terça-feira, 28 de maio de 2024

DIA 73 - Separações acontecem e a vida segue como dá...

 

1.


Quando penso sobre o processo que envolve as separações conjugais, constato que muito do possível sofrimento que acomete o casal não se restringe ao que ocorre na intimidade, mas aos envolvimentos relacionais e pessoais – familiares e amigos – que, por conta da experiência de cada qual, acabam exercendo certa pressão sobre as pessoas que decidiram pelo rompimento do contrato. Ora, é preciso afirmar que as separações fazem parte da vida das pessoas em geral e dos casais, em particular.

Num passado não tão longínquo, as pessoas se casavam por entenderem que este era o processo comum da vivência social. Casavam-se, tinham filhos e conduziam o cotidiano como dava. Ademais, era o caminho possível para se fazer sexo sem condenações familiares ou de forma segura, afinal de contas, uma jovem ficar grávida era, muitas vezes, considerada uma tragédia familiar. Sei de casos que jovens meninas foram expulsas de suas próprias casas, pelo simples fato de terem engravidado. Em geral, essas jovens meninas eram abandonadas pelos seus paqueras ou namorados, como se a culpa da gravidez fosse só delas. Quando se casavam, os rapazes o faziam contrariados e nunca se engajavam na relação. Tornavam a vida da mulher um inferno. Acresce-se às minhas considerações, também, o medo que rondava a juventude quanto à contaminação do vírus da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – AIDS e outras infecções sexuais. O casamento era percebido como o melhor preservativo.

Não vou entrar em argumentações alusivas aos períodos anteriores, especialmente em como se davam as relações ou os combinados conjugais, mas indico a obra Novas Formas de Amar, escrito por Regina Navarro Lins, para maiores conhecimentos sobre as temáticas dos conflitos e possibilidades relacionais, bem como as falácias decorrentes do amor romântico.

De qualquer forma, em minha percepção particular, na atualidade, as pessoas se casam por se gostarem, se amarem ou por acordarem um projeto de vida que pode ser finalizado, mediante um processo sensato ou não. Isso já estava previsto na frase da filósofa francesa Simone de Beauvoir: “Não são as pessoas que são responsáveis pelo falhanço do casamento, é a própria instituição que é pervertida desde a origem”. De fato, o casamento é algo que acontece sem que se tenha certeza de como vai ficar, pois não existe nenhum elemento que garanta a sua estruturação permanente. Nenhum mapa da felicidade. A dinamicidade da vida exige novas movimentações. Como todas as dimensões da vida, o casamento também é passível de mudanças. As pessoas casadas estão expostas a mudanças. Num primeiro momento, aquela paixão avassaladora conjugada aos desejos subjetivos. Num segundo momento, as cobranças e as tentativas frustradas quanto a querer mudar o outro. No terceiro momento, a ignorância e as discussões insensatas. Num quarto momento, o desprezo e a falta de interesse. No quinto, a necessidade de sair da agonia a fim de abraçar a alegria da liberdade, da autonomia e da dignidade de se ser quem se é.

Eu sou daqueles que acredito que o amor nunca acaba, mas que adquire novas formas de conexão com o outro, o que é legítimo. Acho que todas as pessoas envolvidas em um terreno social devem entender que no movimento dos corpos na vida, as coisas esquentam e esfriam, como nos lembra Guimarães Rosa. Se entendemos que a vida tem as suas mutações, quem poderia ter o direito de cobrar do outro qualquer tipo de crítica quanto ao encerramento de uma relação conjugal ou mudança do tônus do amor?

Em minha concepção, cabe às pessoas próximas o acolhimento aos sentimentos que estão confusos na cabeça dos que estão se separando. As razões íntimas pertencem aos envolvidos, tão somente. Para mim, os sentimentos precisam ser acolhidos, em especial a espontaneidade do casal quanto a ruptura relacional. Uma relação conjugal não pode ser mantida a qualquer custo. Eu, que sempre aprofundei diversas dinâmicas relacionais em reflexões, escritos e palestras sobre a família sempre fui muito consciente dos encontros e desencontros que se estabelecem nas relações em geral. De minha parte, nunca expus um casamento ou uma família feliz e realizada. Sei das complexidades que me envolvem e as que envolvem os que comigo convivem. Sei também da exposição de cada um às mutações contínuas.

Quando os vínculos se desencaixam, é fundamental que o casal tome a decisão pelo bem-estar de ambos e dos agregados, quando houver. Eu acho que não deve vigorar a ideia de insistir num percurso de infelicidade, aquela que agoniza o dia e martiriza o ser na calada da noite.

Quando o amor apresenta outra faceta na relação, pessoa alguma precisa se rastejar para que, de alguma maneira, a vida conjugal e familiar se mantenha. Se o amor mudou de formas, está tudo bem e a vida precisa seguir. Quanto ao que as outras pessoas vão comentar, acho pertinente que não seja dado palco a elas, pois, como já afirmei, quem tem o direito de apontar o dedo para o que o outro está decidindo para si?

Enfim, não sei se um casal pode viver feliz e apaixonado por toda a vida. Eu acho que não. Acho que a felicidade e a paixão são momentos efêmeros, como um orgasmo. Nos movimentos e mutações da vida, todos os dias são necessários ajustes finos. E quando não houver mais possibilidades de ajustes, quando a rosca espanar, as dinâmicas existenciais continuarão da mesma forma. Como se diz na gíria cotidiana: vida que segue.

sábado, 4 de maio de 2024

DIA 72 - Pelo direito de fazer "merdinhas"


Seria praticamente perfeita uma sociedade onde cada pessoa cuidasse exclusivamente da sua própria vida. 

Infelizmente, vivemos uma sociedade onde a maioria das pessoas se preocupa com o que está acontecendo com a vida do outro, como se a vida do outro e seus pormenores, sejam quais forem, lhes dissesse respeito.

Eu até entendo a dinâmica que envolve a vivência humana em um sistema social, assim como as possibilidades e impossibilidades decorrentes das relações interpessoais, mas as aberturas para conversas e diálogos possuem os seus limites.

É essencial que o todo sistêmico das relações sociais entenda que cada pessoa carrega diversas situações em sua própria historicidade e os caminhos e descaminhos que cada um vivencia em sua própria vida deve ser respeitado. Não cabe aos paladinos da pretensa justiça o apontar de dedos em riste ou mesmo a acusação fortuita.

No fundo, no fundo, pessoa alguma sabe o que acontece na intimidade do outro. Pode-se ter alguma percepção, mas jamais um conhecimento. Ao contrário, o que se vê é justamente a ausência de um conhecimento mais profundo sobre as questões que atravessaram e ainda atravessam a vida, a psique e a própria existência de cada pessoa.

