segunda-feira, 30 de março de 2020

No Deserto (Terceiro texto)


“O que dá beleza ao deserto é que esconde um poço de água em qualquer parte”.
Antoine de Saint-Exupéry
        
         Nem sempre é possível fazer bolhas de sabão! Nem sempre é possível plantar e contemplar os girassóis. Em diversos momentos da minha jornada existencial, as bolhas, os jardins e as obras de arte são, tão somente, vestígios na memória – objetos oníricos. O que tenho à frente dos sentidos é o deserto que um dia foi mar. Habito esse lugar inóspito, árido e sem muitas possibilidades de sobrevivência. Durante o dia, sou escaldado pelo sol, pois exposto a temperaturas que chegam a cinquenta graus centígrados. À noite, o frio intenso me congela a alma. Chuvas? Não as vejo, e a vegetação é parca. A plenificação de minha vida nesse instante-estágio é praticamente impossível. Adapto-me, sobrevivendo numa adversidade.
         Minha alma, ou o que entendo dela, sem muitas opções, se aninha a esse deserto inóspito e emocional, oscilando entre Eros e Tánatos. Nesse não-lugar, evoco os mais estranhos monstros imaginários e a luta insana ocorre na minha inconsistente inconsciência.
         Sinto-me um afortunado, todavia, entendo que uma vida para ser vivida vividamente não pode prescindir o deserto. Meu crescimento, se é que posso falar de algum crescimento nesse estágio, passa pelo sofrimento insano e sem sentido das imagens misturadas numa cripta hodierna em algum lugar desse poço chamado ser.
         Neste deserto, aprendo a viver com pouco. Não carrego bagagens desnecessárias, pois sou um sempre ativo peregrino. Não quero desgastar-me com excesso de peso e esmorecer. Sabiamente, hoje sei que, para viver no deserto emocional, menos é mais! Hoje sei, também, que, menos peso garante mais possibilidade de sobrevida, mesmo porque pisar a areia fofa com peso adicional cansa ainda mais as pernas.
         Busco um oásis. Armo a minha pequena tenda visionária para aliviar o corpo exposto há tempos às intempéries. Quero descobrir as submersas poças de água. Sob a sombra e no sorver do pequeno filete de água encontro a significação e o sentido de toda a vida. Preciso de pouco para viver. Passo a dar valor ao que de fato vale a pena. Só isso me importa.
         Descanso sobre o chão arenoso. Chão, este, que denota a minha origem e o meu final. Vim do pó. Ao pó voltarei. Chão, este, que é a referência de um espaço, onde a vida é percebida em sua rudeza. Fecho os olhos e narro meus cotidianos, tentando recriar o melhor entendimento de minha identidade pessoal. Sei que todas as minhas histórias e sagas foram construídas no chão do deserto. Minha alma se sente apequenada.
         O deserto me colocou frente a uma inquietação limite. Tenho uma súbita consciência da presença da morte e a consequente ausência da vida. Tudo fica muito claro. Preciso sair da letargia e fazer escolhas possíveis e inusitadas para ajudar a minha alma angustiada a sair das areias movediças. Sinto-me e poetizo:
Sinto-me equivocado
Vivendo num mundo equivocado
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar meus equívocos!

Sinto-me errado
Vivendo num mundo errado
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar meus erros!

Sinto-me deslocado
Vivendo num mundo deslocado
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar meus deslocamentos!

Sinto-me confuso
Vivendo num mundo confuso
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar minhas confusões!

Sinto-me perplexo
Vivendo num mundo perplexo
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar minhas perplexidades!

Sinto-me angustiado
Vivendo num mundo angustiado
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar minhas angústias!

Sinto-me atormentado
Vivendo num mundo atormentado
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar meus tormentos!

Sinto-me, enfim, sem sentido
Vivendo num mundo sem sentido
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar minha momentânea ausência de sentido...

         Ainda estou no deserto. A tempestade de areia atinge a minha tenda, deteriorando todos os meus parcos pertences. Tudo se esvai e nada permanece soerguido. Sobra-me o corpo ferido pelo contato com as rajadas de vento e areia. Sofro as dores, choro a lágrima e me perco em meio aos dilemas e as dúvidas. As referências se foram. As histórias e sagas não fazem mais sentido. Tudo é desencanto e a alma estremece. Sob o monte de areia arfo o ar tão necessário à vida. Estabelece-se em mim a agonia.

DIA 70 - As mariposas giram em torno das lamparinas acesas

Gosto quando os olhares e os sorrisos oriundos de pessoas diferentes compactuam os sentimentos mais profundos numa doce simbiose. Pode ser q...