terça-feira, 31 de outubro de 2023

DIA 46 - Temos mais onze meses para o "Outubro Rosa"

 


Chegamos ao final do mês de outubro, mas não ao final do movimento internacional de conscientização para a detecção precoce do câncer de mama. Outubro emoldurou as ações batizadas pela alcunha de “Outubro Rosa”. Originalmente, quem lançou esta campanha foi a Fundação Susan G. Komen for the Cure, em 1990 e ela se configura em vários países do mundo. De nossa parte, em nosso pequeno microcosmo, na condição de psicólogo ligado ao CRAS perante os desafios da saúde mental, acompanhamos de forma direta ou indireta as ações que objetivaram compartilhar informações e promover a conscientização sobre o câncer de mama.

Ora, o câncer de mama é o tipo que mais acomete mulheres em todo o mundo. Cerca de 2 milhões de casos novos ocorrem estimativamente a cada ano. No Brasil, o surgimento de novos casos gira em torno de 60% para cada 100.000 mil mulheres. Infelizmente, o câncer de mama ocupa o primeiro lugar no ranking de mortalidade de câncer entre as mulheres no Brasil. As maiores taxas de incidência e de mortalidade estão nas regiões Sul e Sudeste, onde há uma maior aglomeração. Isso levou o Governo Federal a criar a Lei nº 13.733 de 2019, que instituiu o mês de conscientização sobre o câncer de mama – outubro rosa, período em que devem ser desenvolvidas as seguintes atividades, entre outras:

I – iluminação de prédios públicos com luzes de cor rosa;
II – promoção de palestras, eventos e atividades educativas;
III – veiculação de campanhas de mídia e disponibilização à população de informações em banners, em folders e em outros materiais ilustrativos e exemplificativos sobre a prevenção ao câncer, que contemplem a generalidade do tema.

 

Todos os interessados e as interessadas no assunto sabem que não existe uma causa para a aparição e desenvolvimento de qualquer câncer. A doença ocorre por conta de uma conjunção de fatores, os mais diversos. Obviamente que os fluxos nos quais cada um de nós se envolve em determinados ambientes podem contribuir neste processo. Sempre observo o fato de muitos buscarem causas clássicas ou cartesianas para as doenças e as enfermidades, mas, sabemos, toda e qualquer doença possui causas multifatoriais.

Eu entendo que o corpo é o único lugar em que habitamos no universo. E, portanto, ele deve ser cuidado continuamente. A grande receita para o cuidado corporal é muito antiga, e ela se refere à busca pelo equilíbrio em todas as esferas da existência: biológica, emocional, afetiva, sexual, psíquica e social.

Curiosamente, as campanhas do Outubro Rosa tiveram uma abrangência maior no campo virtual a partir da pandemia da SARS-COV-02. Muitas lives e documentários buscaram evidenciar a importância do toque e o acompanhamento a qualquer sinal diferente na mama. Por exemplo, encontra-se disponível no YouTube um vídeo que considera a questão, buscando aumentar a criatividade daqueles que querem ampliar este campo de informação. Disponibilizamos o link ao final do artigo. Obviamente, a inovação na forma de comunicação e abordagem sobre o câncer de mama foi fundamental para a promoção da saúde da mulher e de alguns homens que também podem desenvolver este respectivo câncer.

Todavia, o que me levou a escrever este texto neste dia, mais do que enfatizar mais uma vez a importante campanha no mês, é a de alertar os cidadãos e as cidadãs a se alinharem continuamente em ações que não se permitam qualquer nível de paralisação. É preciso que a conscientização seja contínua em todos os outros onze meses e que todos, indistintamente, acompanhem os avanços do Instituto Nacional de Câncer – INCA.



Hoje, dia 31 de outubro, afirmo contundentemente que as campanhas de conscientização para a prevenção do câncer de mama devem continuar. Mais do que isso, serem ampliadas no cotidiano dos profissionais da saúde e de todos os cidadãos e cidadãs que almejam o bem-estar dos seus amores, bem como de todos aqueles que querem viver com ampla qualidade de vida. Em meu ponto de vista como profissional da saúde mental, empenho-me para que preconceitos e barreiras relativas à corporeidade sejam postas de lado, afinal de contas, quando o assunto alusivo à qualidade de vida está em jogo, o que vale é a luta contínua.