Seria muito pertinente que, antes de qualquer observação ou comentário em relação ao outro, cada um buscasse um conhecimento mais aprofundado das razões que levaram aquela pessoa a tomar aquele caminho ou aquela decisão, seja ela qual for.

Ao mesmo tempo, vale a pena a premissa de que pessoa alguma precisa dar palpite sobre como deve funcionar a vida alheia, afinal de contas cada um sabe como melhor deve vivenciar as suas experiências contíguas.

Há uma premissa significativa aprendida em um velho livro de sabedoria que diz que ninguém deve se preocupar com o cisco que está no olho do outro, mas se deter, especificamente, ao graveto instalado em seu próprio. Mediante essa premissa de sabedoria, a constatação de que cada pessoa deve se ocupar do graveto que se encontra no seu próprio olho é a atitude mais sensata.

Acresce-se a esse princípio a ideia de que qualquer tipo de julgamento e comentários distorcidos devem ser evitados. Cada pessoa carrega em si uma dor, uma falta que não pode ser explicada e tampouco entendida pelo outro em sua circunstância vivencial.

Todos nós temos as nossas rachaduras. Pessoa alguma pode bater no seu próprio peito e achar que é melhor do que a outra. Humildade é tudo.

Eu detesto o sentimento que alguns nutrem de se julgarem os algozes dos outros, os que se julgam mais sábios, mais conscientes, mais bonitos, mais bem posicionados.

Por exemplo, na atualidade, sempre me ocupa a ideia de que cada um faz o que bem entender da sua vida. Acho, inclusive, que deveríamos empreender um manifesto quanto ao direito de fazer “merdinha”.

Seria lindo demais todas as pessoas saindo pelas ruas estampando as suas camisas com a frase: “eu tenho o direito de fazer merdinha”. Vivemos uma sociedade recalcada e reprimida. Os desejos não podem, sequer, ser manifestos verbalmente, quando muito, somente no setting terapêutico.

Freud já havia assinalado que o mal estar presente na nossa sociedade está diretamente ligado ao recalcamento dos desejos e das vontades que perambulam no interior da vida humana. Eu, já cansado de tanta repressão e comentários alheios, tenho apertado continuamente aquele famoso “botão”. Às vezes, parece até que estou jogando videogame.

Sigo a ética do andarilho, sem um compromisso com o ponto de partida ou o ponto de chegada. Busco a minha vagabundagem alternativa em meio às minhas contemplações, sejam das auroras, sejam dos crepúsculos. Se quero caminhar, caminho. Doutra forma, refreio os passos para descansar a minha lida como quero, como posso, sempre me dando ao direito de fazer “merdinha”.

Se os seus olhos me virem, se vire e me deixe. Você nada tem a ver comigo e com o que eu faço ou deixo de fazer.

Nós nada somos neste mundo. Heráclito bem nos lembra que somos faíscas no meio de um incêndio. Somos completamente desnecessários, similares a qualquer criatura presente neste planetinha de nada. O mundo não precisa de nós. Tudo o que existe passa, se transforma, se reforma e nós nos enganamos sempre, pensando que estamos construindo coisas, projetos e objetos significativos. Até os nossos relacionamentos são efêmeros. Quanta bobagem. Nada mais somos do que instantes desprezíveis.

Se tomamos a consciência de que somos desprezíveis neste cosmos, abrimos novas possibilidades para aproveitarmos as nossas vivências da forma como quisermos.

O mundo está aberto e que cada instante seja aproveitado da melhor maneira.

Que a sociedade onde as pessoas cuidem de suas próprias vidas seja uma realidade, quem sabe alternativa. Aqui e agora, já.


sábado, 6 de abril de 2024

DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

 


Quando eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado com os convites que eu recebia. Mais encantado ainda, com a organização das mesas, seus bolos e docinhos, as bolas coloridas e a gritaria de crianças bem arrumadinhas.

Chamava-me a atenção um docinho em específico: o olho de sogra. Como poderia um docinho tão gostoso receber um nome tão estranho. Nunca soube o porquê desse docinho se chamar assim. E então vinham os brinquedos e a famigerada língua de sogra. Como poderia, em uma festa infantil, um docinho e um brinquedinho receberem a alcunha de sogra?

Hoje, perdi uma amiga muito querida, no auge dos seus 93 anos. Ela fez a sua passagem. Sinto ainda as suas mãos firmes apertarem a minha. Mesmo quando já não me reconhecia, olhava briosa para os meus olhos e me dizia com a voz firme: “Deus te abençoe”. Para muitos, ela era a minha sogra, mas para mim, no âmago dos meus sentimentos, ela era, tão somente, a minha amiga.

Viajamos algumas vezes, juntos. Lembro-me de nossa viagem ao Nordeste do Brasil. Viajamos de Vitória a Recife e, de lá, para Campina Grande, na Paraíba. Meu filho nos acompanhou. Depois, viajei com ela para São Paulo. Dessa vez, fomos sozinhos e de carro. Enfim, a Volta Redonda. Sempre tive a minha amiga como uma grande companheira de jornada. Quando eu ultrapassava algum carro ou corria um pouco mais, percebia ela orando, o que fazia sempre que podia.

Diante da perda, não me sinto triste e pesaroso. Ao contrário, meu coração bate vibrante por saber que tive o privilégio de conviver da melhor forma com a minha amiga há quarenta anos. Ela me conhece desde os treze. No início de minha puberdade, pude experimentar os sinceros afetos dessa mulher brilhante.

Não era dada à vaidade. Firme em sua vitalidade, exercia a nobre ação da simpatia e da empatia. Nunca se eximiu ao ato de estender a mão a quem precisasse, amparando a gregos e troianos em suas possibilidades. Oxalá, mais amigas como ela neste insano mundo. Além disso, exalava a fé graciosa em atos singelos de compaixão. Não poucas vezes, subia e descia morros em seu Monte Castelo para visitar quem precisasse de solidariedade, das melhores.

Ela possuía duas paixões: as crianças e a música. Na sua maturidade, exercia a função de professora de crianças nas atividades de sua igreja. Preparava as lições e as músicas com todo o carinho. Quanto à música, também em sua maturidade, aprendeu teclado. Adorava tocar alguns hinos, os seus cânticos preferidos.

Minha amiga fazia um café bem inusitado. Eu sempre disse a ela, com toda a sinceridade, que eu não gostava. Ele era transparente. Eu, mais dado ao café preto, sem leite, sempre pedia a liberdade para fazer um outro tipo, bem mais resinoso.

