terça-feira, 7 de abril de 2020

Melhorando e Enfrentando os Altos e Baixos (Décimo texto)



“Seja qual for o caminho que optarmos seguir, haverá altos e baixos. E isso é tudo”.
Martha Medeiros

         Quando faço um exercício memorial, trazendo à tona as lembranças dos dias em que vivi, me deparo com um quadro muito mal pintado de situações, as mais diversas, dotadas de pinceladas desconexas e multicoloridas, algumas acinzentadas. Todo esse quadro me lembra dos diversos conflitos que transpassaram a minha alma.
         Não nasci num berço esplêndido, mas na complexidade das situações limites. Com meus pais, morei na Favela do Campinho em Madureira – RJ. Não me queixo. Quando fecho os olhos, visualizo a ternura e o carinho de minha família naquele lugar. Tudo o que sou hoje decorre dessa dinâmica que sempre misturou altos e baixos, conflitos e acordos, perguntas e respostas, dúvidas e mais dúvidas. Tenho uma rígida constatação de que a vida em todos os seus níveis se organiza ou se desorganiza nos encontros e desencontros que ocorrem na singularidade do ser-em-si e nos relacionamentos.
         Dos muitos altos e baixos vivenciados ao longo de minha existência, que poderiam gerar diversas narrativas, elenco um em especial, por entendê-lo como uma viva situação de enfrentamento.
         Em julho de 2004, vivi uma experiência complexa quando, sofrendo um simples acidente, perdi completamente a visão do olho direito. Eu estava num churrasco com amigos e num dado momento, em meio à festa e a brincadeira, por estar assentado debaixo de uma árvore, levantei-me precipitadamente e bati com a parte de trás da minha cabeça em um toco saliente. Senti uma dor lancinante e o consequente movimento de substâncias estranhas dentro do globo ocular. Sabia que alguma coisa estava acontecendo, mas jamais poderia imaginar que aquilo era um descolamento de retina. Na mesma semana marquei uma consulta com uma oftalmologista e descobri que eu havia sofrido uma ruptura gigante. Para resumir a história, fui encaminhado para um instituto especializado em cirurgias na retina, passando por duas intervenções convencionais e sete outras a lazer. Num primeiro momento, em meio a toda a adaptação, fiquei bem, mas depois tive uma catarata e não mais foi possível a recuperação da visão. Perdi-a completamente.
         Essa situação poderia ter me deixado muito mal e até me imobilizado na vida, mas resolvi fazer a transição e não me deixar abater por tais circunstâncias. Parece até um paralelo do esquete alusivo ao “Joseph Klimber”, apresentado pela Companhia de Comédia Os Melhores do Mundo. O fato é que sofri um acidente fortuito. Não tinha feito nada para ele acontecer. Eu também não queria o descolamento da retina, mas ele ocorreu em meu olho direito. Existem situações que não podem ser evitadas por pessoa alguma. E não são justamente esses dois tipos de sofrimento que todos vivenciamos? Os primeiros oriundos das escolhas possíveis. Os segundos, dos acidentes fortuitos e não esperados.
         Quando não tenho respostas em relação ao inusitado, busco o caminho da teimosia, me reorganizando e acreditando na possibilidade de sair das areias desérticas para o oásis; dos charcos para os campos floridos; da tela branca para a obra de arte; do mosto para o bom vinho; da chuva torrencial para o arco-íris. Diante do irônico da vida, quando as perguntas “são” e as respostas “não-são”, preciso recorrer às coisas do espírito. Alguns chamam isso de resiliência.
         O poder da resiliência – essa notável capacidade de se adaptar emocionalmente frente aos infortúnios da vida, me refaz, gerando novas expectativas em relação à minha existência como ser-aí. Preciso das boas expectativas, pois em diversos momentos cotidianos, sinto-me frustrado. Infelizmente, desde os tempos mais remotos da tenra infância, fui condicionado a acreditar num reconhecimento que somente poderia advir dos meus sucessos e vitórias, especialmente os de ordem material. Todavia, posso contar nas mãos os êxitos obtidos nessas duas esferas. Tive, obviamente, bons momentos, mas as lembranças são maiores em relação às derrotas.
         De fato, nunca celebrei muitos sucessos ou vitórias na minha caminhada existencial. Aliás, sempre enfrentei o revés. Lembro-me que na escola eu era sempre o último a ser escolhido para qualquer atividade física, principalmente o futebol. Tudo bem, eu sempre fui ruim de bola, e sempre sofri as mais fortes pressões do que hoje se chama bullyng. Vivi todos os níveis de sofrimento, decorrentes dos apelidos e maus tratos oriundos dos colegas de sala de aula. Só não sofria bullyng quando desenhava, porque nessa área, modéstia às favas, eu mandava bem. Isso me levou bem cedo a fazer uma constatação de que cada pessoa possui sua potencialidade particular. Cada um tem o seu valor e realiza os feitos que pode realizar na singularidade dos seus gestos. Isso jamais pode ser ofuscado.
         Além desse sofrimento ocasionado pelas péssimas brincadeiras de mau gosto oriundas dos colegas, uma pergunta sempre ficou martelando a minha mente: Por que algumas coisas acontecem para algumas pessoas e para outras não? Ora, algumas pessoas tiveram boas oportunidades desde o nascimento; outras, nasceram condenadas a não alcançar coisa alguma. E tem aquelas, ainda, que precisam batalhar muito para estabelecerem um mínimo “lugar ao sol”. É estranho isso. Não escolhemos como nascer e onde nascer. Não escolhemos nem mesmo o nosso nascimento. Podemos, talvez, escolher os(as) amigos(as), e olhe lá.
         Nesse mundo onde são parcas as minhas escolhas pessoais, peregrino enfrentando os altos e baixos. Não me importuno muito, afinal de contas, seria completamente sem graça um mar sem ondas, uma floresta sem clareiras ou o um precipício sem o abismo, daqueles que dá até medo olhar para o fundo.
         Por isso, acho lindo o poema da Adélia, por título: Tão bom Aqui. Ele me revela os altos e baixos pelos quais eu passo.

