quinta-feira, 14 de setembro de 2023

DIA 38 - O ócio pelo ócio - cuidados em tempos de fadiga

 


Reconheço-me continuamente como um profissional da saúde mental. Desenvolvo as minhas atividades como psicólogo, seguindo uma linha chamada Humanista-Existencial. Todos os dias, eu me envolvo em conversas ativas no campo social, bem como no atendimento clínico psicoterápico em um setting terapêutico.

Entendo que toda e qualquer pessoa presente em uma sociedade desenvolve o seu papel social. Entendo também que os profissionais da área de saúde mental, além de desenvolverem seus respectivos papéis, também se envolvem em  demandas que se encontram para além do que poderiam ou deveriam se envolver. Ora, toda profissão requer um nível de entrega, mas a entrega de um profissional da saúde mental é de uma ampla intensidade, pois marcada por uma escuta atenciosa eivada de múltiplas interpretações simbólicas. Nem sempre o que o cliente traz em suas demandas iniciais é o que, de fato, importuna a sua interioridade.
Por conta de todo esse movimento de idas e vindas, partidas sem chegadas ou absolutos, os profissionais de saúde mental adquirem uma fadiga bem complexa e inusitada, pois inquirem sobre um terreno gelatinoso. Sabedor desta realidade, eu separei um tempo de reclusão para mim mesmo. Em virtude das múltiplas ações desenvolvidas nos dias, tive a necessidade de estabelecer uma pausa das atividades com a finalidade de melhor me organizar intimamente.

Eu sou daquelas pessoas que nunca tive um problema efetivo de ordem psíquica, um que me levasse, por exemplo, a um tratamento psiquiátrico. Bati na trave algumas vezes, é verdade, mas por conta do meu investimento na psicoterapia, permiti-me múltiplas ressignificações dos tempos idos e dos vários eventos vivenciados ao longo de minha historicidade, inclusive vencendo uma Síndrome de Burnout – um conjunto de sentimentos ligados diretamente ao ambiente de trabalho e suas frustrações. Com a psicoterapia, passei a respeitar um pouco mais tudo aquilo que era sinalizado em meu próprio corpo. Alinhada às demandas básicas biológicas, como beber, comer,  dormir e transar, eu entendi que era fundamental cuidar das explosões das minhas emoções, visando o equilíbrio saudável dos meus sentimentos, naquele lugar reconhecido como consciência.

Confesso que quando eu gozava do meu momento de pausa,  descanso e relaxamento, eu procurei provocar um refazimento da minha própria experiência de vida. Eu sei que para aqueles que são inquietos com a vida e com as suas polissemias, trona-se muito difícil pausar as atividades cotidianas, todavia ela é fundamental para a recuperação do corpo e da saúde psíquica. A melhor forma de descansar a cabeça é tentar não fazer coisas que habitualmente são feitas. Então, assim eu fiz. Deixei o vento me conduzir sem qualquer preocupação com um êxito ou sucesso, sem nenhum intento por arcar com um compromisso. Procurei efetivar o que costumeiramente eu não faria, fazendo o meu sabbath shalom, mesmo sem ser judeu. Um dos meus grandes ganhos neste tempo de pausa foi gozar cada instante como um instante de desfrute. Foi muito prazeroso caminhar sobre o sol, especialmente ao final da tarde, expericiando as cores brilhantes do crepúsculo. Caminhadas e contemplações podem ser consideradas bobinhas para muita gente, mas para mim são fundamentais. Elas me ajudam a fugir dos processos de automação, enfrentados na lida diária. Através delas, eu redescubro as potencialidades do viver e reencontro as perenes riquezas do equilíbrio e do bem-estar.

Foi muito bom chegar ao final desse período com a cabeça mais leve e com os sentimentos bem mais soltos. Tranquilidade e sentimentos esvoaçantes como pássaros selvagens são vitais para a dinâmica do pensamento. Dessa forma, eu voltei ao meu trabalho com outra perspectiva, outro “astral”.

Infelizmente, muitas pessoas acham que as demandas cotidianas precisam ocupar a cabeça com outras atividades pesadas. Não poucas vezes, eu ouço as pessoas se achegarem a mim, dizendo que precisam fazer isto ou aquilo para mudar o foco, o pensamento. Eu até entendo a boa intenção da pessoa a e sua vontade de distrair o pensamento com outras atividades, mas isso não é garantia de que os problemas serão desfocados.

A meu ver, muitas das nossas demandas se resolvem quando temos a oportunidade de pausar a vida e todas as suas experiências para nos encontrarmos com o sentido mais internalizado de nossa subjetividade. Quem sabe, nada fazer para experimentar o ócio, o puro prazer de se deitar em uma rede para relaxar, de preferência com meio olho aberto para o mar. Em suma, é importante conceituarmos que fazer coisa alguma na maioria das vezes significa fazer o melhor por nós e para nós. Eu, particularmente, gosto de pensar que através da pausa necessária para o meu viver, dou melhores condições e significados para a ampliação do meu entendimento como pessoa.

Recentemente, perdemos Domenico de Masi, filósofo e cientista italiano, uma grande perda para o mundo acadêmico. É dele a obra O Ócio Criativo (1995). Em que pese todas as boas percepções deste autor nesta obra fundamental, a ideia de que muitas vezes temos que nos contrapor aos mecanismos de trabalho que em geral consomem a dinâmica de nossas próprias vidas, aliada ao fato de podermos fazer o que gostamos de fazer, é a que mais me apetece. De fato, o ócio criativo caracteriza a passagem da sociedade industrial para a pós-industrial, valorizando-se as atividades criativas. O intelectual sobrepondo-se ao manual. Nas palavras de Masi, o ócio criativo é “a síntese entre o trabalho, o estudo e o jogo”. Nesta síntese, o bem-estar precisa ser amplamente valorizado.

Podemos ampliar a provocação e dizer que, em alguns casos, só o ócio pelo ócio mesmo e o descanso pelo descanso, com descaso para os resultados. Em alguns momentos, torna-se fundamental esquecer-se quem se é, onde se está, o que se faz, apertando o famoso “botão” para tudo e todos. Depois, só suspirar com alívio. A vida é boa quando a gente, também, tem a coragem de se desconectar dela.

DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

  Quando eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado c...