Na última quarta-feira, pela madrugada, visitei-a e conversei com ela de forma bem aberta, como sempre fiz. Disse a ela que não iria deixar o meu bigode crescer, tampouco tirar os brincos que ela julgava, de boa. Mais do que isso, falei com ela que a sua jornada já estava cumprida e que todos os seus amados filhos e filhas, netos e netas, bisnetos e bisnetas iriam ficar bem. Ela, sempre muito preocupada com a vida de todos, precisava ficar tranquila quanto à jornada de cada um ou cada uma. Mesmo aquelas que tivessem mais dificuldades, se organizariam. A vida é como uma caminhonete carregando melancias e descendo o morro sem freios. No final, todas ficarão ajustadas, de alguma maneira. Ela se debateu, não aceitou muito, mas se conformou, justamente por conta da confiança que sempre tivemos um no outro.

Há pessoas que deixam legados bem especiais na jornada existencial. Riscam o cotidiano com os seus sorrisos e esperanças, muitas vezes teimosas. Sim, ela também era teimosa.

Hoje, dia de sua passagem, o céu estava calmo e azulado. O sol brilhante como brilhante eram os seus olhos quando sorria. Eu quero plantar orquídeas, só para celebrar a beleza e a simplicidade. Deixar que as abelhinhas venham sobre elas a fim de saborearem o seu néctar.

Enquanto a brisa fria roça o meu rosto e um singelo perfume se espraia no ar, sinto não haver lamentos. Só uma saudadinha gostosa e bem apertada. Como diria o escritor Rubem Alves, minha amiga não morreu, mas foi encantada. Diria poeticamente que ela se tornou uma estrelinha ridente.

Clarice Lispector expressou em seu livro Um sopro de vida o seguinte: “Viver é o meu código e o meu enigma. E quando eu morrer serei para os outros um código e um enigma. Despenhadeiros. Eu não sabia que o perigo é o que torna preciosa a vida. A morte é o perigo constante da vida”.

Minha amiga nunca verbalizou medo algum sobre o perigo constante da vida, mas legou a cada um os seus códigos e os seus enigmas, todos valorosos. Agora, é a hora dela dormir o soninho das justas e abraçar continuamente a sua ressurreição, uma semana após o domingo de Páscoa.

Hoje, o cartunista Ziraldo também partiu. Deixou-nos os seus personagens, em especial, o Menino Maluquinho. Minha amiga, nada maluquinha, sempre será menina. Já a vejo brincando de rodas e cantando com as crianças os seus mundos e os seus jardins cheios de flores.

O docinho e o brinquedinho serão sempre para mim: olho e língua da minha amiga.

 

 

domingo, 10 de março de 2024

DIA 70 - As mariposas giram em torno das lamparinas acesas

Gosto quando os olhares e os sorrisos oriundos de pessoas diferentes compactuam os sentimentos mais profundos numa doce simbiose. Pode ser que decorra dela aquele fragmento de amor delirante que tenta compensar a ausência da paixão, em vão. Paixão é uma potência capaz de afastar as depressões que revelam o tempo e a finitude. Enquanto o rio desliza, as águas levam as águas e uma miríade de seres desconhecidos. Nada de choro. A nascente traz o novo, sempre de novo.

Abraça-se a paixão, abraça-se a arte que tem a função idílica de salvar as pessoas de suas inquietudes. É preciso reconhecer a sua presença, mesmo sem saber o que ela realmente é. O amor também é arte que demanda muito cuidado ao ser inventado continuamente no cheiro da chuva, no filminho à tarde, no café fresquinho, no perfume inebriante, na cerveja gelada, no violão em noite de luar. Amor é arte original e não se limita a juramentos eternos, porque é vida, é dança e harmonia, movimento num eixo sem fim.

A felicidade é uma utopia da qual a gente se aproxima em horas de descuido, como nos lembra Guimarães Rosa. No descuido, é preciso ser lúcido e lúdico para nunca deixar que a luz da razão, que funciona em meia fase, clarifique o que precisa ser clarificado. Quando o pensamento funciona, a emoção perde o seu encantamento.

É preciso respeitar os sinais e controlar os instintos, a fim de se evitar as bugigangas que escorrem pelas escadas, dia e noite. O melhor mesmo é se dedicar à escrita de poemas que nunca serão terminados, pois sempre começam naquele beijo fortuito na esquina central, onde as pessoas experimentam as modificações que só o amor pode provocar.

Hora de tomar um trago e experimentar a loucura de beijar a lona, pra depois, beijar a boca e o seu sabor do mistério. O ambiente sombrio sempre deslinda novos desejos, querendo o bem do outro.

Às vezes, declama-se o poema e a cadeira está vazia. A tristeza traz viços maravilhosos para a escrita e aquela vontade de se afogar na borra das garrafas de vinhos ou de uísque. Extasiar-se. Às vezes, é preciso a liberdade das verdades para continuar a viver o lapso de segundo que dura quase um segundo.

Apego-me à beleza, esse bem precioso, erótico e triste que se revela como um crepúsculo numa manhã de inquietações. É preciso jogar os dados para se experimentar no corpo o que só é possível abraçar com a alma. Quem sabe, conviver com a corrupção da delicadeza da beleza, iluminando-a.

As mariposas giram e abraçam o fogo presente na lamparina.

Caminhamos e vivemos as condições e contradições, amando e morrendo sob o único teto que temos: o céu. Sob ele, cultivamos os girassois que se encontram nos quadros de Van Gogh. Os buquês de girassol são os mais bonitos e brilhantes. Mesmo sendo a existência fabulosa, a fatalidade é soberana. Hora de evitar-se as fugas precipitadas, mesmo quando necessárias.

Que grite pela ruelas o poeta bêbado e solitário, esperando pelo raiar do sol. Abandonar os carros para pegar os trens em suas linhas bem rígidas. Abandonar os trens e planar num ultraleve bem leve em rodopios insanos, torcendo para o amor dar certo. O amor é a consumação da vida e da morte na pequena morte que transforma vidas aprisionadas em nada, sempre urgente e necessário. Há riscos maravilhosos a se correr nas possíveis diversões que ocorrem quando podem ocorrer.

É ruim quando o olhar se perde no longínquo do nada, um mísero esforço de reações para a manutenção da previsibilidade no campo da imprevisibilidade. No fundo, o amor só pode ser entendido como recomeço, jamais como final. Ferir a eternidade é reviver as reticências. No futuro, as indecências…

Olhar para fora de si, tentando achar o que se sente em si. Aprender a beleza nas estações do ano e existir deixando o chato para os chatos. Sem paixões, comoções e a possibilidade de se fazer coisas novas, sempre novas. Quanto ao que vai acontecer a partir de agora, não se pode fazer a mínima ideia.

