Estava saindo do recinto onde desenvolvo
cotidianamente as minhas atividades profissionais como psicólogo, quando tive a
oportunidade de perceber uma borboleta agonizando. Infelizmente, ao que parece,
ela fora atacada por um passarinho e já não tinha mais a potencialidade
necessária para voar e encantar os olhos observadores.
Caída ao chão, enquanto ainda se agitava em seus últimos
momentos até parar, percebi a sua cor marrom e as formações naturais retilíneas
e circulares que certamente serviam como qualidades adaptativas para a proteção
quanto ao ataque dos seus predadores. Seu mimetismo lembrava um roedor ou uma
coruja.
Então resolvi retirar a borboleta, agora sem vida, do caminho, o que fiz carinhosamente, sabendo da sua fragilidade. Todavia, ao virá-la, deparei-me com uma agradável surpresa: ela era maravilhosa e linda, muito mais linda do que eu supunha. Num primeiro momento, revelou-me o seu verso obscuro em tonalidades pretas, cinzas e marrons. O anverso, por sua vez, apresentava uma tonalidade brilhante azul turquesa. A retina do meu olho que vê ficou encantada.
Obviamente, contemplei a dupla beleza da borboleta e parei
para pensar sobre a realidade de todos nós. Somos seres de dupla face. Por um
lado escondemos os nossos mais parcos sentimentos para nos protegemos das
pessoas que, muitas vezes, não nos querem bem. Em nossos voos existenciais,
revelamos as nossas sombras mais estranhas. Ao mesmo tempo, na contraposição,
expomos a beleza de nossa singularidade e nossas competências e habilidades.
Assim o fazemos por sermos seres multicoloridos que revelamos ao mesmo tempo as
nossas sombras protetoras e as nossas belezas subjetivas.
Enquanto eu ainda me via completamente envolto com essa
reflexão, percorria o caminho de terra que me levava a um povoado rural chamado
Ribeirão de Santo Antônio. Minha cabeça era um intenso turbilhão reflexivo.
Percepcionava as sombras e cores das árvores, plantas, flores e seres e
confirmava paulatinamente a dualidade de todos os seres.
Apesar de sermos tão diferentes, compartilhamos a perspectiva
de que, de fato, temos nossas respectivas dualidades e múltiplas revelações.
Pensei contundentemente nas relações vivencias, pois nem sempre se pode
expressar vivamente o que se é ou como se está. Nem sempre as pessoas com as
quais se convive se encontram preparadas para ouvir ou para acolher aquilo que
ocorre na intimidade pessoal. Nesse sentido, todos nós nos encontramos
aprisionados dentro de nossos corpos pessoais. Talvez, este aprisionamento seja
muito necessário, pois a apropriação indevida de nossos sentimentos sem o
carinho genuíno ou a atenção própria e devida pode se constituir em alto
prejuízo para quem se revela. Os sentimentos revelados precisam ser cuidados
como cristais preciosos que não podem cair ao chão, se estilhaçando.
Apesar das duas asas da borboleta ainda baterem em minha
caixola, eu precisava cumprir o meu trajeto e acalentar os meus conflitos. Eu
estava acompanhado de duas jovens senhoras e como um bom provocador que sempre
soube ser, fazia observações aleatórias sobre a vida e suas dicotomias, abrindo
janelas reflexivas capazes de romper as ideias monolíticas e os pensamentos
racionais que parecem nos colocar naquela posição confortável de quem sabe o
que diz ou que sabe o que vive. Ledo engano. Somos somente experiências e
movimentos: as duas asas da borboleta em seu voo. Pensar de uma única forma
torna a vida empobrecida.
Enfim, coloquei a borboleta inerte em um jardim, a fim de que
a sua decomposição alimente outros seres e sementes, pois é assim a vida. As duas
asas da borboleta tocaram o meu cotidiano e fizeram-me repensar as dinâmicas
relacionais do meu próprio existir. Elas continuam a bater, lembrando-me
continuamente que somos sempre sombras e belezas em movimentos originais.