segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

DIA 64 - Da natureza da coragem



Uma amiga a quem muito prezo mandou-me um recado tecendo considerações sobre um livro de crônicas que tive a oportunidade de publicar há alguns anos. Este recado carinhoso gerou-me sentimentos múltiplos e a vontade de dialogar com as suas percepções. Basicamente, ela me falou a respeito de coragem e de liberdade. Ela sentiu, no contexto das emanações de minha alma subversiva que eu estava tecendo críticas em relação às injustiças que tentavam amordaçar a vida humana, favorecendo a ampliação do espaço destinado às estruturas de poder, e que isso era muito corajoso da minha parte.

Eu preciso confessar que eu não sou corajoso. Aliás, minha vida é marcada pelo medo, pela ansiedade e pela angústia. Coragem substantiva não me define. Coragem substantiva não existe em minhas palavras, em minhas ações, tampouco em meu velho e carcomido dicionário de bolso – coisa antiga. Por uma causa que não sei mensurar, a coragem que eu não tenho surge em minha vida como uma erupção vulcânica em dados e espasmódicos momentos cotidianos. De repente, me vejo completamente tomado de uma ira sem precedentes e passo, então, a falar, agir e escrever coisas que não havia pensado ou medido. Assim, compreendi que pessoa alguma é corajosa fortuitamente, mas se enche de coragem ante a uma situação inusitada que lhe fere a alma ou a vida.

Ao mesmo tempo, passei a pensar no intrigante livro A Coragem de Ser, escrito pelo filósofo e teólogo Paul Tillich. Neste livro, o autor reúne os conceitos ético e ontológico alusivos à coragem e à angústia, afirmando que “a coragem de ser é o ato ético no qual o homem afirma seu próprio ser a despeito daqueles elementos de sua existência que entram em conflito com a sua autoafirmação essencial”. Nessa perspectiva, a coragem é uma atitude e uma potência do ser-em-si que recebe a si-próprio de volta, num processo de contínua autoafirmação frente ao não-ser. Não é fácil encarar os desafios mais diversos que se apresentam no campo da existência e, ainda assim, buscar a autoafirmação. Embora haja muitos medos envolvidos, como, por exemplo, o medo da perda, o medo da frustração, o medo da rejeição, o medo da morte, entre outros, dando a ideia de que coragem se relacione ao poder da mente para vencer o medo, para Tillich a coragem existe para refrear a ansiedade e angústia. Em suas palavras: “Coragem é usualmente descrita como o poder da mente para vencer o medo. O significado do medo pareceu por demais óbvio para merecer inquérito. Porém, nas últimas décadas, a psicologia profunda em cooperação com a filosofia existencialista, tem conduzido a uma decisiva distinção entre medo e ansiedade e a definições mais precisas de cada um destes conceitos”. A coragem aparece como uma postura e uma atitude concreta no aqui e no agora, obscurecendo o medo e seu objeto conhecido, e a ansiedade, quanto ao não-ser e a sua finitude, evidenciando as emoções e atitudes necessárias para o enfrentamento dos diversos monstros, inclusive os imaginários.

Em todos os dias, pessoas as mais diversas lutam continuamente com os seus medos, suas ansiedades e suas angústias, especialmente quanto à finitude. A convocação que cada ser se impõe, especialmente quanto a buscar posturas corajosas de autoafirmação frente às contínuas lutas cotidianas, é o que favorece a manifestação da coragem de ser. É justamente no momento em que a adrenalina inunda a corrente sanguínea que o autocontrole precisa se manifestar. Quando a emoção toma o lugar da consciência, os batimentos cardíacos e a pressão arterial precisam ser controlados mediante a respiração pausada e contínua. Um copo com água ajuda bastante. Em momentos de perigo iminente, a coragem brota em meio ao medo, à ansiedade e a angústia. Somente se manifesta com coragem quem tem medo, ansiedade e angústia. Somente tem coragem quem enfrenta o medo de arriscar. É nessa dialética contínua, entre medo e coragem, angústia e autoafirmação, que cada pessoa descobre, paulatinamente, as possibilidades de se buscar na dimensão do amor as possibilidades de afastamento do medo, da ansiedade e da angústia.

Como um gêiser que se manifesta do interior da terra, fazendo espargir o seu fluxo cheio de pressão, a coragem deve se manifestar num processo de autoafirmação à despeito das situações aflitivas e afrontosas que se manifestarem no cotidiano existencial. Quando o corpo for confrontado pelo infortúnio, a teimosia para se pensar diferente se torna uma condição amplamente necessária. Essa teimosia é a manifestação da coragem para se tomar a decisão certa nas situações limites que são experimentadas por cada ser.

À minha amiga, eu respondo: não sei se tenho coragem, mas a expresso continuamente, mesmo diante dos meus medos, minhas ansiedades e minhas angústias.

DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

  Quando eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado c...