As mariposas morrem no fogo das lamparinas…

quarta-feira, 6 de março de 2024

DIA 69 - Somos todos "Pobres Criaturas".



Eu assisti ao filme Pobres Criaturas - Poor Things (2023), dirigido por Yorgos Lanthimos, baseado no romance de mesmo nome, escrito por Alasdair Gray. O filme é estrelado por Emma Stone, Willen Dafoe, Mark Ruffalo, Ramy Youssef, entre outros. Na Londres vitoriana, a jovem Victoria pula de uma ponte, suicidando-se e é ressuscitada pelo excêntrico médico Godwin Baxter que fazia cruzamentos excêntricos como pato com cachorro e cachorro com galinha, além de produzir em sua digestão uma bolha. Ele, envolvido pela beleza da jovem, resolve fazer um transplante de cérebro, dando vida à comovente e divertida Bella Baxter, uma espécie de Frankenstein com razão, estética, beleza e arguta inteligência. O cérebro usado para o transplante foi o do bebê que estava sendo gerado no ventre da jovem. A frase do médico que revela o seu envolvimento com a beleza é assim expressa: “o mundo ficaria mais triste sem essa beleza”.

Através do desenvolvimento de Bella, uma jovem com corpo de mulher e cérebro de criança nos anos iniciais, Dr. Baxter contrata o médico assistente Max MacCandles para registrar o desenvolvimento da jovem criança ou da criança jovem. Este o faz, e, mediante as observações e percepções, vai paulatinamente se apaixonando. Ambos, o médico e o seu assistente estimulavam Bella em todas as suas ações e contradições. Nesse ínterim, Max pede a mão de Bella em casamento e ela aceita, todavia o seu rápido desenvolvimento intelectivo a convoca interiormente a conhecer o mundo que se abre a ela mesma. Um exemplo disso revela-se quando ela descobre a masturbação e o prazer sexual.

Para o contrato conjugal, Godwin convida Duncan Wedderburn para celebrá-lo. O excêntrico e rico advogado debochado se apaixona por Bella e propõe a ela o conhecimento do mundo. A jovem, diante da proposta de Wedderburn, resolve aceitar. Manifesta a Godwin o seu desejo, retarda o seu casamento com Max e resolve partir. Embora a insatisfação de Godwin, Bella contra argumenta que se ele não deixá-la partir, “ele vai despertar o ódio nela”. Como havia no médico o compromisso de não reprimi-la, ele cede.

Bella e Wedderburn embarcam em uma grande jornada e vivenciam o sexo em diversas perspectivas. Todavia, Bella é livre e não se deixa ser controlada pelo advogado. Ele, inseguro e insatisfeito com a liberdade da jovem, resolve unilateralmente embarcar em um navio, navegando em águas distantes e aprisionando Bella. No navio, Bella conhece Martha e Harry que favorecem o despertar de sua mente para a Filosofia. Wedderburn fica desconsolado e passa a beber desesperadamente. Ele insulta Bella por diversas vezes, inclusive jogando o livro que ela lia no mar. Em uma parada em Alexandria, a jovem conhece o sofrimento dos pobres e fica completamente consternada, a ponto de pegar o dinheiro de Wedderburn e doar àquelas pessoas por intermédio de dois marinheiros suspeitos.

O casal em sua aventura teve que deixar o navio em Marselha e se destinar a Paris. Sem dinheiro e, portanto, sem possibilidades de se acomodar ou comer, Bella busca um trabalho em um hotel e conhece um bordel administrado por Madame Swiney. Ela passa a sobreviver como uma puta e conhece, através da amiga Toinette, a dimensão sociopolítica do socialismo. Descobre, também, o prazer de transar com uma mulher.

Godwin se descobre em estado terminal e solicita a Max que localize Bella. Ele assim o faz e ela retorna reconciliando-se com o médico que lhe trouxe à vida de novo. Ao mesmo tempo, ela resolve se casar com Max. Entretanto, no dia da cerimônia de casamento, Wedderburn leva Alfie Blessington, marido de Victoria Blessington, o nome anterior de Bella, antes do seu desaparecimento, para interromper a cerimônia. Após as considerações de Blessington, ela abandona Max no altar e resolve ir ao encontro da sua vida passada. Todavia, descobre que o ex-marido é violento e sádico. Ele queria submetê-la a uma mutilação do clitóris, mas foi ela quem provocou a sedação do ex-marido levando o seu corpo para a casa de Godwin, a fim de provocar um transplante de cérebro. Ela coloca no sádico o cérebro de uma cabra.   


Minhas impressões sobre o filme

Eu não sou um crítico de cinema, tampouco um especialista na sétima arte, mas gosto de dar os meus pitacos sobre aquilo que de certa forma mexe com a minha consciência e me desloca das minhas poucas certezas. Ao término do filme, tive um relance intuitivo de que todos somos pobres criaturas. Ofereço, então, algumas impressões bem pessoais.

Fui provocado, inicialmente, pelo suicídio da jovem de pele clara e vestido azul brilhante. O olhar perdido no horizonte e o salto da ponte rumo ao desconhecido revela a agonia decorrente de sua vida pregressa, levando-a a tomar a decisão pela autodestruição. De fato, o suicídio é uma ação, decorrente de elementos multifatoriais, que muito implica na vida de todos os seres humanos, agredindo as percepções e ampliando as discussões sobre o que significa o sentido da vida. Albert Camus foi o primeiro a dizer que o único problema do qual a Filosofia deveria se ocupar é o problema do suicídio.

Após a sua ressurreição, Bella vivencia as suas experiências sem ser reprimida. Ela é fruto da contínua vontade científica pela extensão da vida a despeito de qualquer possibilidade de morte. Trata-se da vontade de se recriar e ressignificar a vida mediante as novas experiências científicas. De alguma maneira, o filme expressa que diante dos caminhos e descaminhos da morte, a vida pode ser recriada mediante novos parâmetros.

Nessa nova vida, Bella vive sem convenções sociais ou estereótipos. Se manifesta livremente numa dimensão que Freud classificaria como puro “Id”. Na ressignificação da vida, é fundamental viver de forma livre e espontânea, essa dimensão tão fundamental para se extirpar todo e qualquer embotamento social ou cristalização da beleza criativa dos seres humanos.

O puro “Id” e a liberdade para conhecer faz com que Bella descubra o prazer sexual em todas as suas possibilidades. Do autoconhecimento até a bissexualidade. Bella representa a mulher que se assume como mulher, contrariando as expectativas sociais de um mundo marcado pelo machismo e pelo patriarcalismo. Ela revoluciona ao ser extremamente pragmática, tendo as suas emoções contidas e, na maioria das vezes, exposta em sua própria nudez.