Enfim, quero ressaltar que existem exemplos significativos nesta luta. É o caso da pedagoga Keila Ferrari que se dedicou à escrita terapêutica em seu blog: Lua em Primavera, enquanto lutava contra o câncer de mama. Alcançou a cura em 2018, mas no mesmo ano descobriu uma recidiva com metástase no pulmão. Nesta luta, declarou: “Tem dias melhores e outros piores, mas as noites têm sido difíceis, pois bate aquele medo da morte”. Quanto ao blog, afirma: “Tenho buscado dar voz de forma poética a mulheres que passam pelo mesmo problema. É uma forma de expressão, assim como a dança, distrai um pouco”. O blog pode ser conferido neste link: https://professorakeylaferari.blogspot.com/.

 

 

Fontes:

1. Instituto Nacional de Câncer – INCA

2. Union for International Cancer Control (UICC)

3. Repensando as campanhas sobre o câncer de mama. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1UmTPQYrSDE.

 

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

DIA 45 - Imagens refletidas nas sombras irrefletidas

 


Eu me vejo espelhado, mas nem sempre confortável. Prefiro o reflexo das lagoas translúcidas que acolhe em sua lâmina o céu e as suas nuvens, quando há nuvens. Em qualquer delas, reconheço as distorções e os reflexos do que imagino ser real, se é que existe algo real.

De posse do irreal que me habita, tenho fortes impressões sobre o meu eu e elas não são ideais. Revelam-me as minhas sombras e os levianos espectros do meu doar decantador. Reconheço-me como um doador contumaz, especialmente quando o assunto é o acolhimento às pessoas em suas inquietações mais profundas.

Em todo o tempo, eu procuro o meu gozo fortuito peregrinando nas trilhas do meu segundo (in)sano e passageiro. Como transeunte, saliento o meu egoísmo e me cubro com retalhos de pano azul turquesa. Quero destacar-me na avenida das pirambeiras enquanto me escondo em minha mais íntima intimidade e paraliso as batidas do meu coração.

Dizem-me que eu não posso ser egoísta, somente altruísta. Todavia, cansei-me do altruísmo exagerado e sem tréguas, e me lanço à aventura insana de escalar a montanha sem equipamento de proteção. Será que chegarei ao cume? Não sei e nem pretendo saber. Já tá valendo a rota torta que me entorta a coluna e me faz doer a perna direita. Preparo uma pequena refeição leitosa para me deleitar, com alguns cereais e uma carne de sol.

Eu que não fumo, tento deletar a minha fome com uma lasca de pão quase bolorenta, enquanto ofereço lentilhas a qualquer alma faminta que me dê os seus direitos de fêmea. Não nego o que possuo e persigo o meu dilema emocional, sem saber, de fato, qual ele é. A fêmea no cio.

Sei que o mundo gira tal qual uma montanha russa, daquelas radicais que liquidificam sensações. Eu, igualmente, rodopio em um trilho imaginário e agressivo, soberano. Tudo é meu e eu me completo, me bastando sem me considerar um bastardo. Passo a viver assim, sem fazer nenhum plano para ontem, sequer para amanhã. Aliás, agora é a hora do looping.

Completamente atordoado, passo a percorrer os caminhos que me levam à mina de rubis. Quando retorno de seu subterrâneo, meus olhos se sentem agredidos pelos raios de sol da aurora magistral. Não tenho óculos escuros. Meu grau é grandão. Tais caminhos e jornadas trazem o amor e o poder de volta ao self interior, o que sustenta o egoísmo. Na perspectiva do andarilho, experimentar cenários que se modificam e se transformam continuamente. Mudo com eles e colho o pó em ouro puro. Perdi as contas de quantas vezes eu me perdi em minhas andanças.

Adoro perder-me e subtrair-me. Nunca fui muito bom em matemática. Sempre afoito às artes humanas, minha fascinação. Com o ouro, espalmo as minhas mãos, balanço-as ao ar tentando tocar o horizonte que se esvai, dando lugar à dama da noite. Minha boca calada já não quer calar-se, a língua já foi mordida. Junto aos camafeus, procuro me refazer na saudade.

