“Seja qual for o
caminho que optarmos seguir, haverá altos e baixos. E isso é tudo”.
Martha Medeiros
Quando faço um exercício memorial, trazendo
à tona as lembranças dos dias em que vivi, me deparo com um quadro muito mal
pintado de situações, as mais diversas, dotadas de pinceladas desconexas e
multicoloridas, algumas acinzentadas. Todo esse quadro me lembra dos diversos
conflitos que transpassaram a minha alma.
Não nasci num berço esplêndido, mas na
complexidade das situações limites. Com meus pais, morei na Favela do Campinho
em Madureira – RJ. Não me queixo. Quando fecho os olhos, visualizo a ternura e
o carinho de minha família naquele lugar. Tudo o que sou hoje decorre dessa
dinâmica que sempre misturou altos e baixos, conflitos e acordos, perguntas e
respostas, dúvidas e mais dúvidas. Tenho uma rígida constatação de que a vida
em todos os seus níveis se organiza ou se desorganiza nos encontros e
desencontros que ocorrem na singularidade do ser-em-si e nos relacionamentos.
Dos muitos altos e baixos vivenciados
ao longo de minha existência, que poderiam gerar diversas narrativas, elenco um
em especial, por entendê-lo como uma viva situação de enfrentamento.
Em julho de 2004, vivi uma experiência
complexa quando, sofrendo um simples acidente, perdi completamente a visão do
olho direito. Eu estava num churrasco com amigos e num dado momento, em meio à
festa e a brincadeira, por estar assentado debaixo de uma árvore, levantei-me
precipitadamente e bati com a parte de trás da minha cabeça em um toco
saliente. Senti uma dor lancinante e o consequente movimento de substâncias
estranhas dentro do globo ocular. Sabia que alguma coisa estava acontecendo,
mas jamais poderia imaginar que aquilo era um descolamento de retina. Na mesma
semana marquei uma consulta com uma oftalmologista e descobri que eu havia
sofrido uma ruptura gigante. Para resumir a história, fui encaminhado para um
instituto especializado em cirurgias na retina, passando por duas intervenções
convencionais e sete outras a lazer. Num primeiro momento, em meio a toda a
adaptação, fiquei bem, mas depois tive uma catarata e não mais foi possível a
recuperação da visão. Perdi-a completamente.
Essa situação poderia ter me deixado
muito mal e até me imobilizado na vida, mas resolvi fazer a transição e não me
deixar abater por tais circunstâncias. Parece até um paralelo do esquete
alusivo ao “Joseph Klimber”, apresentado pela Companhia de Comédia Os Melhores
do Mundo. O fato é que sofri um acidente fortuito. Não tinha feito nada para
ele acontecer. Eu também não queria o descolamento da retina, mas ele ocorreu
em meu olho direito. Existem situações que não podem ser evitadas por pessoa
alguma. E não são justamente esses dois tipos de sofrimento que todos
vivenciamos? Os primeiros oriundos das escolhas possíveis. Os segundos, dos
acidentes fortuitos e não esperados.
Quando não tenho respostas em relação
ao inusitado, busco o caminho da teimosia, me reorganizando e acreditando na
possibilidade de sair das areias desérticas para o oásis; dos charcos para os
campos floridos; da tela branca para a obra de arte; do mosto para o bom vinho;
da chuva torrencial para o arco-íris. Diante do irônico da vida, quando as
perguntas “são” e as respostas “não-são”, preciso recorrer às coisas do
espírito. Alguns chamam isso de resiliência.
O poder da resiliência – essa notável
capacidade de se adaptar emocionalmente frente aos infortúnios da vida, me refaz,
gerando novas expectativas em relação à minha existência como ser-aí. Preciso
das boas expectativas, pois em diversos momentos cotidianos, sinto-me
frustrado. Infelizmente, desde os tempos mais remotos da tenra infância, fui condicionado
a acreditar num reconhecimento que somente poderia advir dos meus sucessos e vitórias,
especialmente os de ordem material. Todavia, posso contar nas mãos os êxitos
obtidos nessas duas esferas. Tive, obviamente, bons momentos, mas as lembranças
são maiores em relação às derrotas.