Todas estas impressões peremptórias revelam, também, o contínuo questionamento que cada um precisa ter quanto aos moralismos presentes na sociedade. A jovem Bella entende o seu papel como mulher e se assume como protagonista da sua própria trajetória. Bella, embora se jogue no prazer sexual, não se restringe a ele. Qualquer tentativa quanto a refreá-la, é rechaçada veementemente. Ela só quer o mundo aberto aos seus anseios e vontades. Tudo precisa ser permitido, mesmo quando passa a viver a vida com uma puta.

Na condição de uma prostituta, ela se abre ao conhecimento político e age continuamente de forma simples, sem emocionalismo. Isso é corroborado com a forma como ela vivencia a sua prostituição e em como rompe com o que está dito socialmente para experimentar o que ainda não foi experimentado. Para ela, em especial, homens de todas as formas, tamanhos e posições sociais, são limitados. Ela, inclusive, faz questão de questioná-los com as suas ações pragmáticas, seja com a desistência relacional ou com a mudança do cérebro de um homem sádico. Permanecem em seu espectro aqueles homens que permitem a ela viver como ela quer. É o caso de Godwin e de Max. Bella dá continuidade ao trabalho de Godwin na companhia de Max e Toinette. O cientista é ressuscitado na mulher que ele ressuscitou. A morte foi ressignificada com a experiência, o conhecimento, a aventura, o sofrimento, a revolução e a liberdade que não pode ser aprisionada.

Mas o filme é uma ode ao amor pela liberdade. Ele se revela diversificadamente nas semióticas, na passagem do preto e branco para o colorido, nas lentes “olho de peixe” e nos distanciamentos e aproximações que consideram as experiências dos protagonistas e coadjuvantes. O amor se manifesta em todos os corpos com as suas cicatrizes de vida e de morte. Quem não as possui? Elas revelam as contradições entre o que é e o que não é socialmente aceito. De fato, paga-se um preço muito muito alto pela possibilidade de se realizar o protagonismo na vida. São inevitáveis as experiências que criam amigos e inimigos.

No fundo, a vida que poderia ser considerada ideal é aquela que cria no microcosmo do quintal de uma casa, as possibilidades de uma vida marcada pela espontaneidade, pela criatividade e pelo amor. Todos temos as nossas cicatrizes. Numa consideração que seguiria a lógica de Bella Baxter, todos nós somos pobres criaturas.


terça-feira, 5 de março de 2024

DIA 68 - Pensando a insignificância de ser num mundo de seres



Sempre penso detidamente no significado da minha existência sobre este pequeno planeta que gira continuamente em um eixo imaginário pelo universo à fora. O multiverso dos meus pensamentos revela a minha total e irrestrita insignificância como ser, como sujeito. Perco-me em meus delírios.

Enquanto divago, imagino as milhares de nebulosas coloridas que se manifestam nos quatro cantos desse universo que nem sei se tem cantos.

Contemplo a abóboda celeste ao mesmo tempo em que pego uma abóbora, daquelas cheias de gomos, salivando e desejando aquele saboroso bobó de camarão. Chego à constatação de que tudo é tão finito e infinito. Quem poderá definir o sabor que reúne o fruto da terra com o pequeno crustáceo de sabor inigualável?

A abóbora acariciada pelas minhas mãos nasce da mesma forma que as estrelas, na explosão das sementes que nunca mentem; da mesma forma que as crianças, depois do desenvolvimento no útero materno, este lugar de magias e alquimias.

Na minha boca, escorre o sabor dos movimentos e das possíveis transformações e possibilidades revolucionárias do que cada ser porta dentro de si.

Na minha boca, escorre o líquido translúcido que sai do filtro e preenche o recipiente de louça cuja impressão é a da imagem do personagem Coringa. O Batman que se cuide. Enquanto bebo a água, sorvo as impressões doloridas da minha alma, aquelas que insistem em visitar as pessoas e suas dores sem fim.

Visita-me a vontade de viver a explosão de uma sexualidade que não esteja diretamente ligada à cópula. A dureza dos dias e das percepções sem coração revela gente sem a mínima decência, capaz de azucrinar a vida do outro só pelo sabor e pelo prazer de azucrinar. Não dou conta dessa estirpe de gente. O cotidiano requer mais sensibilidades e acolhimentos sem cobranças. Num mundo de gente madura, cada um cuida do seu b.o.

A fragilidade dos barquinhos de papel revelam a nossa própria fragilidade. Assumí-la, enquanto há tempo, demanda urgência num tempo que parece ser lento, mas voa como um aviãozinho de papel. O relógio assim o condena. Nem o dragão de Komodo escapa do tempo. Criatura fabulosa que também nasce, também morre.

E há quem ainda insista em buscar um sentido para a vida, mas sentido não há. Talvez aquele, marcado pelo talvez das dúvidas que habitam a consciência e suas possibilidades expressas num mundo caotizado pelos humanos e suas parafernálias.

Eu, quando durmo, em nada mais penso, pois vivencio o estágio da morte. Tudo o que me é caro e importante se perde, inclusive eu mesmo me perco num mundo escuro, amparado pelo onírico que insiste em me visitar. Hora em que não penso em ninguém, e é bom que seja assim.

Tem momentos em que o cansaço bate firme e forte, principalmente na cabeça. Píncaros de um sino de igreja medieval confrontam o que necessita sossegar.

Talvez eu deseje voar para o alto daquela torre para silenciar o sino ou subir o monte que nunca consegui escalar, pela simples vontade de contemplar as linhas de um horizonte quase perdido. Isolar-me como um Zaratrusta e pensar o que me é possível. A aura nunca será a de um anjo. Serpente é águia me acompanham.

Em meio ao meu devaneio silencioso e solitário, evoco a quinta sinfonia de Beethoven para me safar dos pensamentos meticulosos que me transformam em um ser estranho, daqueles que abraçam a destruição.

A água ainda perpassa a minha boca e eu acolho nela os peixinhos dourados que eu desenhava quando crescia e me desenvolvia no Jardim de Infância. Sinto-me num aquário cristalino com uma miniatura de farol incandescente fixada ao fundo. Imagino o arquétipo Junguiano dos seres aprisionados em seus mundinhos cavernosos. Sei que muitos não o entendem, mas algozes também reverenciam os santos de outrora, fazendo o sinal da Santa Cruz.

Curiosamente, tudo o que parece desconexo pode ser conectado pelas mentes mais iluminadas dos que amam os reinos animal, vegetal e mineral.