Às vezes, cai sal na ferida, pandemia que arruína Proteus. Eu grito na gruta, luzeiros acesos, agonia que não cessa. O olhar mais perdido agora tenta contemplar a noite sem estrelas e as mãos cheias de purpurinas douradas que não me deixam rico. Enquanto as pálpebras escondem os olhos que ardem, o cansaço visita todo o corpo. O chão empoeirado convida ao deitar-se maviosamente, sem conforto. A garganta já ressecada requer o líquido límpido, incolor e sem sabor.

Nem tudo é dor, e o momento requer posturas eivadas de vivacidade. Nadar no rio é opcional, mas as águas escondem as pedras lodosas. Contusões e feridas podem ocorrer. Preciso repousar e enquanto assim faço, deparo-me novamente com a minha imagem refletida, agora em uma lápide de granito. Ela ainda está retorcida e eu me contorço em sentimentos e desejos vulcânicos. Minha Nárnia pessoal continua viva.


segunda-feira, 23 de outubro de 2023

DIA 44 - O inefável...

 


Resolvi escrever sobre o inefável. De antemão, quero deixar claro que eu sei que é bem paradoxal escrever sobre esta dimensão, justamente pela impossibilidade de situar em um texto algo que não pode ser descrito como sujeito ou objeto, mas como fenômeno. Todavia, entendo que este é um desafio válido.

Segundo os dicionários disponíveis nas redes digitais, inefável significa aquilo que não se pode nomear ou descrever em razão de sua natureza, força, beleza. Trata-se daquilo que é indizível, indescritível e que causa imenso prazer. Em suma, o inebriar-se no pleno encantamento das delícias.

Ao longo dos meus anos de vida e existência vivenciei algumas experiências e percepções que não poderiam ser traduzidas em palavras. Lembro-me que a minha primeira experiência com o inefável se deu no meu encontro com a praia. Eu e os meus pais, juntamente com a minha irmã pequena, fomos ao Recreio dos Bandeirantes no litoral do Rio de Janeiro. Quando me deparei com aquela areia branca e espessa, misturada àquele mar azul dividido por uma pedra ovalada, vivenciei a minha primeira experiência indizível. Na revisita às minhas memórias, considero esta como a primeira manifestação de encantamento da qual me recordo.

O inefável também se manifestou em minha vida nos sonhos, especialmente os que eu sonhava que estava voando. A sensação de voar sobre todos os espaços vivenciais era realmente indizível. Palavra alguma poderia orientar o sentimento que se manifestava em meu ser, mesmo depois em vigília. Na memória se manifestavam o sonho e aquela sensação de liberdade, experimentada pelos pássaros. Obviamente, como um ser em construção, eu nunca pude voar em minha realidade, mas o sonho e sua potente linguagem me impulsionavam a sentir o que não se manifestava em minha realidade. Eu, de minha parte, produzia a arte.

Eu entendo que a experiência do inefável ocorre todas as vezes que temos a oportunidade de focar o momento de uma forma consciente ou inconsciente. Tudo o que percepcionamos de uma forma intensa e inigualável num determinado momento, no aqui e no agora, pode se traduzir em experiência do inefável. Aliás, para mim em especial, é justamente a percepção atenta e intensa no aqui e no agora que garante a experiência do inefável. Nela, não há possibilidades para teorizações cartesianas, somente para percepções e sentimentos profundos nunca antes evocados pelos sentidos. Trata-se da percepção pela percepção, do sentir pelo sentir, do experimentar pelo experimentar de uma forma aprofundada. Em outras palavras, não somente molhar os pés e os tornozelos, mas se afogar nas águas profundas, transparentes ou turvas de um mundo ainda não percepcionado.

Lembro-me de outra experiência do inefável vivida na Igreja de Santo Agostinho em Paris. Fui ao recinto com alguns amigos. Lá, deparei-me com uma orquestra e uma solista que tocavam o coração dos que ali estavam presentes de uma forma absurdamente encantadora. Enquanto cerca de mil pessoas faziam contido silêncio diante da apresentação, a música e a voz da solista faziam os pelos da pele arrepiarem-se. Faltavam-me palavras para descrever o que eu sentia, porque, de fato, eu não sabia o que era ouvir conjuntamente a tantas pessoas que se encontravam em silêncio absoluto, aquilo que tocava a alma de cada uma de uma forma única. As palavras cantadas sequer eram entendidas, pois expressas em latim. Enquanto eu percepcionava todo aquele momento, a melodia, o incenso, o silêncio e as pessoas, brotavam dos meus olhos copiosas lágrimas quentes. Elas escorriam pelo meu rosto. Eu não tinha a coragem de levantar a minha mão direita para enxugá-las, pois elas produziam em mim um sentido que eu ainda não havia sentido. Experiência similar eu vivenciei quando visitei o Jardim de Monet. Foi inefável percepcionar aquela miríade de cores, flores e perfumes. Silenciei a minha alma e fotografei aqueles instantes que para mim se tornaram instantes eternos. As melhores fotografias foram as que impregnaram a minha retina.

