Pela
manhã, o sol aqueceu o meu corpo. Senti o seu banho iluminado tocar a minha pele
morena e me abastecer de vitamina D. Como é curioso saber que a luz da nossa
estrela mais próxima alimenta e dá vida.
E eu
precisava desse banho. Depois de um porre – daqueles que fazem você se esquecer
de quem você é o que você faz – e de um ataque de sonambulismo –, acordar em
intensidades dando bom dia ao dia é simplesmente maravilhoso. O coração batia
em toadas descompassadas nutrindo a alma de uma alegria poética ao mesmo tempo
em que mariposas faziam revoadas na altura do estômago. É que a vida sempre nos
apresenta as mais soturnas surpresas, especialmente quando os sentimentos são
intensos e marcados pela historicidade e pelos carinhos que não cessam de
escorrer dos olhos brilhantes daquele menino que soltava pipa nos tempos de
férias, junto a outros moleques. Eu gostava mesmo de fazer voar o meu
“jelequinho”. Fazia diversos deles e me divertia, tecendo pequenas rabiolas com
papel de pão. Sim, os pães comprados nas mercearias eram embrulhados com um
papel cinza, envolto por um barbante de algodão. Aqueles papéis faziam a
alegria da criançada.
Envolvido pelo momento e pelas memórias do momento, saí do sol e voltei para o sofá onde me
permiti a explosão de diversas inquietações e múltiplos pensamentos.
Diante
de mim, dois quadros pintados pela minha filha, que é artista plástica, dialogaram
com as minhas interioridades. O menor deles é uma pintura em preto e branco onde
um ser humano se sente acossado em suas dúvidas e questões, enquanto se vê
rodeado de flores e sombras, não necessariamente nesta ordem. Sua face revela a
contínua inquietação dos seres que sempre se encontram em processos de
reelaboração da existência. Lembra-me um casmurro em seu processo de enclausuramento
cinza. Seus olhos semicerrados anseiam pelos mundos não imaginados, presentes em
algum estado onírico surrealista. O ser não toca o chão, tampouco o céu e pende
a cabeça para a esquerda, onde há um clarão e as flores parecem querer sorrir,
mesmo no breu em que se encontram. Por sua vez, o quadro maior, comprido por sinal, revela um
movimento. Trata-se de um ser em transição. Desde o primeiro momento em que vi
as primeiras pinceladas deste quadro, disse a ela que eu o compraria e que ele
seria meu. Ela indagou-me de que estava preparando aquele quadro para outra
pessoa e que não queria que ele ficasse ali em casa. Eu a questionei dizendo
que ela estava pintado parte significativa do meu próprio eu. O quadro se
compõe de três cenas separadas e correlatas. À minha direita, pessoas indeterminadas
com suas mãos e garras tentam aprisionar o ser que busca a sua libertação. O
ser tem as pernas ainda presas pelas mãos e há um teor opressivo em tons e semitons
na cor verde-musgo. O ser tem as suas mãos em movimento de fuga. A angústia em
seu rosto denota a sua insana vontade de sair de uma realidade para se apossar
de outra. Ele almeja a sua liberdade e luta consideravelmente por ela. A sua mão
direita é maior que a sua própria cabeça. Sua sana é pela busca do novo. Todo o
seu corpo se acentua na segunda parte do quadro, a central, onde se revela um
céu com as suas nuvens e uma ambientação de paz. É a invasão de um estado
onírico eivado de possibilidades representadas num voo sempiterno e sem
limites. O ser, agora alado, não possui asas. Mas se desloca entre o gases da
atmosfera. Na terceira parte, revelam-se quatro pessoas sem sexo, sem gênero,
que dançam nuas num movimento “pericorético”. Não há entre elas qualquer que
seja mais relevante ou importante. Todas revelam a liberdade em tonalidades
quentes, vermelhas e alaranjadas, se opondo às mãos opressoras enquadradas nas
tonalidades verde-musgo, numa veemente oposição ao ambiente opressor.
Enquanto
os meus pensamentos se refaziam e de desfaziam em movimentos de sístoles e
diástoles sentimentais, eu mergulhava em minhas próprias imagens mentais para
me referendar de mim mesmo, visando minha afirmação identitária. Em minha
memória eram fugidios os flash’s do que ocorrera na madrugada anterior, somente
a certeza de que continua vivo o meu clamor pela minha liberdade de sair de
tudo aquilo que me oprime para viver em movimentos a minha dança nua entre
pessoas de bem.
Mais
do que um maniqueísmo dualista entre bem e mal, a experiência de ser ou querer
ser a melhor versão de mim mesmo continua a ser a bandeira a ser desfraldada na
minha mente solidamente solitária. Nunca almejei ser um referencial para
qualquer pessoa, tampouco um exemplo de vida. Sou, como sempre afirmo, uma
síntese de contradições e me assumo assim de peito nu e cabelo ao vento, ao
melhor estilo do Valença. Continuo as minhas transições e saboreio alguma
espécie de contentamento no momento em que me é possível colorir a folha em
branco.
Meu
corpo continua aquecido e acolhido pelo sol. Eu sorrio, pois me resta uma
porção de alegria, inspirada em Pessoa: “tudo vale à pena se a alma não é
pequena”.