Reverencio os leões marinhos que eu nunca tive oportunidade de ver. Por enquanto, ouço as galinhas se manifestarem junto ao galo da madrugada.

Enfim, faço suspense com os meus cabelos suspensos a fim de aguardar os tempos vindouros. Estico os meus olhos castanhos para olhar um pouco mais além, embora um deles nada enxergue. Insisto em minha teimosia e ativo o veio de gamas e ultravioletas que sempre me banha com seu brilho intenso. Ainda vejo como é pequena a minha existência, mas me envolvo com as possibilidades de ser um pouquinho melhor hoje e, talvez, amanhã…

sexta-feira, 1 de março de 2024

DIA 67 - Repensando os relacionamentos na trilha da amizade



Eu sempre gostei de acolher as pessoas em seus momentos difusos sem estabelecer qualquer tipo de preconceito ou julgamento prévio. Sempre gostei de abordar as questões mais íntimas da alma humana de uma maneira tal que as pessoas pudessem encontrar novas saídas ou possibilidades para as suas formas de existência neste mundo.

Nunca fui de considerar o certo e o errado em meus diálogos ou conversas alhures. Sempre entendi o elemento paradoxal que se encontra presente em cada um de nós, deslindando as nossas próprias contradições e sentimentos conturbados. Incluo-me nisso. De fato, nossa natureza humana é realmente contraditória e cheia de percalços ininteligíveis.

Porque assim faço, especialmente no acolhimento ao humano, muitas vezes sou interpretado equivocadamente pelas pessoas. O pior é quando usam os meus pensamentos e as minhas palavras de forma indevida e sem o meu consentimento. Fazendo assim, salvaguardam os seus e colocam o “meu” na reta para poderem se estabelecer mais tranquilamente com as suas consciências. Todavia, com este tipo de atitude, elas desferem um forte golpe na minha pessoa. Se tem um sentimento que tira de mim todas as minhas potencialidades e energias, ele se refere justamente à forma como relações bem construídas ao longo dos tempos são dispensadas rapidamente por conta de comentários ou posicionamentos bastante estranhos e sem o necessário diálogo. Sinto muito quando as relações não são tratadas de uma forma consistente e amorosa.

Infelizmente, as pessoas criam narrativas ou pensamentos esquisitos em relação ao que realmente sou e o que realmente penso para se salvaguardarem, não sei do quê?Sempre procurei deixar muito claro a quem quer que seja os passos dos meus pés. Sempre deixei aberto aos mais próximos as minhas perdas e desistências para defender a minha honra e a minha dignidade. Não tenho medo de desistir quando sou destratado  ou agredido de alguma maneira. Entretanto, isso desperta em mim um sentimento combativo e até animalesco . Eu sei desprezar as pessoas, mesmo sendo educado e elegante. Eu sei, ao mesmo tempo, ferir usando as palavras agressivamente, como se fossem adagas afiadas e pontiagudas. Tenho medo deste meu lado mais obscuro, contudo ele tem sido despertado paulatinamente por pessoas a quem confiei os meus pensamentos, as minhas ideias e até mesmo a minha intimidade.

Eu que sempre declarei meu caso de amor às pessoas e suas contradições me encontro em reconsiderações sobre tal tônica, especialmente porque não cabem em uma mão as pessoas as quais se pode confiar aquilo de mais precioso que existe em mim, no âmago dos sentimentos do outro que se expõe.

Eu que sempre vi a Psicologia como uma zona afeita a potencializar o ser humano nas suas capacidades vivenciais e os seus pormenores, passei a colocá-la em xeque. Entendo que o objetivo de uma psicoterapia é provocar as pessoas a saírem de suas vidas pacatas, embotadas e emboloradas, para assumirem uma melhor versão de si mesmas. Só que neste afã, as pessoas usam as palavras preferidas em um setting terapêutico - ambiente de extrema confiabilidade - para a sua própria satisfação e salvaguarda. Eu até entendo que é direito de todo mundo buscar o anteparo reflexivo para justificar as suas ações cotidianas, mas usar as palavras da intimidade, a fala profissional, para se justificarem não é de bom tom.  A autonomia e a dignidade de cada um deve ser estruturada em cima da vida assumida por cada qual e não sobre o embasamento de uma fala que só almeja querer o bem do outro

É muito ruim quando se é julgado sem ter direito à defesa ou à contraposição, sem ter direito a falar o que realmente precisa ser dito. É fácil condenar o outro sem lhe dar o direito ao contraditório. O desrespeito deve ser rechaçado e pessoa alguma precisa ser crucificada.

De minha parte, eu nunca me considerei melhor do que ninguém, tampouco superior a qualquer pessoa que eu conheça ou desconheça. Conheço as minhas debilidades e por conhecê-las, passo a respeitar a debilidade do outro, seus sentimentos e dificuldades quaisquer. No fundo, eu gostaria de ser medido com a mesma régua que meço as pessoas, mas é só uma utopia da minha parte. Eu gostaria, também, que a flâmula do respeito, essa dimensão tão vital para o enriquecimento das relações, fosse hasteada no alto de um monte qualquer.

Eu sei que todas as pessoas que possuem uma visão idealista da vida e até mesmo do ser humano desejam fazer coisas que tenham um significado maior. Eu, no auge dos meus 53 anos, abraço continuamente a oportunidade de ler e conhecer os distintos mundos que me cercam a fim de provocar mudanças em prol das potências, nem que seja no quintal de uma humanidade qualquer. Eu leio, estudo e pesquiso todos os dias para poder ter uma compreensão maior das contradições humanas, e descubro que o meu idealismo precisa ser jogado na lata de lixo, pois não serve pra coisa alguma, a não ser pra ser questionado pelas pessoas alheias.

Por enquanto, sigo a minha trilha trocando os meus passos com o intuito de salvaguardar o mínimo que ainda há ou que resiste, fazendo questão de me manter firme, mesmo diante das dificuldades relacionais que me afrontam.

Amanhã é um novo dia e eu vou me dar ao luxo de caminhar com os pés desnudos na areia branca da praia, para banhar-me de sal e de esperança. Vou me organizar em meus devaneios, nem que para isso, me recolha em uma rede bem bordada para conversar com a escuridão do meu silêncio e, assim, abrandar os meus sentimentos em meus novos caminhos.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

DIA 66 - Fazendo coisas novas a cada novo dia



Há algum tempo, eu assumi um desafio pessoal! Fazer em cada dia, algo especial, inusitado, diferente do habitual. Eu percebi, bem rapidamente, aliás, que a vida é bem passageira e que a gente precisa apreciar cada moranguinho que ela nos apresenta.