Como já afirmei, para mim, a experiência do inefável se revela na profundidade da percepção do momento. Quando eu retornei dos meus estudos no exterior, depois de longo tempo fora do Brasil, tive a oportunidade de “matar” a saudade dos nossos famosos “pãezinhos de sal”. No trajeto entre São Paulo e Juiz de Fora, depois de ter viajado a noite toda, parei em um posto com apoio logístico e restaurante. Pedi um café puro e comi quatro “pãezinhos de sal”, como se fossem um manjar dos deuses. Embora eu cheirasse e saboreasse aqueles pães quentinhos, eu fui muito além. Minhas percepções me levaram a uma experiência do indizível, embora, para muitos, comer “pãezinhos de sal” seja uma experiência trivial, cotidiana e corriqueira.

O inefável não somente tem a ver com o inusitado e novo, mas com o simples e básico. Ele se revela no beijo afetuoso, no abraço apertado, no toque sensível na pele, nos encantamentos que são originados nos brilhos que escorrem dos olhos. Revela-se também na intensidade da entrega, no desejo pelo outro, na vontade pelo bem-estar da pessoa amada, na profundidade do encantamento provocado pelo sorriso solto leve aberto e, obviamente, no orgasmo.

As experiências, complexas ou simples, que não podem ser ditas ou descritas, têm a ver com a percepção do inefável. São como encontros com sistemas planetários que nós nem imaginamos que existam. A experiência do indizível é tão profunda, tão única, tão subjetiva e tão própria àqueles que saboreiam a vida em seu instante-segundo, que nos lançam ao terreno das contradições. Como nos lembra Ferreira Gullar

Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

 

Uma parte de mim

é multidão;

outra parte estranheza

e solidão.

 

Uma parte de mim

pesa, pondera;

outra parte delira.

 

O mundo sem fundo, multidão, estranhamento, solidão, ponderação e delírio só podem ser percepcionados na dimensão do inefável, no encontro do beija-flor com o seu lírio preferido, nas contradições. Enquanto eu tento encerrar este texto, sou surpreendido na rádio pela música “Paralelas” do inesquecível Belchior. Parei a escrita para ouvir a música com os olhos fechados, percepcionado a profundidade do que não poderia dizer ou escrever. Somente senti a música percorrer a minha corporeidade a ponto de eu mesmo querer abrir as janelas da minha casa e gritar bem alto, enquanto o carro passa: “Meu infinito sou eu”.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

DIA 43 - Grandes momentos se encontram na simplicidade do momento!

 


Quem disse que precisamos de eventos bons e glamorosos para nos divertimos? Quem disse que precisamos de pompas e circunstâncias para nos consideramos mais gente?

Há duas semanas eu tive a oportunidade de viajar para o Rio de Janeiro, onde vivi algumas boas e inusitadas experiências. Após concluir o meu compromisso, motivo de minha viagem, fui à casa de minha tia onde iria pousar. Reencontramo-nos, almoçamos juntos e rumamos ao hospital Miguel Couto no Leblon, onde o esposo dela estava internado. Eu a deixei na portaria, pois eu não poderia entrar. Fiquei aguardando ela resolver todas as questões inerentes ao processo de cuidado e recuperação dele.

Enquanto eu a aguardava, tive oportunidade de rever muitas das minhas ideias. Eu sempre tenho o costume de paralisar o meu momento presente com a finalidade de refazer as minhas intenções. Eu acredito plenamente no processo de contínua revisão da vida e da existência. Faço essas revisões com muito prazer e alegria. Não me sinto constrangido em me autodeclarar um ser em contradições. Gosto de ressignificar o que vivo e entendo que este movimento precisa existir continuamente entre nós. E, assim, escrevo poemas, faço poesias...