Me escondo no porão para melhor aproveitar o dia e seu plantel de cigarras. Entrei aqui para rezar, agradecer a Deus este conforto gigante. Meu corpo velho descansa regalado, tenho sono e posso dormir. Tendo comido e dormido sem pagar. O dia lá fora é quente, a água na bilha é fresca, acredito que sugestionamos elétrons. Eu só quero saber do microcosmo, o de tanta realidade que nem há. Na partícula visível de poeira em onda invisível dança a luz. Ao cheiro do café minhas narinas vibram, alguém vai me chamar. Responderei amorosa, refeita de sono bom. Fora que alguém me ama, eu nada sei de mim.

         Gosto da Adélia assentada em minha roda de conversa, deslindando poeticamente os altos e baixos sentidos por ela mesma, mulher, alentando todas as múltiplas gentes que enfrentam suas aporias. Sua poesia me toca. Sinto-me num microcosmo também. Sua prosa desliza fácil pelos abismos da minha alma, parecendo preencher os espaços desconexos dos meus sentidos. Doce Adélia que parece ter nome de flor. Talvez, ela mesma seja uma flor. E ela se achega, uma vez mais, nomeando as palavras que revelam o susto e o terror em Antes do nome: 

Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”, o “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível muleta que me apoia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. A palavra é disfarce de uma coisa grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momento de graça, infrequentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror.

         Momento de graça? Nem sempre. Mas vou perseverando entre dias bons e dias maus, entre as palavras e suas polissemias que me ajudam na organização de minha vida no tempo e no espaço, afinal de contas, ainda não desisti de perseguir o sentido de bem-estar, se ele me for possível. O peixe ainda está vivo na minha mão. Estou atemorizado, mas insisto em inaugurar minhas linhagens e fundar meus reinos. Quem sabe, assim, enfrente melhor todas as variações que me ocorrem entre a vida e a morte, entre os altos e baixos.

DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

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