quarta-feira, 6 de março de 2024

DIA 69 - Somos todos "Pobres Criaturas".



Eu assisti ao filme Pobres Criaturas - Poor Things (2023), dirigido por Yorgos Lanthimos, baseado no romance de mesmo nome, escrito por Alasdair Gray. O filme é estrelado por Emma Stone, Willen Dafoe, Mark Ruffalo, Ramy Youssef, entre outros. Na Londres vitoriana, a jovem Victoria pula de uma ponte, suicidando-se e é ressuscitada pelo excêntrico médico Godwin Baxter que fazia cruzamentos excêntricos como pato com cachorro e cachorro com galinha, além de produzir em sua digestão uma bolha. Ele, envolvido pela beleza da jovem, resolve fazer um transplante de cérebro, dando vida à comovente e divertida Bella Baxter, uma espécie de Frankenstein com razão, estética, beleza e arguta inteligência. O cérebro usado para o transplante foi o do bebê que estava sendo gerado no ventre da jovem. A frase do médico que revela o seu envolvimento com a beleza é assim expressa: “o mundo ficaria mais triste sem essa beleza”.

Através do desenvolvimento de Bella, uma jovem com corpo de mulher e cérebro de criança nos anos iniciais, Dr. Baxter contrata o médico assistente Max MacCandles para registrar o desenvolvimento da jovem criança ou da criança jovem. Este o faz, e, mediante as observações e percepções, vai paulatinamente se apaixonando. Ambos, o médico e o seu assistente estimulavam Bella em todas as suas ações e contradições. Nesse ínterim, Max pede a mão de Bella em casamento e ela aceita, todavia o seu rápido desenvolvimento intelectivo a convoca interiormente a conhecer o mundo que se abre a ela mesma. Um exemplo disso revela-se quando ela descobre a masturbação e o prazer sexual.

Para o contrato conjugal, Godwin convida Duncan Wedderburn para celebrá-lo. O excêntrico e rico advogado debochado se apaixona por Bella e propõe a ela o conhecimento do mundo. A jovem, diante da proposta de Wedderburn, resolve aceitar. Manifesta a Godwin o seu desejo, retarda o seu casamento com Max e resolve partir. Embora a insatisfação de Godwin, Bella contra argumenta que se ele não deixá-la partir, “ele vai despertar o ódio nela”. Como havia no médico o compromisso de não reprimi-la, ele cede.

Bella e Wedderburn embarcam em uma grande jornada e vivenciam o sexo em diversas perspectivas. Todavia, Bella é livre e não se deixa ser controlada pelo advogado. Ele, inseguro e insatisfeito com a liberdade da jovem, resolve unilateralmente embarcar em um navio, navegando em águas distantes e aprisionando Bella. No navio, Bella conhece Martha e Harry que favorecem o despertar de sua mente para a Filosofia. Wedderburn fica desconsolado e passa a beber desesperadamente. Ele insulta Bella por diversas vezes, inclusive jogando o livro que ela lia no mar. Em uma parada em Alexandria, a jovem conhece o sofrimento dos pobres e fica completamente consternada, a ponto de pegar o dinheiro de Wedderburn e doar àquelas pessoas por intermédio de dois marinheiros suspeitos.

O casal em sua aventura teve que deixar o navio em Marselha e se destinar a Paris. Sem dinheiro e, portanto, sem possibilidades de se acomodar ou comer, Bella busca um trabalho em um hotel e conhece um bordel administrado por Madame Swiney. Ela passa a sobreviver como uma puta e conhece, através da amiga Toinette, a dimensão sociopolítica do socialismo. Descobre, também, o prazer de transar com uma mulher.

Godwin se descobre em estado terminal e solicita a Max que localize Bella. Ele assim o faz e ela retorna reconciliando-se com o médico que lhe trouxe à vida de novo. Ao mesmo tempo, ela resolve se casar com Max. Entretanto, no dia da cerimônia de casamento, Wedderburn leva Alfie Blessington, marido de Victoria Blessington, o nome anterior de Bella, antes do seu desaparecimento, para interromper a cerimônia. Após as considerações de Blessington, ela abandona Max no altar e resolve ir ao encontro da sua vida passada. Todavia, descobre que o ex-marido é violento e sádico. Ele queria submetê-la a uma mutilação do clitóris, mas foi ela quem provocou a sedação do ex-marido levando o seu corpo para a casa de Godwin, a fim de provocar um transplante de cérebro. Ela coloca no sádico o cérebro de uma cabra.   