Enquanto eu visitava as minhas ideias, comprei um picolé para saboreá-lo e passar o tempo. Saboreei o meu preferido: o Tablito, enquanto eu assistia a reprise do filme Rocky VI, estrelado por Sylvester Stallone. O filme na verdade estava dentro de um projeto de merchandising da Rede Globo de televisão e do Banco Itaú. O sistema de mercado dando o seu “tchauzinho” para toda a galera numa tarde de sábado. Na sequência do filme, veio o programa exibido pela referida emissora, intitulado Caldeirão com Mignon e aquela enxurrada de propagandas ligando o apresentador ao ator norte-americano. Percebi que tudo se encontrava bem orquestrado para favorecer a contínua venda de produtos da rede bancária. Nada novo debaixo do sol.

Depois, eu busquei a minha tia no hospital e nos destinamos à sua casa. Tive a oportunidade de me encontrar com o meu primo. Ele é um contador de histórias do cotidiano. Muito divertido, fala às pessoas e conta casos com uma precisão tão fantástica e tão bem humorada, digna dos grandes humoristas espalhados por este país de meu Deus. Só para ter uma ideia do que eu estou falando, ele trabalha com o turismo na cidade do Rio de Janeiro. Naquele mesmo dia, ele falou que acompanhou um casal de Porto Alegre em uma visita ao Cristo Redentor. Como um bom guia turístico, contou diversas histórias sobre o Rio e sobre a construção do Cristo. Ao se aproximar do destino final, aquele que dá destino às Vans do último trecho, ele percebeu que a fila dos turistas estava completamente lotada. Então ele provocou uma das cenas mais hilárias que eu já tive a oportunidade de ouvir. Combinou com a senhora do casal para que ela se passasse por uma pessoa com deficiência visual. Ela titubeou, mas concordou. Então, ele cortou toda a fila para ir à frente, com a finalidade de adentrar em uma das Vans. A missão foi cumprida, e com sucesso. Se verdade ou não, não importa. A história é boa e nos rimos a valer.

À noitinha, eu e a minha tia resolvemos fazer uma programação bem simples e próxima à sua casa. Fomos para uma barraquinha organizada em uma calçada onde havia um pai e um filho fazendo churrasquinhos e pães de alho. Resolvemos tomar umas cervejas, celebrando aquele momento todo especial de conversa aberta franca e honesta.

Um vento forte começou a nos visitar, fazendo redemoinhos de poeira e anunciando a chegada de uma chuva. Ela já era esperada, pois o dia fora extremamente quente. A chuva veio como uma dádiva. Não nos importamos com ela e permanecemos assentados em nossos banquinhos de plástico, curtindo o momento e sendo banhados pela água fria. Eu já disse algumas vezes aos amigos mais próximos o quanto eu gosto da chuva. Tanto isso é verdade que quando vem uma forte chuva, gosto de banhar-me nela.

Bebemos, comemos, divertimo-nos e tomamos banho de chuva. Nenhum glamour, mas muita alegria e satisfação. Quem disse que precisamos de eventos bons e glamorosos para nos divertimos? Quem disse que precisamos de pompas e circunstâncias para nos consideramos mais gente? Grandes momentos se encontram na simplicidade do momento.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

DIA 42 - "O mestre do jogo: Rubem Alves" e o jogo do mestre Damiano

 


O professor Gilberto Damiano lançou recentemente o seu livro “O mestre do jogo: Rubem Alves” (1986), publicado e distribuído  pela Editora Siano (www.editorasiano.com.br), resultado da sua Dissertação de Mestrado, marcada pela originalidade e por constar, historicamente, entre os primeiros escritos “acadêmicos” sobre o pensamento do teólogo, educador, cronista, contador de histórias e psicanalista Rubem Alves.

Desde que soube dos reflexos alvesianos presentes na obra escrita de Damiano, sempre me esforcei com o intuito de vê-la publicada. Assim como o mestre de Boa Esperança, Damiano extenua a questão da corporeidade em seus aspectos biológicos, linguísticos e desejantes, questionando a obviedade dos tecnicismos acadêmicos, desfraldando a beleza estética em sua primazia. Aliás, mais do que exercer a atividade esteta, Damiano brinca e joga continuamente com o seu mestre do jogo, num protagonismo invejável, trazendo à mesa outros coadjuvantes igualmente importantes para a confecção de sua teia narrativa.

