domingo, 10 de março de 2024

DIA 70 - As mariposas giram em torno das lamparinas acesas

Gosto quando os olhares e os sorrisos oriundos de pessoas diferentes compactuam os sentimentos mais profundos numa doce simbiose. Pode ser que decorra dela aquele fragmento de amor delirante que tenta compensar a ausência da paixão, em vão. Paixão é uma potência capaz de afastar as depressões que revelam o tempo e a finitude. Enquanto o rio desliza, as águas levam as águas e uma miríade de seres desconhecidos. Nada de choro. A nascente traz o novo, sempre de novo.

Abraça-se a paixão, abraça-se a arte que tem a função idílica de salvar as pessoas de suas inquietudes. É preciso reconhecer a sua presença, mesmo sem saber o que ela realmente é. O amor também é arte que demanda muito cuidado ao ser inventado continuamente no cheiro da chuva, no filminho à tarde, no café fresquinho, no perfume inebriante, na cerveja gelada, no violão em noite de luar. Amor é arte original e não se limita a juramentos eternos, porque é vida, é dança e harmonia, movimento num eixo sem fim.

A felicidade é uma utopia da qual a gente se aproxima em horas de descuido, como nos lembra Guimarães Rosa. No descuido, é preciso ser lúcido e lúdico para nunca deixar que a luz da razão, que funciona em meia fase, clarifique o que precisa ser clarificado. Quando o pensamento funciona, a emoção perde o seu encantamento.

É preciso respeitar os sinais e controlar os instintos, a fim de se evitar as bugigangas que escorrem pelas escadas, dia e noite. O melhor mesmo é se dedicar à escrita de poemas que nunca serão terminados, pois sempre começam naquele beijo fortuito na esquina central, onde as pessoas experimentam as modificações que só o amor pode provocar.

Hora de tomar um trago e experimentar a loucura de beijar a lona, pra depois, beijar a boca e o seu sabor do mistério. O ambiente sombrio sempre deslinda novos desejos, querendo o bem do outro.

Às vezes, declama-se o poema e a cadeira está vazia. A tristeza traz viços maravilhosos para a escrita e aquela vontade de se afogar na borra das garrafas de vinhos ou de uísque. Extasiar-se. Às vezes, é preciso a liberdade das verdades para continuar a viver o lapso de segundo que dura quase um segundo.

Apego-me à beleza, esse bem precioso, erótico e triste que se revela como um crepúsculo numa manhã de inquietações. É preciso jogar os dados para se experimentar no corpo o que só é possível abraçar com a alma. Quem sabe, conviver com a corrupção da delicadeza da beleza, iluminando-a.

As mariposas giram e abraçam o fogo presente na lamparina.

Caminhamos e vivemos as condições e contradições, amando e morrendo sob o único teto que temos: o céu. Sob ele, cultivamos os girassois que se encontram nos quadros de Van Gogh. Os buquês de girassol são os mais bonitos e brilhantes. Mesmo sendo a existência fabulosa, a fatalidade é soberana. Hora de evitar-se as fugas precipitadas, mesmo quando necessárias.

Que grite pela ruelas o poeta bêbado e solitário, esperando pelo raiar do sol. Abandonar os carros para pegar os trens em suas linhas bem rígidas. Abandonar os trens e planar num ultraleve bem leve em rodopios insanos, torcendo para o amor dar certo. O amor é a consumação da vida e da morte na pequena morte que transforma vidas aprisionadas em nada, sempre urgente e necessário. Há riscos maravilhosos a se correr nas possíveis diversões que ocorrem quando podem ocorrer.

É ruim quando o olhar se perde no longínquo do nada, um mísero esforço de reações para a manutenção da previsibilidade no campo da imprevisibilidade. No fundo, o amor só pode ser entendido como recomeço, jamais como final. Ferir a eternidade é reviver as reticências. No futuro, as indecências…

Olhar para fora de si, tentando achar o que se sente em si. Aprender a beleza nas estações do ano e existir deixando o chato para os chatos. Sem paixões, comoções e a possibilidade de se fazer coisas novas, sempre novas. Quanto ao que vai acontecer a partir de agora, não se pode fazer a mínima ideia.

As mariposas morrem no fogo das lamparinas…

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