Num sábado qualquer, resolvi almoçar em um bar bem movimentado. Queria uma comida bem simples e bem temperada. O ambiente estava tumultuado, no fervilhar das manhãs de sábado no centro da cidade de Juiz de Fora. Sentei-me em uma mesa de canto, onde podia acompanhar o ir e vir das pessoas em uma galeria paralela ao bar. Pedi um chope para começar. Chegou-me rapidamente à mesa, com aquele colarinho a ser vencido. Sorvi deleitoso aquela cerveja gelada, sem pensar, pensando em como aquilo era bom.

Um grupo de coroas conversava ao meu lado. Não queria acompanhar a conversa, mas um deles falou: “Não vou ficar tomando mais chifres”!

Meus ouvidos se atentaram ao assunto, mesmo sem eu querer. “Pô! Tem onze anos que eu estou tomando chifre. Cansei”!

“Já te falei isso, carái! Tem que parar com essa merda! Tem que largar essa mulher! Ela já extrapolou! Pô”! Disse um outro coroa, que tinha um colar de metal, bem jovial, e parecia o ator americano Dani De Vitto.

Um outro, usando óculos quadrado de armação preta, sem barba e sem bigode, que ficava o tempo todo conversando, bebendo e comendo pastel, além de fiscalizar as bundas das meninas que desfilavam na galeria, entrou no bar e pegou uma cerveja de baixa qualidade, compartilhando com os seus amigos.

“Carái! Tem outra cerveja não! Essa aí parece mijo de vaca”! Disse o coroa jovial. Mesmo com esta piada mequetrefe, abriu a lata e encheu o copo, sorvendo o primeiro gole como se fosse um vinho francês. O importante naquele momento era a conversaria em torno do sexo na maturidade e não a qualidade da cerva.

Levei um susto. Uma pombinha cinza e manca entrou no estabelecimento, bicando restos de comida que estavam no chão. Uma espécie de utilidade pública. Pedi o cardápio ao dono do bar. Uma figura simpática, oriunda da China. Prontamente, me cedeu o cardápio e eu pedi um prato feito, com pouco arroz. Uma senhora assentou-se proximamente, só para beber água e atualizar as suas redes sociais. Não era casada e parecia querer uma aventura na noite. As sobrancelhas estavam bem feitas e o cabelo bem alisado. Devia ter uns 59 anos. O sapato vermelho revelava para mim que os seus passos precisavam ou queriam subvertê-la. Atentamente, futucava o seu celular.

Os coroas foram embora. Depois de várias goladas, era preciso estimular a coragem do amigo, para romper com aquela sequência de chifres.

Meu almoço chegou! Cheirinho delicioso e um prato contendo arroz, feijão, batatas fritas e salada. Pedi para o acompanhamento um bife acebolado de frango. Era um prato simples, mas estava delicioso.
Saboreei-o e deleitei-me naquele momento. Pedi mais um chope.
Muita gente rindo e falando alto. Uma pequena banda tocava alguns clássicos, chorinho, para ser mais preciso. Eram artistas em suas insanas lutas por reconhecimento através da arte diante do público.

Deu vontade de tomar mais um chope. Balancei a caneca de vidro e sorvi a última gota. Uns pastéis crocantes me convidavam a um novo prazer. Um chope com pastel. Resisti àquela transa.
Precisava pagar a conta e ir para o curso de Psicodrama. O dever me chamava, e eu já estava leve.

Outras coisas novas precisavam acontecer.

Paguei a conta.

A pombinha não voltou mais.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

DIA 65 - Uma manifestação contra os fechamentos obtusos da vida aberta

 


Tenho um problema sério com os recintos fechados e com os fechamentos obtusos. Afeito que sou ao espaço amplo que se abre para os sóis das manhãs e das tardes, apego-me ao que pode me fazer respirar os 20% de oxigênio que eu preciso para a continuidade do meu metabolismo. Fosse mineiro, gostaria de morar naqueles casebres de janelas abertas e frágeis portas cheias de frestas. Todavia, sou carioca, e talvez, por um acidente deste meu percurso existencial, tenha me acostumado a gerenciar a minha infância e a minha adolescência junto às belíssimas praias de tons azuis esverdeados do litoral brasileiro.

Tenho, também, um problema sério com as pessoas fechadas e de mente embotada. Não consigo gastar tempo com gente que não consegue ver a vida como ela é, ou seja, com suas contradições e dicotomias. Ora, a vida real é marcada pelas possibilidades aventadas por Eros ou por Tânatos, pulsos de vida e pulsos de morte. Não há como fugir-se dos paradoxos que esbofeteiam o ser humano em sua lida diária. Os eventos que ocorrem na dinâmica existencial não podem ser amparados pelas palmas das mãos, sequer pela mente. Algumas escolhas podem controlar o rumo da prosa de cada qual, mas o fato é que todo ser humano é tomado de assalto quanto ao acaso que abraça e zela por todo o universo. Talvez, por este motivo, Einstein tenha dito de forma enfática que o único Deus que ele aceitava era o sinalizado por Espinosa. E qual era o Deus do filósofo holandês? Um Deus despersonalizado e geométrico, estabelecendo-se numa simbiose perfeita com a natureza: Deus e Natureza, a mesma coisa. Como Espinosa indica: “Tenho uma concepção de Deus e da natureza totalmente diferente da que costumam ter os cristãos mais recentes, pois afirmo que Deus é a causa imanente, e não externa, de todas as coisas. Eu digo: Tudo está em Deus; tudo vive e se movimenta em Deus”.

Independente do posicionamento de Einstein ou Espinosa, é inegável a energia que movimenta o mundo e seus engendramentos. Sei que muitas pessoas apegadas à segurança de suas palavras e atos, preferem agendar o cotidiano com a (i)lógica do destino, como se tudo o que acontecesse na dinâmica existencial estivesse pré-determinado por um poder do além. Ora, se o futuro ainda não aconteceu, como haver um destino? De minha parte, prefiro conceber a ideia de que a vida é uma grande e inédita aventura e que cada um é protagonista do seu existir, quando possível. O cotidiano e sua simplicidade é o campo fantástico onde se pode viver a aventura da vida, seus encontros e desencontros, suas pessoas ou situações.

