segunda-feira, 23 de outubro de 2023

DIA 44 - O inefável...

 


Resolvi escrever sobre o inefável. De antemão, quero deixar claro que eu sei que é bem paradoxal escrever sobre esta dimensão, justamente pela impossibilidade de situar em um texto algo que não pode ser descrito como sujeito ou objeto, mas como fenômeno. Todavia, entendo que este é um desafio válido.

Segundo os dicionários disponíveis nas redes digitais, inefável significa aquilo que não se pode nomear ou descrever em razão de sua natureza, força, beleza. Trata-se daquilo que é indizível, indescritível e que causa imenso prazer. Em suma, o inebriar-se no pleno encantamento das delícias.

Ao longo dos meus anos de vida e existência vivenciei algumas experiências e percepções que não poderiam ser traduzidas em palavras. Lembro-me que a minha primeira experiência com o inefável se deu no meu encontro com a praia. Eu e os meus pais, juntamente com a minha irmã pequena, fomos ao Recreio dos Bandeirantes no litoral do Rio de Janeiro. Quando me deparei com aquela areia branca e espessa, misturada àquele mar azul dividido por uma pedra ovalada, vivenciei a minha primeira experiência indizível. Na revisita às minhas memórias, considero esta como a primeira manifestação de encantamento da qual me recordo.

O inefável também se manifestou em minha vida nos sonhos, especialmente os que eu sonhava que estava voando. A sensação de voar sobre todos os espaços vivenciais era realmente indizível. Palavra alguma poderia orientar o sentimento que se manifestava em meu ser, mesmo depois em vigília. Na memória se manifestavam o sonho e aquela sensação de liberdade, experimentada pelos pássaros. Obviamente, como um ser em construção, eu nunca pude voar em minha realidade, mas o sonho e sua potente linguagem me impulsionavam a sentir o que não se manifestava em minha realidade. Eu, de minha parte, produzia a arte.

Eu entendo que a experiência do inefável ocorre todas as vezes que temos a oportunidade de focar o momento de uma forma consciente ou inconsciente. Tudo o que percepcionamos de uma forma intensa e inigualável num determinado momento, no aqui e no agora, pode se traduzir em experiência do inefável. Aliás, para mim em especial, é justamente a percepção atenta e intensa no aqui e no agora que garante a experiência do inefável. Nela, não há possibilidades para teorizações cartesianas, somente para percepções e sentimentos profundos nunca antes evocados pelos sentidos. Trata-se da percepção pela percepção, do sentir pelo sentir, do experimentar pelo experimentar de uma forma aprofundada. Em outras palavras, não somente molhar os pés e os tornozelos, mas se afogar nas águas profundas, transparentes ou turvas de um mundo ainda não percepcionado.

Lembro-me de outra experiência do inefável vivida na Igreja de Santo Agostinho em Paris. Fui ao recinto com alguns amigos. Lá, deparei-me com uma orquestra e uma solista que tocavam o coração dos que ali estavam presentes de uma forma absurdamente encantadora. Enquanto cerca de mil pessoas faziam contido silêncio diante da apresentação, a música e a voz da solista faziam os pelos da pele arrepiarem-se. Faltavam-me palavras para descrever o que eu sentia, porque, de fato, eu não sabia o que era ouvir conjuntamente a tantas pessoas que se encontravam em silêncio absoluto, aquilo que tocava a alma de cada uma de uma forma única. As palavras cantadas sequer eram entendidas, pois expressas em latim. Enquanto eu percepcionava todo aquele momento, a melodia, o incenso, o silêncio e as pessoas, brotavam dos meus olhos copiosas lágrimas quentes. Elas escorriam pelo meu rosto. Eu não tinha a coragem de levantar a minha mão direita para enxugá-las, pois elas produziam em mim um sentido que eu ainda não havia sentido. Experiência similar eu vivenciei quando visitei o Jardim de Monet. Foi inefável percepcionar aquela miríade de cores, flores e perfumes. Silenciei a minha alma e fotografei aqueles instantes que para mim se tornaram instantes eternos. As melhores fotografias foram as que impregnaram a minha retina.

Como já afirmei, para mim, a experiência do inefável se revela na profundidade da percepção do momento. Quando eu retornei dos meus estudos no exterior, depois de longo tempo fora do Brasil, tive a oportunidade de “matar” a saudade dos nossos famosos “pãezinhos de sal”. No trajeto entre São Paulo e Juiz de Fora, depois de ter viajado a noite toda, parei em um posto com apoio logístico e restaurante. Pedi um café puro e comi quatro “pãezinhos de sal”, como se fossem um manjar dos deuses. Embora eu cheirasse e saboreasse aqueles pães quentinhos, eu fui muito além. Minhas percepções me levaram a uma experiência do indizível, embora, para muitos, comer “pãezinhos de sal” seja uma experiência trivial, cotidiana e corriqueira.

O inefável não somente tem a ver com o inusitado e novo, mas com o simples e básico. Ele se revela no beijo afetuoso, no abraço apertado, no toque sensível na pele, nos encantamentos que são originados nos brilhos que escorrem dos olhos. Revela-se também na intensidade da entrega, no desejo pelo outro, na vontade pelo bem-estar da pessoa amada, na profundidade do encantamento provocado pelo sorriso solto leve aberto e, obviamente, no orgasmo.

As experiências, complexas ou simples, que não podem ser ditas ou descritas, têm a ver com a percepção do inefável. São como encontros com sistemas planetários que nós nem imaginamos que existam. A experiência do indizível é tão profunda, tão única, tão subjetiva e tão própria àqueles que saboreiam a vida em seu instante-segundo, que nos lançam ao terreno das contradições. Como nos lembra Ferreira Gullar

Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

 

Uma parte de mim

é multidão;

outra parte estranheza

e solidão.

 

Uma parte de mim

pesa, pondera;

outra parte delira.

 

O mundo sem fundo, multidão, estranhamento, solidão, ponderação e delírio só podem ser percepcionados na dimensão do inefável, no encontro do beija-flor com o seu lírio preferido, nas contradições. Enquanto eu tento encerrar este texto, sou surpreendido na rádio pela música “Paralelas” do inesquecível Belchior. Parei a escrita para ouvir a música com os olhos fechados, percepcionado a profundidade do que não poderia dizer ou escrever. Somente senti a música percorrer a minha corporeidade a ponto de eu mesmo querer abrir as janelas da minha casa e gritar bem alto, enquanto o carro passa: “Meu infinito sou eu”.

DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

  Quando eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado c...