sexta-feira, 5 de maio de 2023

DIA 18 - Um pouquinho de devaneios poéticos

 


Há cenários descompassados, mosaicos de árvores feitas de jornais cheios de desconfianças aleatórias, aquelas mesmas que compõem os processos relacionais sempre indefinidos.

Não há nada de mal quando os azulejos são pintados à mão. A textura deles se manifesta como fragmentos de múltiplas imagens coletadas em cotidianos situacionais, onde o cachorro se estira preguiçoso sobre o asfalto quente. Ele parece não ter medo dos veículos que passam perto dos seus pelos.

Enquanto eu o observo, preparo a minha “Nikon” para o processo mágico de captação e congelamento de momentos dentro da dimensão do instantâneo. Gosto das máquinas de fotografias. Aquelas antigas em que filmes precisam ser ajustados, cujas imagens precisam ser reveladas num quarto escuro com iluminação vermelha, onde ocorre o genuíno milagre – fiat lux.

As luzes se acendem e se apagam compulsoriamente em seus respectivos ambientes. Eu, diante do espelho contemplo a barba que cresce impulsionada pelos batimentos cardíacos. Há mais fios brancos do que na semana passada. A mão percorre os pelos, parecidos com os daquele cachorro no asfalto, como se houvesse a oportunidade de se escalar a montanha de espinhos, sentindo-se um alpinista. Eu, sempre alheio a mim mesmo, sequer saio do chão, pois é nele que pareço me sentir mais seguro. Em vão. Talvez eu devesse ter vivido na década de 60, poderia usar brilhantina em meus cabelos cada dia mais rebeldes.

Foi em um Fusca verde com estofados de couro sintético na cor branca que eles saíram para a lua-de-mel. Imagens de uma infância que, independente dos giros do globo terrestre, aguarda o ônibus naquele ponto cheio de cartazes de shows que já aconteceram. Alguns foram bons e encantadores. Outros deixaram um gosto amargo na boca. As fotografias continuam a ser tiradas.

No fundo das figuras e nas figuras e seus fundos, deparo-me com os pedidos inusitados que ocorrem nas caladas das madrugadas silenciosas. Os sorrisos são mentirosos e a prancheta aguarda aquele desenho que ainda não existe na imaginação.

Vejo as marcas do corpo e as cicatrizes que foram feitas ontem. Os ovos do pente despencaram e se romperam ao chão. Não há limites para os desvarios humanos enquanto a caneta é girada na mão esquerda.

Não é bom sentir a luz brilhar incandescente no fundo do olho. Baladas escondem os rostos e as emoções incrustadas na tela do córtex pré-frontal. Enquanto isso me visita o cheiro da gasolina azul que exala do besourinho verde. Não há mais casamento, senão memórias de um tempo que já se foi, que escorreu pela parede dos azulejos fragmentados.

Enquanto o meu olho brilha, procuro no tapete persa aquele meu brinco de argola moldado em prata. Gosto dele, pois não me causa feridas. Minha mão direita o toca, enquanto me mantenho assentado em uma cadeira rústica bem desgastada pelo sol que entra pela fresta da janela de alumínio. Tento espantar os cupins que nela tentam se aninhar. Não sou muito afeito a estes seres poderosos, principalmente aqueles que voam. É deveras muito chato varrer os pós, oriundos das mordeduras vorazes desses insetos incertos.

Não foi possível fazer um álbum de casamento. Bobagem. Um amigo tirou e revelou duas ou três fotos. Presenteou aos nubentes, agora separados pela morte.

No alto do morro do Cruzeiro, na igrejinha na qual eu fui batizado, eles subiram os 382 degraus com um bebê nos braços, aquele que num futuro nada desenhado viria a se apaixonar pelos temas aporéticos da Filosofia. Sartre o posicionou em um lugar insólito onde o movimento da liberdade continua a lhe soprar nos ouvidos.

Agora, é hora de beber um café ou uma cerveja. Somente necessário molhar a língua com algum líquido e comer um pedaço de pão que não seja bolorento. Que ele seja aquecido em uma frigideira e que o queijo seja derretido, dissolvendo-se sobre um metal polido e quente.

Hoje vi o livro que eu queria ler pela vitrine da loja virtual. A capa não era bonita, parecia obscura. Disseram-me que as letras eram vivas e que as emoções brotariam selvagens dos poros desconexos de minha pele cheia de melanina.

Lembrei-me do dia em que, no parque Guanabara, às margens da Lagoa da Pampulha, eu me diverti no minhocão e no carrinho de bate-bate. Sensação de liberdade para uma criança presa em um nicho familiar conservador cheio de gente errada. Movimentos de liberdade.

Depois, deslizei no divã para falar as coisas mais desconexas das minhas mitologias subjetivas. Adoro as associações livres e as palavras soltas que não precisam ser filtradas em filtros de barros. Ao longo dos anos, bebi todas as águas de fontes que eu desconheço para suá-las nas ruas cheias de paralelepípedos aleatórios.

Continuarei a trocar os passos na trilha de terra batida que me conduzem àquele cantinho chamado Ribeirão de São José. Lá, talvez, eu me perca para reinventar a vida que um dia foi desenhada nas conchas que eu encontrei na areia da Praia Brava, no litoral de Angra dos Reis, para fazer um colar. 

 

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