A questão de fundo que se evidencia em um segundo plano, refere-se à fuga do sofrimento que surge por conta do inusitado. Tem gente que acha que, mediante fechamentos obtusos e controles do cotidiano, se pode evitar o sofrimento. Ledo engano. Sofrimento não se evita com fechamentos. Aliás, sofrimento não se evita. Sofrimento ocorre e exige renovações e recomeços, tanto nos níveis subjetivo ou objetivo, pessoal ou comunitário. Ele está presente na dinâmica existencial porque nunca se sabe bem o que vai acontecer na aventura da vida, e está tudo bem. Em tempos passados, escrevi uma crônica que considera a vida nas dinâmicas da montanha russa e do carrossel. Corroboro sempre que a vida é bem mais uma montanha russa, com seus anseios, medos, sustos, contentamentos e alegrias. Tudo isso junto e misturado num contexto cheio de sonhos e pesadelos. Às vezes, muito mais pesadelos. A gente só não pode se perder o foco de que no meio do abismo, como diria Rubem Alves, a gente tem que curtir o que dá pra curtir e saborear aquele moranguinho na beira do abismo. Vejo isso na cultura nordestina brasileira, que tanto amo. Acontece que há um legado sertanejo que transforma grandes infortúnios em esperança. No fundo, manifesta-se ali uma religião cultural ou uma cultura religiosa que se espraia numa vontade de superação artesanal e musical que, ao mesmo tempo, sente o sofrimento inerente à vida e manifesta a vontade de revogação da situação com o grito: “Deus é mais”!

Hoje, especialmente, meu corpo requer um mergulho na profundidade do mar, entre ondas e vagas, para se perder no universo azul esverdeado. Perdido no interior das águas salinas, lanço-me ao absoluto sem parâmetros, sem fechamentos obtusos, afirmando, ainda, o quanto é insensato querer controlar a vida que não pode ser controlada. Diante dos paradoxos que continuam a me esbofetear, respeito a intuição do momento e abraço o acaso se ele quiser me abraçar. Assim vivo, pois as tramas da vida sempre precisam ser vivenciadas com ampla ousadia.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

DIA 64 - Da natureza da coragem



Uma amiga a quem muito prezo mandou-me um recado tecendo considerações sobre um livro de crônicas que tive a oportunidade de publicar há alguns anos. Este recado carinhoso gerou-me sentimentos múltiplos e a vontade de dialogar com as suas percepções. Basicamente, ela me falou a respeito de coragem e de liberdade. Ela sentiu, no contexto das emanações de minha alma subversiva que eu estava tecendo críticas em relação às injustiças que tentavam amordaçar a vida humana, favorecendo a ampliação do espaço destinado às estruturas de poder, e que isso era muito corajoso da minha parte.

Eu preciso confessar que eu não sou corajoso. Aliás, minha vida é marcada pelo medo, pela ansiedade e pela angústia. Coragem substantiva não me define. Coragem substantiva não existe em minhas palavras, em minhas ações, tampouco em meu velho e carcomido dicionário de bolso – coisa antiga. Por uma causa que não sei mensurar, a coragem que eu não tenho surge em minha vida como uma erupção vulcânica em dados e espasmódicos momentos cotidianos. De repente, me vejo completamente tomado de uma ira sem precedentes e passo, então, a falar, agir e escrever coisas que não havia pensado ou medido. Assim, compreendi que pessoa alguma é corajosa fortuitamente, mas se enche de coragem ante a uma situação inusitada que lhe fere a alma ou a vida.

Ao mesmo tempo, passei a pensar no intrigante livro A Coragem de Ser, escrito pelo filósofo e teólogo Paul Tillich. Neste livro, o autor reúne os conceitos ético e ontológico alusivos à coragem e à angústia, afirmando que “a coragem de ser é o ato ético no qual o homem afirma seu próprio ser a despeito daqueles elementos de sua existência que entram em conflito com a sua autoafirmação essencial”. Nessa perspectiva, a coragem é uma atitude e uma potência do ser-em-si que recebe a si-próprio de volta, num processo de contínua autoafirmação frente ao não-ser. Não é fácil encarar os desafios mais diversos que se apresentam no campo da existência e, ainda assim, buscar a autoafirmação. Embora haja muitos medos envolvidos, como, por exemplo, o medo da perda, o medo da frustração, o medo da rejeição, o medo da morte, entre outros, dando a ideia de que coragem se relacione ao poder da mente para vencer o medo, para Tillich a coragem existe para refrear a ansiedade e angústia. Em suas palavras: “Coragem é usualmente descrita como o poder da mente para vencer o medo. O significado do medo pareceu por demais óbvio para merecer inquérito. Porém, nas últimas décadas, a psicologia profunda em cooperação com a filosofia existencialista, tem conduzido a uma decisiva distinção entre medo e ansiedade e a definições mais precisas de cada um destes conceitos”. A coragem aparece como uma postura e uma atitude concreta no aqui e no agora, obscurecendo o medo e seu objeto conhecido, e a ansiedade, quanto ao não-ser e a sua finitude, evidenciando as emoções e atitudes necessárias para o enfrentamento dos diversos monstros, inclusive os imaginários.

Em todos os dias, pessoas as mais diversas lutam continuamente com os seus medos, suas ansiedades e suas angústias, especialmente quanto à finitude. A convocação que cada ser se impõe, especialmente quanto a buscar posturas corajosas de autoafirmação frente às contínuas lutas cotidianas, é o que favorece a manifestação da coragem de ser. É justamente no momento em que a adrenalina inunda a corrente sanguínea que o autocontrole precisa se manifestar. Quando a emoção toma o lugar da consciência, os batimentos cardíacos e a pressão arterial precisam ser controlados mediante a respiração pausada e contínua. Um copo com água ajuda bastante. Em momentos de perigo iminente, a coragem brota em meio ao medo, à ansiedade e a angústia. Somente se manifesta com coragem quem tem medo, ansiedade e angústia. Somente tem coragem quem enfrenta o medo de arriscar. É nessa dialética contínua, entre medo e coragem, angústia e autoafirmação, que cada pessoa descobre, paulatinamente, as possibilidades de se buscar na dimensão do amor as possibilidades de afastamento do medo, da ansiedade e da angústia.

Como um gêiser que se manifesta do interior da terra, fazendo espargir o seu fluxo cheio de pressão, a coragem deve se manifestar num processo de autoafirmação à despeito das situações aflitivas e afrontosas que se manifestarem no cotidiano existencial. Quando o corpo for confrontado pelo infortúnio, a teimosia para se pensar diferente se torna uma condição amplamente necessária. Essa teimosia é a manifestação da coragem para se tomar a decisão certa nas situações limites que são experimentadas por cada ser.

À minha amiga, eu respondo: não sei se tenho coragem, mas a expresso continuamente, mesmo diante dos meus medos, minhas ansiedades e minhas angústias.

DIA 73 - Separações acontecem e a vida segue como dá...

  1. Quando penso sobre o processo que envolve as separações conjugais, constato que muito do possível sofrimento que acomete o casal não ...