terça-feira, 15 de agosto de 2023

DIA 33 - Dos paradoxos da liberdade...

 


Pela manhã, o sol aqueceu o meu corpo. Senti o seu banho iluminado tocar a minha pele morena e me abastecer de vitamina D. Como é curioso saber que a luz da nossa estrela mais próxima alimenta e dá vida.

E eu precisava desse banho. Depois de um porre – daqueles que fazem você se esquecer de quem você é o que você faz – e de um ataque de sonambulismo –, acordar em intensidades dando bom dia ao dia é simplesmente maravilhoso. O coração batia em toadas descompassadas nutrindo a alma de uma alegria poética ao mesmo tempo em que mariposas faziam revoadas na altura do estômago. É que a vida sempre nos apresenta as mais soturnas surpresas, especialmente quando os sentimentos são intensos e marcados pela historicidade e pelos carinhos que não cessam de escorrer dos olhos brilhantes daquele menino que soltava pipa nos tempos de férias, junto a outros moleques. Eu gostava mesmo de fazer voar o meu “jelequinho”. Fazia diversos deles e me divertia, tecendo pequenas rabiolas com papel de pão. Sim, os pães comprados nas mercearias eram embrulhados com um papel cinza, envolto por um barbante de algodão. Aqueles papéis faziam a alegria da criançada.

Envolvido pelo momento e pelas memórias do momento, saí do sol e voltei para o sofá onde me permiti a explosão de diversas inquietações e múltiplos pensamentos.

Diante de mim, dois quadros pintados pela minha filha, que é artista plástica, dialogaram com as minhas interioridades. O menor deles é uma pintura em preto e branco onde um ser humano se sente acossado em suas dúvidas e questões, enquanto se vê rodeado de flores e sombras, não necessariamente nesta ordem. Sua face revela a contínua inquietação dos seres que sempre se encontram em processos de reelaboração da existência. Lembra-me um casmurro em seu processo de enclausuramento cinza. Seus olhos semicerrados anseiam pelos mundos não imaginados, presentes em algum estado onírico surrealista. O ser não toca o chão, tampouco o céu e pende a cabeça para a esquerda, onde há um clarão e as flores parecem querer sorrir, mesmo no breu em que se encontram. Por sua vez, o quadro maior, comprido por sinal, revela um movimento. Trata-se de um ser em transição. Desde o primeiro momento em que vi as primeiras pinceladas deste quadro, disse a ela que eu o compraria e que ele seria meu. Ela indagou-me de que estava preparando aquele quadro para outra pessoa e que não queria que ele ficasse ali em casa. Eu a questionei dizendo que ela estava pintado parte significativa do meu próprio eu. O quadro se compõe de três cenas separadas e correlatas. À minha direita, pessoas indeterminadas com suas mãos e garras tentam aprisionar o ser que busca a sua libertação. O ser tem as pernas ainda presas pelas mãos e há um teor opressivo em tons e semitons na cor verde-musgo. O ser tem as suas mãos em movimento de fuga. A angústia em seu rosto denota a sua insana vontade de sair de uma realidade para se apossar de outra. Ele almeja a sua liberdade e luta consideravelmente por ela. A sua mão direita é maior que a sua própria cabeça. Sua sana é pela busca do novo. Todo o seu corpo se acentua na segunda parte do quadro, a central, onde se revela um céu com as suas nuvens e uma ambientação de paz. É a invasão de um estado onírico eivado de possibilidades representadas num voo sempiterno e sem limites. O ser, agora alado, não possui asas. Mas se desloca entre o gases da atmosfera. Na terceira parte, revelam-se quatro pessoas sem sexo, sem gênero, que dançam nuas num movimento “pericorético”. Não há entre elas qualquer que seja mais relevante ou importante. Todas revelam a liberdade em tonalidades quentes, vermelhas e alaranjadas, se opondo às mãos opressoras enquadradas nas tonalidades verde-musgo, numa veemente oposição ao ambiente opressor.

Enquanto os meus pensamentos se refaziam e de desfaziam em movimentos de sístoles e diástoles sentimentais, eu mergulhava em minhas próprias imagens mentais para me referendar de mim mesmo, visando minha afirmação identitária. Em minha memória eram fugidios os flash’s do que ocorrera na madrugada anterior, somente a certeza de que continua vivo o meu clamor pela minha liberdade de sair de tudo aquilo que me oprime para viver em movimentos a minha dança nua entre pessoas de bem.

Mais do que um maniqueísmo dualista entre bem e mal, a experiência de ser ou querer ser a melhor versão de mim mesmo continua a ser a bandeira a ser desfraldada na minha mente solidamente solitária. Nunca almejei ser um referencial para qualquer pessoa, tampouco um exemplo de vida. Sou, como sempre afirmo, uma síntese de contradições e me assumo assim de peito nu e cabelo ao vento, ao melhor estilo do Valença. Continuo as minhas transições e saboreio alguma espécie de contentamento no momento em que me é possível colorir a folha em branco.

Meu corpo continua aquecido e acolhido pelo sol. Eu sorrio, pois me resta uma porção de alegria, inspirada em Pessoa: “tudo vale à pena se a alma não é pequena”.

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