Resolvi
escrever sobre o inefável. De antemão, quero deixar claro que eu sei que é bem
paradoxal escrever sobre esta dimensão, justamente pela impossibilidade de
situar em um texto algo que não pode ser descrito como sujeito ou objeto, mas
como fenômeno. Todavia, entendo que este é um desafio válido.
Segundo
os dicionários disponíveis nas redes digitais, inefável significa aquilo que
não se pode nomear ou descrever em razão de sua natureza, força, beleza. Trata-se
daquilo que é indizível, indescritível e que causa imenso prazer. Em suma, o
inebriar-se no pleno encantamento das delícias.
Ao
longo dos meus anos de vida e existência vivenciei algumas experiências e
percepções que não poderiam ser traduzidas em palavras. Lembro-me que a minha
primeira experiência com o inefável se deu no meu encontro com a praia. Eu e os
meus pais, juntamente com a minha irmã pequena, fomos ao Recreio dos
Bandeirantes no litoral do Rio de Janeiro. Quando me deparei com aquela areia branca
e espessa, misturada àquele mar azul dividido por uma pedra ovalada, vivenciei
a minha primeira experiência indizível. Na revisita às minhas memórias, considero
esta como a primeira manifestação de encantamento da qual me recordo.
O
inefável também se manifestou em minha vida nos sonhos, especialmente os que eu
sonhava que estava voando. A sensação de voar sobre todos os espaços vivenciais
era realmente indizível. Palavra alguma poderia orientar o sentimento que se
manifestava em meu ser, mesmo depois em vigília. Na memória se manifestavam o
sonho e aquela sensação de liberdade, experimentada pelos pássaros. Obviamente,
como um ser em construção, eu nunca pude voar em minha realidade, mas o sonho e
sua potente linguagem me impulsionavam a sentir o que não se manifestava em
minha realidade. Eu, de minha parte, produzia a arte.
Eu
entendo que a experiência do inefável ocorre todas as vezes que temos a
oportunidade de focar o momento de uma forma consciente ou inconsciente. Tudo o
que percepcionamos de uma forma intensa e inigualável num determinado momento,
no aqui e no agora, pode se traduzir em experiência do inefável. Aliás, para
mim em especial, é justamente a percepção atenta e intensa no aqui e no agora que
garante a experiência do inefável. Nela, não há possibilidades para teorizações
cartesianas, somente para percepções e sentimentos profundos nunca antes
evocados pelos sentidos. Trata-se da percepção pela percepção, do sentir pelo
sentir, do experimentar pelo experimentar de uma forma aprofundada. Em outras
palavras, não somente molhar os pés e os tornozelos, mas se afogar nas águas profundas,
transparentes ou turvas de um mundo ainda não percepcionado.
Lembro-me
de outra experiência do inefável vivida na Igreja de Santo Agostinho em Paris.
Fui ao recinto com alguns amigos. Lá, deparei-me com uma orquestra e uma
solista que tocavam o coração dos que ali estavam presentes de uma forma absurdamente
encantadora. Enquanto cerca de mil pessoas faziam contido silêncio diante da
apresentação, a música e a voz da solista faziam os pelos da pele arrepiarem-se.
Faltavam-me palavras para descrever o que eu sentia, porque, de fato, eu não
sabia o que era ouvir conjuntamente a tantas pessoas que se encontravam em
silêncio absoluto, aquilo que tocava a alma de cada uma de uma forma única. As
palavras cantadas sequer eram entendidas, pois expressas em latim. Enquanto eu percepcionava
todo aquele momento, a melodia, o incenso, o silêncio e as pessoas, brotavam dos
meus olhos copiosas lágrimas quentes. Elas escorriam pelo meu rosto. Eu não
tinha a coragem de levantar a minha mão direita para enxugá-las, pois elas
produziam em mim um sentido que eu ainda não havia sentido. Experiência similar
eu vivenciei quando visitei o Jardim de Monet. Foi inefável percepcionar aquela
miríade de cores, flores e perfumes. Silenciei a minha alma e fotografei aqueles
instantes que para mim se tornaram instantes eternos. As melhores fotografias
foram as que impregnaram a minha retina.
Como
já afirmei, para mim, a experiência do inefável se revela na profundidade da
percepção do momento. Quando eu retornei dos meus estudos no exterior, depois
de longo tempo fora do Brasil, tive a oportunidade de “matar” a saudade dos nossos
famosos “pãezinhos de sal”. No trajeto entre São Paulo e Juiz de Fora, depois
de ter viajado a noite toda, parei em um posto com apoio logístico e
restaurante. Pedi um café puro e comi quatro “pãezinhos de sal”, como se fossem
um manjar dos deuses. Embora eu cheirasse e saboreasse aqueles pães quentinhos,
eu fui muito além. Minhas percepções me levaram a uma experiência do indizível,
embora, para muitos, comer “pãezinhos de sal” seja uma experiência trivial,
cotidiana e corriqueira.
O
inefável não somente tem a ver com o inusitado e novo, mas com o simples e
básico. Ele se revela no beijo afetuoso, no abraço apertado, no toque sensível
na pele, nos encantamentos que são originados nos brilhos que escorrem dos
olhos. Revela-se também na intensidade da entrega, no desejo pelo outro, na
vontade pelo bem-estar da pessoa amada, na profundidade do encantamento
provocado pelo sorriso solto leve aberto e, obviamente, no orgasmo.
As
experiências, complexas ou simples, que não podem ser ditas ou descritas, têm a
ver com a percepção do inefável. São como encontros com sistemas planetários
que nós nem imaginamos que existam. A experiência do indizível é tão profunda,
tão única, tão subjetiva e tão própria àqueles que saboreiam a vida em seu instante-segundo,
que nos lançam ao terreno das contradições. Como nos lembra Ferreira Gullar
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão;
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte delira.
O
mundo sem fundo, multidão, estranhamento, solidão, ponderação e delírio só
podem ser percepcionados na dimensão do inefável, no encontro do beija-flor com
o seu lírio preferido, nas contradições. Enquanto eu tento encerrar este texto,
sou surpreendido na rádio pela música “Paralelas” do inesquecível Belchior.
Parei a escrita para ouvir a música com os olhos fechados, percepcionado a
profundidade do que não poderia dizer ou escrever. Somente senti a música
percorrer a minha corporeidade a ponto de eu mesmo querer abrir as janelas da
minha casa e gritar bem alto, enquanto o carro passa: “Meu infinito sou eu”.