Minhas impressões sobre o filme

Eu não sou um crítico de cinema, tampouco um especialista na sétima arte, mas gosto de dar os meus pitacos sobre aquilo que de certa forma mexe com a minha consciência e me desloca das minhas poucas certezas. Ao término do filme, tive um relance intuitivo de que todos somos pobres criaturas. Ofereço, então, algumas impressões bem pessoais.

Fui provocado, inicialmente, pelo suicídio da jovem de pele clara e vestido azul brilhante. O olhar perdido no horizonte e o salto da ponte rumo ao desconhecido revela a agonia decorrente de sua vida pregressa, levando-a a tomar a decisão pela autodestruição. De fato, o suicídio é uma ação, decorrente de elementos multifatoriais, que muito implica na vida de todos os seres humanos, agredindo as percepções e ampliando as discussões sobre o que significa o sentido da vida. Albert Camus foi o primeiro a dizer que o único problema do qual a Filosofia deveria se ocupar é o problema do suicídio.

Após a sua ressurreição, Bella vivencia as suas experiências sem ser reprimida. Ela é fruto da contínua vontade científica pela extensão da vida a despeito de qualquer possibilidade de morte. Trata-se da vontade de se recriar e ressignificar a vida mediante as novas experiências científicas. De alguma maneira, o filme expressa que diante dos caminhos e descaminhos da morte, a vida pode ser recriada mediante novos parâmetros.

Nessa nova vida, Bella vive sem convenções sociais ou estereótipos. Se manifesta livremente numa dimensão que Freud classificaria como puro “Id”. Na ressignificação da vida, é fundamental viver de forma livre e espontânea, essa dimensão tão fundamental para se extirpar todo e qualquer embotamento social ou cristalização da beleza criativa dos seres humanos.

O puro “Id” e a liberdade para conhecer faz com que Bella descubra o prazer sexual em todas as suas possibilidades. Do autoconhecimento até a bissexualidade. Bella representa a mulher que se assume como mulher, contrariando as expectativas sociais de um mundo marcado pelo machismo e pelo patriarcalismo. Ela revoluciona ao ser extremamente pragmática, tendo as suas emoções contidas e, na maioria das vezes, exposta em sua própria nudez.

Todas estas impressões peremptórias revelam, também, o contínuo questionamento que cada um precisa ter quanto aos moralismos presentes na sociedade. A jovem Bella entende o seu papel como mulher e se assume como protagonista da sua própria trajetória. Bella, embora se jogue no prazer sexual, não se restringe a ele. Qualquer tentativa quanto a refreá-la, é rechaçada veementemente. Ela só quer o mundo aberto aos seus anseios e vontades. Tudo precisa ser permitido, mesmo quando passa a viver a vida com uma puta.

Na condição de uma prostituta, ela se abre ao conhecimento político e age continuamente de forma simples, sem emocionalismo. Isso é corroborado com a forma como ela vivencia a sua prostituição e em como rompe com o que está dito socialmente para experimentar o que ainda não foi experimentado. Para ela, em especial, homens de todas as formas, tamanhos e posições sociais, são limitados. Ela, inclusive, faz questão de questioná-los com as suas ações pragmáticas, seja com a desistência relacional ou com a mudança do cérebro de um homem sádico. Permanecem em seu espectro aqueles homens que permitem a ela viver como ela quer. É o caso de Godwin e de Max. Bella dá continuidade ao trabalho de Godwin na companhia de Max e Toinette. O cientista é ressuscitado na mulher que ele ressuscitou. A morte foi ressignificada com a experiência, o conhecimento, a aventura, o sofrimento, a revolução e a liberdade que não pode ser aprisionada.

Mas o filme é uma ode ao amor pela liberdade. Ele se revela diversificadamente nas semióticas, na passagem do preto e branco para o colorido, nas lentes “olho de peixe” e nos distanciamentos e aproximações que consideram as experiências dos protagonistas e coadjuvantes. O amor se manifesta em todos os corpos com as suas cicatrizes de vida e de morte. Quem não as possui? Elas revelam as contradições entre o que é e o que não é socialmente aceito. De fato, paga-se um preço muito muito alto pela possibilidade de se realizar o protagonismo na vida. São inevitáveis as experiências que criam amigos e inimigos.

No fundo, a vida que poderia ser considerada ideal é aquela que cria no microcosmo do quintal de uma casa, as possibilidades de uma vida marcada pela espontaneidade, pela criatividade e pelo amor. Todos temos as nossas cicatrizes. Numa consideração que seguiria a lógica de Bella Baxter, todos nós somos pobres criaturas.


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