E
recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar
novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa só
existência.
Caio
Fernando Abreu
Mesmo ciente do efêmero, da letargia no
deserto, com agonia, incômodos e sob a égide da hipocrisia, sinto que preciso
recomeçar. Não nutro asco em relação ao recomeço, como muitos que conheço, mas
assumo a efetiva necessidade de refazer a rota urgentemente. A música dos
difusos sentimentos precisa finalizar-se. É hora de ouvir outra canção.
Sinto-me um pequeno ser andarilho dando
passos trôpegos nas trilhas existenciais. Um andarilho que caminha e para, para
e caminha, não necessariamente nessa ordem. Um eterno ciclo entre paragens e
recomeços. Cada um destes é sempre o grito contra a passividade frente aos
desafios. É a porta aberta para mudar o que está caducando, que salvaguarda as minhas
emoções, as minhas potencialidades e a ditosa dignidade de viver.
Ao buscar minha salvaguarda,
principalmente nos dias sombrios, quando a relação claro-escuro não está
definida, recolho-me à dimensão do silêncio. Quero ouvir todo o som do silêncio
para tirar da alma toda a inquietação, me desfazendo, quem sabe, para me
refazer.
Penso furtivamente em Guimarães Rosa
quando diz: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é
coragem”. Obviamente, desfazer-se para refazer-se num recomeço exige coragem,
já que tudo é paradoxal. Com o paradoxo em minha mente, resolvo sair da
letargia por uma Porta Aberta. Poetizo:
Vejo uma
porta.
Ela está
aberta.
Talvez,
passando por ela, eu tenha alguma oportunidade
Para
mudar o que precisa ser mudado...
Sento-me
num monte para contemplar o momento crepuscular, abraçado ao silêncio e à
coragem.
A chegada
da noite me remete ao barulho ensurdecedor do silêncio.
Na
vigília da noite, uma graça misteriosa me visita.
Aos
amados, ela ocorre enquanto dormem.
O brilho
da manhã machuca a retina ainda sonolenta.
Uma chuva
fria e fina toca o telhado de minha casa.
Lembro-me
que a cada manhã renova-se também a misericórdia.
É preciso
esquecer-se para avançar.
Resolvo
romper com a minha letargia
E me
lançar ao inusitado do mundo.
A porta
está aberta.
Sim! A porta está aberta e se torna urgente,
para mim, passar por ela. Tenho que caminhar, mesmo que seja sem rumo, contra o
vento. Certamente, meus passos enfrentarão o relento e contemplarão os
primeiros brilhos cintilantes das imensas pequenas estrelas. O caminho
largo-estreito desafia-me a lida e desfere golpes profundos no meu ser interior,
ainda inquieto. Precisa pacientar-se! Aconselham-me, assim, os que almejam
desejar o consolo. Mas tais palavras são vãs. Meu olhar se lança ao infinito onde
o alcance das mãos nada podem pegar. Nessa hora, abro o sorriso e, teimosamente,
tento de novo, tudo de novo. Contento-me em encontrar algum sentido vital no
cotidiano. Piso firme o chão de gelatina e desequilibrado, prossigo em meu
recomeço.
Lembro-me de Sören Kierkegaard, quando
disse que “ousar é perder o equilíbrio momentaneamente. Não ousar, é
perder-se”. Não vou me perder, e embora desequilibrado como um bêbado, ousarei
ainda, corajosamente, lançar-me à lida cotidiana para viver intensamente o que a
vida pode me oferecer. A ousadia é sempre um convite A virar a página, embora:
Virar
algumas páginas é ato difícil.
O livro
está velho.
As
páginas amareladas e frágeis.
Um odor
fétido e irritante sobe às narinas.
Brotam os
espirros, mas é preciso virar as páginas.
Há risco
em se rasgar cada uma delas...
Mas é
preciso virá-las,
Nem que
para isso, a página seja arrancada.
Sei, o
livro ficará mutilado,
Todavia,
às vezes, é preciso transgredir...
Virando a página ou rasgando-a,
transgrido para não mais agredir a minha alma. Não vou mais fazer o jogo social
para manter meu status quo. Não quero mais ser exemplo ou padrão para ninguém. Quero
o contentamento de ser o que sou, sem necessariamente depender de sistemas ou
pessoas que não me querem bem. Se não concordam comigo, pelo menos não me
atrapalhem. Quero o sossego para novamente olhar a vida com a leveza que lhe é
devida. Abandono o que não vale a pena, cantarolando Raulzito outra vez: “Veja!
Não diga que a canção está perdida. Tenha fé em Deus! Tenha fé na vida! Tente
outra vez!”
Vou tentar, e tentar, e tentar, sem
desistir – ou desistindo do que não vale a pena – quantas vezes for preciso. Um
recomeço é sempre bom e necessário.
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