terça-feira, 3 de janeiro de 2023

DIA 01 – A democracia e o amor venceram

 

Os olhos ardiam. Dormir às 02h26 do dia 01 de janeiro de 2023 não é para qualquer um. Eu até queria ter atravessado a noite bebendo com alguns amigos queridos e celebrando as melhores memórias de 2022 conjuntamente, mas o cansaço mental, talvez decorrente de tantas demandas que tenho vivenciado nos últimos tempos, me impediu. Para um psicólogo, acompanhar as situações que elaboram as ansiedades humanas não é uma tarefa fácil, mesmo porque há um envolvimento psíquico bem intenso, embora isto só ocorra aos que se interessam profundamente com o paciente.

Embora envolto pelo cansaço, abri os olhos e levantei-me com dores no corpo. Esforcei-me para ganhar o corredor a fim de aliviar as tensões próprias das rotinas matinais. Tomei um gostoso banho e eliminei as remelas do meu olho direito. Enxuguei-me e destinei-me à cozinha a fim de fazer um café quentinho e resinoso. Adoro preparar o café. A química que se manifesta no coador é mágica. Vi duas bananas perdidas na fruteira. Peguei-as, amassei-as,
misturando-as com uma porção de aveia e leite em pó. Comi aquela mistura como se fosse um manjar dos deuses. Enquanto isso, a água quase entrava em estado de ebulição e eu, com a garrafa separada sob um coador, junto a uma porção calibrada de pó, jorrei a água para sentir aquele aroma invadir as minhas narinas. Fechei a tampa da garrafa e sobre a mesa, já revestida com aquela toalha do habitual cotidiano, com estampas do famoso Galo de Barcelos, um dos maiores símbolos de Portugal, postei todos os ingredientes que eu queria saborear. Eu ainda me sentia levemente atordoado, talvez devido à ingestão de algumas cervejas artesanais ou porque houvera dormido pouco. Tanto faz.

Feita a minha refeição matinal, liguei a TV e abri a janela da sala para respirar o fresco ar daquela manhã. Ao inalar o ar frio e úmido, senti o cheiro da esperança me inundar. O dia primeiro seria marcado pela posse do presidente Luís Inácio Lula da Silva e do seu vice, Geraldo Alckmin. Eu, que havia vivido quatro longos anos de desobediência civil, por não reconhecer quem presidiu o Brasil entre 2019 e 2022, estava tomado de emoção. Não por acreditar que, num passe de mágica, tudo vai melhorar para o povo brasileiro, mas por perceber que as bravatadas idiotas e ignóbeis não mais fariam parte do meu cotidiano.

Tomado pela emoção, comecei a assistir um filme sobre Pelé. Estava, também, tomado por sentimentos diversos alusivos ao passamento do Rei do Futebol. Queria saborear os meus sentimentos mais condoídos e fazer homenagens solidárias, silenciosas e subjetivas, especialmente à família enlutada. Tive que interromper a sessão, pois o estômago começou a reclamar.

Por voltas das 12h30, almocei o famoso e celebrado prato culinário de nome "jatevi", decorrente da ceia de ano novo. Conversei bobagens à mesa juntamente com a minha família, ainda reunida, e saí da casa de minha mãe a fim de grudar o meu olho à TV e assistir cada momento simbólico da posse do presidente. Meus olhos marejaram e as lágrimas rolaram pelo meu rosto. A democracia dava passos significativos em prol de uma nação menos marcada pela desigualdade. Chorei com Lula, quando ele se referiu à evidente desgraça presente em duas filas no Brasil. Por um lado, filas em que mães disputavam os ossos bovinos para prepararem suas refeições. Por outro, filas para a aquisição de carros importados e jatinhos, realizadas por gente insensível e preocupada com seu próprio bem-estar e aparência social.

Quatro momentos me marcaram profundamente na posse. 1. Os discursos proferidos pelo presidente. O primeiro, com 31 minutos; o segundo, com 28. Em ambos, Lula falou aos brasileiros, sob a sombra do lema do governo para o quadriênio: "União e Reconstrução". Discursos de um legítimo estadista; 2. A revista às forças armadas sem acrobacias aéreas e salvas com balas de canhão. Ver as forças armadas efetuando o seu papel de defensora da soberania e da democracia do país me trouxe um frescor maravilhoso; 3. A passagem da faixa, efetuada por sete brasileiros: Jucimara Fausto dos Santos – Cozinheira; Aline Sousa – Catadora; Flávio Pereira – Artesão; Weslley Viesba Rodrigues Rocha – DJ e metalúrgico; Cacique Raoni – Líder indígena; Francisco do Nascimento e Silva – Estudante; Ivan Baron – Influenciador digital e Murilo de Quadros Jesus – Professor. Ah! Não posso deixar de me referir à cadela Resistência, adotada pelo casal Lula e Janja no período das vigílias em Curitiba, quando da prisão de Lula. Janja, por sua vez, inovou em seu visual, salientando a estilista brasileira Helô Rocha e floras feitas por comunidade de mulheres. Foi, de fato, o povo brasileiro em sua diversidade que passou a faixa para o já empossado presidente; e 4. A genuína celebração do povo brasileiro resgatando os seus símbolos, cantando o hino nacional com comoção e hasteando horizontalmente a bandeira.

Após lavar a alma com a posse do presidente tendo na memória o mote: "Ninguém solta a mão de ninguém", estampado em minhas redes sociais, desde fins de 2018, precisava me refazer em minhas emoções. Não para fugir, mas relaxar, resolvi assistir algumas bobagens na internet. Assim o fiz. Depois, resolvi terminar de assistir ao filme do Pelé e concluir o meu dia, verificando os detalhes recortados do famoso folhetim dominical, saboreando uma deliciosa pizza caseira.

Às 23h20, resolvi tomar um bom banho e, a exatas 23h59, me lançava aos braços de Morfeu. Ah! A posse do presidente Lula se deu às 15h05 em Brasília e eu fui dormir com a certeza de que a democracia e o amor venceram...


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