sexta-feira, 3 de abril de 2020

É Preciso Recomeçar (Sétimo texto)


        
E recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa só existência.
Caio Fernando Abreu

         Mesmo ciente do efêmero, da letargia no deserto, com agonia, incômodos e sob a égide da hipocrisia, sinto que preciso recomeçar. Não nutro asco em relação ao recomeço, como muitos que conheço, mas assumo a efetiva necessidade de refazer a rota urgentemente. A música dos difusos sentimentos precisa finalizar-se. É hora de ouvir outra canção.
         Sinto-me um pequeno ser andarilho dando passos trôpegos nas trilhas existenciais. Um andarilho que caminha e para, para e caminha, não necessariamente nessa ordem. Um eterno ciclo entre paragens e recomeços. Cada um destes é sempre o grito contra a passividade frente aos desafios. É a porta aberta para mudar o que está caducando, que salvaguarda as minhas emoções, as minhas potencialidades e a ditosa dignidade de viver.
         Ao buscar minha salvaguarda, principalmente nos dias sombrios, quando a relação claro-escuro não está definida, recolho-me à dimensão do silêncio. Quero ouvir todo o som do silêncio para tirar da alma toda a inquietação, me desfazendo, quem sabe, para me refazer.
         Penso furtivamente em Guimarães Rosa quando diz: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Obviamente, desfazer-se para refazer-se num recomeço exige coragem, já que tudo é paradoxal. Com o paradoxo em minha mente, resolvo sair da letargia por uma Porta Aberta. Poetizo:

Vejo uma porta.
Ela está aberta.
Talvez, passando por ela, eu tenha alguma oportunidade
Para mudar o que precisa ser mudado...
Sento-me num monte para contemplar o momento crepuscular, abraçado ao silêncio e à coragem.
A chegada da noite me remete ao barulho ensurdecedor do silêncio.
Na vigília da noite, uma graça misteriosa me visita.
Aos amados, ela ocorre enquanto dormem.
O brilho da manhã machuca a retina ainda sonolenta.
Uma chuva fria e fina toca o telhado de minha casa.
Lembro-me que a cada manhã renova-se também a misericórdia.
É preciso esquecer-se para avançar.
Resolvo romper com a minha letargia
E me lançar ao inusitado do mundo.
A porta está aberta.

         Sim! A porta está aberta e se torna urgente, para mim, passar por ela. Tenho que caminhar, mesmo que seja sem rumo, contra o vento. Certamente, meus passos enfrentarão o relento e contemplarão os primeiros brilhos cintilantes das imensas pequenas estrelas. O caminho largo-estreito desafia-me a lida e desfere golpes profundos no meu ser interior, ainda inquieto. Precisa pacientar-se! Aconselham-me, assim, os que almejam desejar o consolo. Mas tais palavras são vãs. Meu olhar se lança ao infinito onde o alcance das mãos nada podem pegar. Nessa hora, abro o sorriso e, teimosamente, tento de novo, tudo de novo. Contento-me em encontrar algum sentido vital no cotidiano. Piso firme o chão de gelatina e desequilibrado, prossigo em meu recomeço.
         Lembro-me de Sören Kierkegaard, quando disse que “ousar é perder o equilíbrio momentaneamente. Não ousar, é perder-se”. Não vou me perder, e embora desequilibrado como um bêbado, ousarei ainda, corajosamente, lançar-me à lida cotidiana para viver intensamente o que a vida pode me oferecer. A ousadia é sempre um convite A virar a página, embora:
Virar algumas páginas é ato difícil.
O livro está velho.
As páginas amareladas e frágeis.
Um odor fétido e irritante sobe às narinas.
Brotam os espirros, mas é preciso virar as páginas.
Há risco em se rasgar cada uma delas...
Mas é preciso virá-las,
Nem que para isso, a página seja arrancada.
Sei, o livro ficará mutilado,
Todavia, às vezes, é preciso transgredir...

         Virando a página ou rasgando-a, transgrido para não mais agredir a minha alma. Não vou mais fazer o jogo social para manter meu status quo. Não quero mais ser exemplo ou padrão para ninguém. Quero o contentamento de ser o que sou, sem necessariamente depender de sistemas ou pessoas que não me querem bem. Se não concordam comigo, pelo menos não me atrapalhem. Quero o sossego para novamente olhar a vida com a leveza que lhe é devida. Abandono o que não vale a pena, cantarolando Raulzito outra vez: “Veja! Não diga que a canção está perdida. Tenha fé em Deus! Tenha fé na vida! Tente outra vez!”
         Vou tentar, e tentar, e tentar, sem desistir – ou desistindo do que não vale a pena – quantas vezes for preciso. Um recomeço é sempre bom e necessário.

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