Todos os que já tiveram a
oportunidade de conhecer previamente o pensamento do filósofo francês Jean Paul
Sartre sabem muito bem da sua assertiva: “o inferno são os outros”, presente na
peça teatral “Entre quatro paredes”. Nesta peça Sartre apresenta-nos três
personagens: Garcin, Inês e Estelle. Os três estão presos em uma sala sem
janelas – uma espécie de inferno sartriano. Além das três pessoas, existem três
canapés, uma estátua de bronze e uma lareira. Dentro da sala é dia o tempo
todo e os olhos precisam ficar diuturnamente abertos. Obviamente, em um cenário
como esse, os desafios relacionais são contínuos e o cansaço emocional extenuante.
Cada personagem possui uma personalidade distinta e as aproximações se
dão, vis-à-vis, numa contínua perturbação onde há um revezamento
entre as posições de vítimas e carrascos. Os olhares intercruzados de cada um
dos três referenda a existência de cada qual ao mesmo tempo em que vaticina a
debilidade que cada um percepciona em si mesmo. A trama se desenvolve em seus
encontros e desencontros entrechocados até o momento que em um embate mais
acirrado, Garcin solta a célebre frase: “O inferno são os outros”.
Mas, por que o inferno são os outros?
Em nossa percepção e leitura,
diversos aspectos são possíveis de ser elencados na referida peça. Sartre se
utiliza de um enredo surreal para considerar a dinâmica das relações que
ocorrem nas ambientações sociais. De fato, o olhar do outro sobre nós em um
determinado ambiente sugere a incidência de uma série de desconfortos. A
maneira pela qual nos vemos estampados nas faces, nas críticas e nos conceitos
das pessoas que nos circundam, provoca em cada um de nós uma série de
inquietações diversas. Na maioria das vezes, nos vemos e não gostamos do que
vemos. É como se o outro oferecesse a nós um espelho onde a nossa própria imagem
se projeta, dissociando-nos de nossa própria certeza. Ao mesmo tempo e de certa
maneira, aquele que se oferece como espelho acaba julgando a existência alheia,
bem como as formas de condutas de um. Tudo isso coloca o ser humano no
entroncamento entre os subjetivos encontros e desencontros com o seu próprio eu.
Inspirado nessa peça de Sartre, eu resolvi
enfocar o prisma que realmente me importa: “O inferno sou eu”! Sei que essa
frase pode até provocar uma inquietação pessoal e subjetiva, mas ela é honesta!
Tenho por mim que cada pessoa deveria
se observar e se percepcionar com vias ao autoconhecimento. Ver-se e aceitar-se em suas contradições é um caminho sumamente importante para o bem-estar.
Lembro-me da célebre frase do filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955): “Eu
sou eu e as minhas circunstâncias”. Nela, o referido filósofo entende que a
vida se encontra em um contínuo processo de mudanças. Seu sistema filosófico
baseia-se no que chamou de razão vital, ou seja, a ideia de que a racionalidade
é uma função da existência e abarca as condições físicas, sociais e psíquicas
de cada sujeito. O ser humano vive e interage com o mundo como um sujeito ativo
em meio a diversas circunstâncias. Desde o nascimento até a morte, o ser humano
vive os movimentos do aprendizado no arcabouço da vida social. Acresce-se a esse
sucinto toque tangencial a uma frase do filósofo espanhol a constatação que
brota em minha própria consciência de que estamos todos, querendo ou não, nos diversos relacionamentos que ocorrem nos nichos socioculturais marcados pela
diversidade.
Infelizmente, estamos acostumados a julgar
as pessoas ou lançar críticas ao outro sobre as questões que nos incomodam individualmente.
Obviamente, é bem mais simplório colocar o dedo em riste e afirmar que o outro
é o culpado quanto a eu viver esta ou aquela vida, esta ou aquela situação, a me assumir.
Todavia, sabemos que aceitar que a culpa é do outro significa abraçar uma mentira. Como se diz
popularmente: “Mentira tem perna curta”. Acho que essa mentira nem tem pernas,
pois na página dois teremos plena consciência das contradições e circunstâncias que nos envolvem.
Chegarei à nítida constatação de que o “inferno sou eu”! E pessoa alguma
poderá me retirar dessa posição incômoda. Tornamo-nos mentirosos se não
assumimos vivamente a nossa responsabilidade frente à nossa liberdade. Somos
seres livres, inclusive para escolhermos os caminhos de nossos aprisionamentos.
Enfim, eu não gostaria de estar entre
as quatro paredes de Sartre, mas estou. Independente do que pensarem a meu
respeito ou dos pretensos julgamentos que me ferirem, vou celebrar o meu
próprio caminho amando, dando vexame e sendo ridículo no que eu faço. Só tenho compromisso
comigo. Daqui a cem anos, pessoa alguma se lembrará de mim. Sou, como poetizei
recentemente: “Eu... Num incêndio, chama miúda. Cristalina gota num mar. Poeira
livre, partícula, vento. Húmus terra, sangue a pulsar. Mistura fina que respira
amar”. Sinto-me assim: uma parte no
todo, no charco, um lodo. Sei que quanto mais claro eu for sobre mim mesmo,
mais terei a oportunidade de me oferecer e me encontrar. Acho que eu vou sair
por aí estampando e desfraldando a bandeira de que de fato eu sou o meu próprio
inferno. E tenho dito.