De fato, nunca celebrei muitos sucessos
ou vitórias na minha caminhada existencial. Aliás, sempre enfrentei o revés. Lembro-me
que na escola eu era sempre o último a ser escolhido para qualquer atividade
física, principalmente o futebol. Tudo bem, eu sempre fui ruim de bola, e
sempre sofri as mais fortes pressões do que hoje se chama bullyng. Vivi todos
os níveis de sofrimento, decorrentes dos apelidos e maus tratos oriundos dos
colegas de sala de aula. Só não sofria bullyng quando desenhava, porque nessa área,
modéstia às favas, eu mandava bem. Isso me levou bem cedo a fazer uma
constatação de que cada pessoa possui sua potencialidade particular. Cada um
tem o seu valor e realiza os feitos que pode realizar na singularidade dos seus
gestos. Isso jamais pode ser ofuscado.
Além desse sofrimento ocasionado pelas
péssimas brincadeiras de mau gosto oriundas dos colegas, uma pergunta sempre
ficou martelando a minha mente: Por que algumas coisas acontecem para algumas
pessoas e para outras não? Ora, algumas pessoas tiveram boas oportunidades
desde o nascimento; outras, nasceram condenadas a não alcançar coisa alguma. E
tem aquelas, ainda, que precisam batalhar muito para estabelecerem um mínimo
“lugar ao sol”. É estranho isso. Não escolhemos como nascer e onde nascer. Não
escolhemos nem mesmo o nosso nascimento. Podemos, talvez, escolher os(as)
amigos(as), e olhe lá.
Nesse mundo onde são parcas as minhas
escolhas pessoais, peregrino enfrentando os altos e baixos. Não me importuno
muito, afinal de contas, seria completamente sem graça um mar sem ondas, uma
floresta sem clareiras ou o um precipício sem o abismo, daqueles que dá até medo
olhar para o fundo.
Por isso, acho lindo o poema da Adélia,
por título: Tão bom Aqui. Ele me revela os altos e baixos pelos quais eu passo.
Me
escondo no porão para melhor aproveitar o dia e seu plantel de cigarras. Entrei
aqui para rezar, agradecer a Deus este conforto gigante. Meu corpo velho
descansa regalado, tenho sono e posso dormir. Tendo comido e dormido sem pagar.
O dia lá fora é quente, a água na bilha é fresca, acredito que sugestionamos
elétrons. Eu só quero saber do microcosmo, o de tanta realidade que nem há. Na
partícula visível de poeira em onda invisível dança a luz. Ao cheiro do café
minhas narinas vibram, alguém vai me chamar. Responderei amorosa, refeita de
sono bom. Fora que alguém me ama, eu nada sei de mim.
Gosto da Adélia assentada em minha roda
de conversa, deslindando poeticamente os altos e baixos sentidos por ela mesma,
mulher, alentando todas as múltiplas gentes que enfrentam suas aporias. Sua
poesia me toca. Sinto-me num microcosmo também. Sua prosa desliza fácil pelos
abismos da minha alma, parecendo preencher os espaços desconexos dos meus
sentidos. Doce Adélia que parece ter nome de flor. Talvez, ela mesma seja uma flor.
E ela se achega, uma vez mais, nomeando as palavras que revelam o susto e o terror
em Antes do nome:
Não
me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde
emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”, o “o”, o
“porém” e o “que”, esta incompreensível muleta que me apoia. Quem entender a
linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. A palavra é
disfarce de uma coisa grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em
momento de graça, infrequentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a
mão. Puro susto e terror.
Momento de graça? Nem sempre. Mas vou perseverando
entre dias bons e dias maus, entre as palavras e suas polissemias que me ajudam
na organização de minha vida no tempo e no espaço, afinal de contas, ainda não
desisti de perseguir o sentido de bem-estar, se ele me for possível. O peixe
ainda está vivo na minha mão. Estou atemorizado, mas insisto em inaugurar
minhas linhagens e fundar meus reinos. Quem sabe, assim, enfrente melhor todas
as variações que me ocorrem entre a vida e a morte, entre os altos e baixos.