estruturas que geraram a vida neste planeta. Segundo Marcelo Domingos Leal – Coordenador da área de ciências naturais do Parque de Ciências Newton Freire –, uma pesquisa mais específica, lançada em fevereiro de 2014, realizada pela Universidade Estadual Paulista – UNESP em colaboração com colegas da Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR) e do Instituto de Astrobiologia da agência espacial norte-americana – NASA, trouxe dados mais efetivos sobre a origem da água e da vida no planeta. Além dos cometas batizados como planetessimais ou protoplanetas, a pesquisa indicou que “parte deste recurso pode ter vindo de outros objetos planetesimais (que deram origem aos planetas), como asteróides carbonáceos – o tipo mais abundante de asteróides no Sistema Solar –, por meio da interação com planetas e embriões planetários durante a formação do Sistema Solar. A hipótese foi confirmada nos últimos anos por observações de asteróides feitas a partir da Terra e de meteoritos (pedaços de asteróides) que entraram na atmosfera terrestre. Outras possíveis fontes de água da Terra, também propostas nos últimos anos, são grãos de silicato (poeira) da nebulosa solar (nuvem de gás e poeira do cosmos relacionada diretamente com a origem do Sistema Solar), que encapsularam moléculas de água durante o estágio inicial de formação do Sistema Solar”.

É curioso pensar como os entrechoques destes pequenos asteroides e cometas provocaram uma modificação no todo e a possibilidade de existência neste planeta com o surgimento de toda uma exuberância que se exibe diante dos sentidos. Foi nos encontros e nos desencontros dos quatro elementos: água, terra, ar e fogo, que o mundo conhecido por nós hoje se formou.

De alguma maneira, os nossos sentidos captam as possibilidades destes encontros e desencontros, pois eles ainda ocorrem profusamente em pequenos e múltiplos eventos naturais, inclusive em nossa própria corporeidade. Muitas das nossas potências residem no corpo e favorecem a dinamização do ser em movimentos efêmeros e nada substanciais. Como diria Heráclito: “A vida é uma faísca no meio de um incêndio”.  Em outras palavras, precisamos considerar a insignificância que é ser neste mundo. Apesar de nada sermos, existimos e resistimos numa constante luta biológica para nos entendermos em nossas demandas mais cruciais. E nesse constante conflito, cada um de nós possui um fragmento. Como se um grande espelho se estilhaçasse e cada pessoa angariasse para si um pequeno caco. Nossa imagem refletida no fragmento é imperfeita, mas, se conjugada a outros fragmentos, pode ganhar novo sentido.

Muitas vezes, na clínica psicoterápica, sou convidado a responder aos meus clientes sobre se, de fato, existe um sentido na vida. Eu até entendo a curiosidade, mas respondo categoricamente que não sei. Fico com o posicionamento de Calligaris e afirmo sempre que o que vale à pena, mesmo, são os afetos e os encantos que nos cercam, favorecendo a nossa identificação como pessoa mais efetiva e integrada com o bem-estar. Aliás, para mim, viver em sintonia e em harmonia com o cosmos e com a natureza, sem orgulho ou avareza, sem se considerar superior a qualquer coisa, é muito especial, pois somos partes constituídas de um todo muito maior do que cada um de nós. Há enzimas e substâncias em nós presentes em todos os demais seres vivos coexistentes na natureza. Há simbioses lindas entre os reinos animal, vegetal e mineral e os seres humanos fazem parte disso.

Em meu trajeto diário para o município de Coronel Pacheco – MG, eu me deparo com a exuberância de uma natureza linda. Há, por exemplo, uma árvore maravilhosa cuja formação se desponta à margem da estrada. Ela recebeu o nome de “Árvore da Babá”. Reza a lenda que uma antiga babá levava as crianças que ela cuidava para brincarem naquele espaço e no entorno da árvore, daí o nome, mas eu confesso que ela me remete sempre a um Baobá – uma árvore nativa do continente africano que possui grande importância para os povos africanos, sendo considerado símbolo de fertilidade, fartura e cura. Contemplo a árvore e silencio a minha alma, trazendo á memória toda a minha ancestralidade. Lembro-me, ao mesmo tempo, das singularidades poderosas e subversivas deste mundo, como as flores que desabrocham nos canteiros e as Marias-sem-vergonha que nascem nas brechas das calçadas, rompendo os concretos para beijarem o sol. Talvez, o sentido da vida esteja justamente ligado ao entendimento de que participamos de uma simbiose amorosa que convoca todos os seres a uma troca relacional e a subversões diversas. Sob esta significativa consciência, talvez nós tenhamos a possibilidade de não nos sentirmos aquém ou além de qualquer ser, mas em completude com o que nos cerceia, seguindo o fluxo da vida, como faíscas no meio de um incêndio, sendo pessoas mais legais, sem nos gastarmos em muitas firulas filosóficas e nos abastando da ideia de que pertencemos a um todo muito maior do que nós imaginamos.

Sobre o sentido da vida? Ah! Deixa pra lá! O que vale é curtir o que se nos apresenta no aqui e no agora, nessa eterna simbiose do todo com as partes e das partes com o todo...

DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

  Quando eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado c...