Nem
sempre é fácil aceitar-me como sou, mas desafio-me conscientemente à tarefa.
Mesmo aceitando-me, entro em litígios interiores e acabo discordando de mim
numa quase homérica luta de titãs. Meus paradoxos se desalinham e eu me desequilibro
sem mesmo estar na corda bamba. Nestas horas, as minhas argumentações se
parecem bilboquês de vidro fino na mão de crianças travessas. Tal brincadeira
me assusta a alma.
Amedrontado,
permito a chegada dos cristais líquidos que insistem em escorrer no meu rosto.
Não são oriundos das minhas decepções pessoais, senão dos meus pés conectados à
realidade cotidiana da relva pálida que alimenta continuamente as minhas mais
profundas agonias, todas ligadas aos meus próximos que sofrem as agruras
diárias. Flores eclodem no meu jardim psíquico e embaralham a vida em seu todo.
Pisco as pálpebras e escondo a minha íris multicolorida com predominância
jacarandá. Experimento o deleite do seio enluarado, sentindo o visgo do desejo
se desfazer no chão de mármore, ao qual me deito nas noites frias.
O
horizonte me fisga o olhar. No entorno do sol nascente, vejo uma mandala
marajoara escondendo os furos mal feitos na parede de pedra onde o meu corpo se
encontra recostado, ao mesmo tempo em que escondo os meus vazios para não
permiti-los expostos aos desavisados. Sou um ser em fazimento e só me abro para
os que sabem saltar do penhasco e voar por quase dois segundos sem gritar. Há
momentos em que o crucial é curtir a queda.
Liberdade
é para quem sabe o que significa limites. Liberdade é saborear o hálito da
morte e, ainda assim, sorrir com medo. Liberdade é o movimento que ocorre em
cada pessoa que se lança ao terreno das escolhas. E por mais que eu pense escolher
o que quero escolher ou, por mais que eu não pense o que quero pensar, o meu
olho que enxerga as profundezas insiste em cotejar o infinito e se iludir com as
fuligens do que restou em algum fogão à lenha, daqueles que fazem um
pão-de-queijo bem quentinho e o café e sua borra resinosa. O fogo se extinguiu
e ainda resiste como um calor enxerido.
A
liberdade requisita o movimento novamente. Neste momento, embarco em um trem
para me manter em minhas andanças. Enquanto o trem percorre os seus trilhos,
das suas janelas vejo cenários que se fazem e se desfazem. A poesia me invade a
alma. A estação do trem é a vida... a hora da partida é também despedida. A
sacra letra do Nascimento, aquele que também é chamado pela alcunha de Bituca,
favorece a fulguração em meu horizonte existencial. Manifesta-se em mim uma
espécie de contexto vital capaz de afirmar que tudo o que vejo veio de uma
semente que absorveu a água em seu limite, fazendo-se araucária vivente por
duzentos anos.
O
céu possui tonalidades acinzentadas e os telhados das casas mais antigas
parecem esperar a chuva. Ela vem. Um gosto de hortelã visita-me as narinas.
Lembro-me que ainda é manhã e os bocejos ainda são necessários. Agora, meus
olhos captam o verde e os meus pensamentos requerem a fotossíntese tão
necessária à contínua troca entre os seres viventes.
Enquanto
mulheres mergulham no rio, outras destilam sentimentos amorosos e paixões nos
seus aparelhos inteligentes de cristais líquidos. Pessoas diversas se afogam.
Se não nas águas, nas telas e também nas lágrimas. Desejo um café. Quero gozar ensandecido
na transa entre a cafeína e a dopamina, enquanto o trem cruza a avenida e os
raios solares rasgam algumas nuvens frívolas. Nem todo algodão doce é
consistente. Mais uma vez, enfrento a fila para me desvincular daquilo que é
passado. Com o riso jocoso, externo a minha ironia. Ela é fina e ácida como as
chuvas frias dos desertos em que eu nunca andei.
Confirmo,
assim, a teoria de que nunca é fácil me aceitar como sou, pois nunca sou. Eu
sempre serei era...
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