Reconheço-me
continuamente como um profissional da saúde mental. Desenvolvo as minhas
atividades como psicólogo, seguindo uma linha chamada Humanista-Existencial.
Todos os dias, eu me envolvo em conversas ativas no campo social, bem como no
atendimento clínico psicoterápico em um setting terapêutico.
Entendo
que toda e qualquer pessoa presente em uma sociedade desenvolve o seu papel
social. Entendo também que os profissionais da área de saúde mental, além de
desenvolverem seus respectivos papéis, também se envolvem em demandas que
se encontram para além do que poderiam ou deveriam se envolver. Ora, toda
profissão requer um nível de entrega, mas a entrega de um profissional da saúde
mental é de uma ampla intensidade, pois marcada por uma escuta atenciosa eivada
de múltiplas interpretações simbólicas. Nem sempre o que o cliente traz em suas
demandas iniciais é o que, de fato, importuna a sua interioridade.
Por conta de todo esse movimento de idas e
vindas, partidas sem chegadas ou absolutos, os profissionais de saúde mental
adquirem uma fadiga bem complexa e inusitada, pois inquirem sobre um terreno
gelatinoso. Sabedor desta realidade, eu separei um tempo de reclusão para
mim mesmo. Em virtude das múltiplas ações desenvolvidas nos dias, tive a
necessidade de estabelecer uma pausa das atividades com a finalidade de melhor
me organizar intimamente.
Eu
sou daquelas pessoas que nunca tive um problema efetivo de ordem psíquica, um
que me levasse, por exemplo, a um tratamento psiquiátrico. Bati na trave
algumas vezes, é verdade, mas por conta do meu investimento na psicoterapia,
permiti-me múltiplas ressignificações dos tempos idos e dos vários eventos
vivenciados ao longo de minha historicidade, inclusive vencendo uma Síndrome de
Burnout – um conjunto de sentimentos ligados diretamente ao ambiente de
trabalho e suas frustrações. Com a psicoterapia, passei a respeitar um pouco
mais tudo aquilo que era sinalizado em meu próprio corpo. Alinhada às demandas básicas biológicas, como beber, comer,
dormir e transar, eu entendi que era fundamental cuidar das explosões das
minhas emoções, visando o equilíbrio saudável dos meus sentimentos, naquele
lugar reconhecido como consciência.
Confesso
que quando eu gozava do meu momento de pausa, descanso e relaxamento, eu
procurei provocar um refazimento da minha própria experiência de vida. Eu sei
que para aqueles que são inquietos com a vida e com as suas polissemias,
trona-se muito difícil pausar as atividades cotidianas, todavia ela é
fundamental para a recuperação do corpo e da saúde psíquica. A melhor forma de descansar a cabeça é tentar não fazer coisas que
habitualmente são feitas. Então, assim eu fiz. Deixei o vento me conduzir sem
qualquer preocupação com um êxito ou sucesso, sem nenhum intento por arcar com
um compromisso. Procurei efetivar o que costumeiramente eu não faria, fazendo o
meu sabbath shalom, mesmo sem ser judeu. Um dos meus grandes ganhos
neste tempo de pausa foi gozar cada instante como um instante de desfrute. Foi
muito prazeroso caminhar sobre o sol, especialmente ao final da tarde,
expericiando as cores brilhantes do crepúsculo. Caminhadas e contemplações
podem ser consideradas bobinhas para muita gente, mas para mim são
fundamentais. Elas me ajudam a fugir dos processos de automação, enfrentados na
lida diária. Através delas, eu redescubro as potencialidades do viver e
reencontro as perenes riquezas do equilíbrio e do bem-estar.
Foi
muito bom chegar ao final desse período com a cabeça mais leve e com os
sentimentos bem mais soltos. Tranquilidade e sentimentos esvoaçantes como
pássaros selvagens são vitais para a dinâmica do pensamento. Dessa forma, eu
voltei ao meu trabalho com outra perspectiva, outro “astral”.
Infelizmente,
muitas pessoas acham que as demandas cotidianas precisam ocupar a cabeça com
outras atividades pesadas. Não poucas vezes, eu ouço as pessoas se achegarem a
mim, dizendo que precisam fazer isto ou aquilo para mudar o foco, o pensamento.
Eu até entendo a boa intenção da pessoa a e sua vontade de distrair o
pensamento com outras atividades, mas isso não é garantia de que os problemas
serão desfocados.
A
meu ver, muitas das nossas demandas se resolvem quando temos a oportunidade de
pausar a vida e todas as suas experiências para nos encontrarmos com o sentido
mais internalizado de nossa subjetividade. Quem sabe, nada fazer para
experimentar o ócio, o puro prazer de se deitar em uma rede para relaxar, de
preferência com meio olho aberto para o mar. Em suma, é importante
conceituarmos que fazer coisa alguma na maioria das vezes significa fazer o
melhor por nós e para nós. Eu, particularmente, gosto de pensar que através da
pausa necessária para o meu viver, dou melhores condições e significados para a
ampliação do meu entendimento como pessoa.
Recentemente,
perdemos Domenico de Masi, filósofo e cientista italiano, uma grande perda para
o mundo acadêmico. É dele a obra O Ócio Criativo (1995). Em que pese todas as
boas percepções deste autor nesta obra fundamental, a ideia de que muitas vezes
temos que nos contrapor aos mecanismos de trabalho que em geral consomem a
dinâmica de nossas próprias vidas, aliada ao fato de podermos fazer o que
gostamos de fazer, é a que mais me apetece. De fato, o ócio criativo
caracteriza a passagem da sociedade industrial para a pós-industrial,
valorizando-se as atividades criativas. O intelectual sobrepondo-se ao manual.
Nas palavras de Masi, o ócio criativo é “a síntese entre o trabalho, o estudo e
o jogo”. Nesta síntese, o bem-estar precisa ser amplamente valorizado.
Podemos ampliar a provocação e dizer que, em alguns casos, só o ócio pelo ócio mesmo e o descanso pelo descanso, com descaso para os resultados. Em alguns momentos, torna-se fundamental esquecer-se quem se é, onde se está, o que se faz, apertando o famoso “botão” para tudo e todos. Depois, só suspirar com alívio. A vida é boa quando a gente, também, tem a coragem de se desconectar dela.