Sempre tive um apreço pelo jogo e pelo aspecto lúdico. Estes são temas bem caros para mim. Ao longo dos meus 30 anos de reflexão sobre o aspecto lúdico, sempre me apeteceu ler questões inerentes, balizadas pelos filósofos Kierkegaard e Nietzsche em geral e Huizinga, em particular. Este último, por exemplo, expressa o seguinte em sua obra Homo Ludens:

“O jogo é uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras”.

 

Essa reconhecida assertiva de Huizinga indica, à priori, que, quando se joga, se joga pela vontade de prazer, num apreço profundo à espontaneidade e adequação de cada qual na dinâmica da vida. Não se pode excetuar o fato de que o aspecto lúdico abrange uma gama de emoções e sentimentos que tocam no mais profundo do ser. Assim, além de ser gerador de alegria, o aspecto lúdico e sua práxis, chamada de jogo, possibilitam a transcendência do corpo para dimensões ligadas às atividades do espírito.

O texto de Damiano é alegre e nos possibilita a transcendência e a liberdade de expressão do poder criador e recriador da própria vitalidade humana em sua harmonização existencial. Isso fica evidenciado nas suas provocações sobre uma educação ligada ao (im)programável viver em detrimento do mero pragmatismo eivado de obviedades cartesianas, presentes nas diversas matizes do processo educacional brasileiro. Na contramão das matizes, Damiano insiste em jogar o leitor, naturalmente, nos campos da criação, recriação, decisão, dinamização do mundo, domínio da realidade e humanização, relembrando aqui os movimentos propostos pelo educador Paulo Freire. Essa proposição lúdica se encontra na oposição das diversas instituições que tendem a limitar as ações humanas.

É inegável a capacidade de limitação que as instituições possuem na vida humana do nascimento à morte. Os seres humanos nascem e sobrevivem dentro de complexos institucionais, muitas vezes, aprisionando-se. No caso de almejarem a ruptura, descobrem-se em sofrimento. Não é fácil controlar o sofrimento decorrente de uma separação institucional. Rubem Alves, em seu livro: “Dogmatismo e Tolerância”, assim expressa:

“Uma instituição é um mecanismo social que programa o comportamento humano de forma especializada, de sorte que ele produz os objetos predeterminados pela instituição. Igrejas, exércitos, escolas, hospitais, manicômios, casamento – são todas instituições. Pode-se, na verdade, ver que todos eles: 1. Programam o comportamento. 2. Forçam o indivíduo a produzir comportamentos e “bens” segundo as receitas monopolizadas pela instituição”.

 

Apesar de fazer uma detecção precisa da programação institucional, Rubem nos incita à discussão sobre o conceito de liberdade ante a instituição. E bem sabemos que o conceito de liberdade é ambíguo. Todavia, é justamente à liberdade que Damiano nos convoca a todos, por intermédio dos jogos de linguagens, pontuações estéticas e a digressão e heterodoxia, num amplo movimento subversivo.

Seduzido pela rede de sentidos proposta pelas tricotagens alvesianas, Damiano espraia a sua sede de saber e provoca o leitor, convocando-o para se deitar nas profundidades hermenêuticas capazes de evocar novas relações com o mundo, que não sejam puramente dogmatizadas. Sua vontade é marcada pela sede de humanidade sensível, presente tanto em sua vida e prática docente, quanto em sua obra dialogal. Lendo o seu texto, sinto novamente o cheiro de Freire, quando diz:

“Nas relações que o homem estabelece com o mundo há, por isso mesmo, uma pluralidade na própria singularidade. E há também um traço de criticidade”.

 

E assim, desvela-se um pluriverso sem necessidades conclusivas, onde a alteridade é respeitada na harmonização de uma educação que seja vida e de uma vida que seja jogo, que se pretenda lúdica e lúcida. Essa jogatina não acontece do dia para a noite, mas na lida diária, sob a égide de um fazer amor.

Enfim, eu recomendo vivamente este livro do amigo Damiano, tendo a consciência clara de que seus saberes e sabores, mais do que determinar as regras de um possível jogo, possibilitam ao leitor o jogar-se na aventura da vida em meio aos processos educacionais, sem perjúrios ou danos, mas numa gostosa prosa com o mestre do jogo: Rubem Alves.

 

DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

  Quando eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado c...