“Está
morto: podemos elogiá-lo á vontade”.
Machado
de Assis
Em meio aos meus incômodos lancinantes,
ainda vivo e busco a sempre aberta possibilidade de ser realmente o que sou ou
o quero ser. Assumo o desafio de não ser hipócrita, embora em vão. Quero tirar
a máscara, mas dependo dela para continuar a representar minha vida no palco da
sociedade. Vasculho a memória, e visualizo todas as figurações da tragédia
grega, sempre teatral e dramática, cujas máscaras, nos atores e atrizes, ocultam
as faces de suas reais emoções. A angústia, a agonia e o incômodo ficam
escondidos. A máscara evita que eu fique exposto aos olhares alheios e
curiosos, mesmo porque confio em poucas pessoas.
Minha mundi-vivência depende da
hipocrisia. Dependo dessa faceta para a minha própria sobrevivência.
Disfarço-me continuamente, escondendo o que penso e o que quero na
representação dos papéis sociais, que me são devidos. Na minha viva
contradição, esforço-me para ser mais transparente. Tenho crises homéricas,
pois não posso fugir da exposição de uma vida mais autêntica. Igualmente, não
posso mascarar a minha existência e as minhas contradições, mas recuo. Tenho
medo de que as pessoas me vejam como realmente eu sou.
Pergunto-me se é possível viver de
forma mais autêntica. Mascaro e fantasio minha vida, deixando de lado o real,
embora seja difícil defini-lo. Sou um hipócrita cercado de hipócritas que, em
muitas situações, se consideram melhores do que as outras pessoas. Fico
embasbacado com gente que é orgulhosa ou que se acha alguma coisa, pois ao final
das contas, todos(as) sabemos que ninguém é melhor do ninguém. Vejo isso de
forma explícita no pensamento de Caio Fernando Abreu: “Um dia tu vais
compreender que não existe nenhuma pessoa totalmente má, nenhuma pessoa
completamente boa. Tu vais ver que todos somos apenas humanos e sofrerás muito
quando resolveres dizer só aquilo que pensas e fazer só aquilo que gostas. Aí
sim, todos te virarão as costas e te acharão mau por não entrar na ciranda
deles, compreendes?” Sim! Claro que compreendo! Por isso não vou viver por
aí, expondo-me de qualquer maneira, de qualquer jeito. Ademais, considero um
absurdo quando um beltrano qualquer considera mau caráter um cicrano outro,
pelo simples fato de expor o que pensa ou o que gosta, mesmo que de forma
indevida. Poetizo: Cada um com seu cada um.
De minha
parte, nada mensuro do que o outro vive!
Não dou conta
nem de mensurar
O que sou
ou o que faço.
Vou
ficando por aqui,
Com a
mente sempre aberta pra entender,
Mesmo que
eu não compreenda.
Cada um
com seu cada um,
E cada
vida de acordo com suas possibilidades.
De uma
forma decisiva,
A gente
vive como dá.
A gente
existe como ser-aí.
Conheço a minha vida e as minhas intimidades.
Não me julgo melhor do que o(a) outro(a). Faço coro com Bob Marley: “Quem é
você para julgar a vida que vivo? Eu sei que não sou perfeito – e nem vivo para
ser perfeito – mas antes de começar a apontar o dedo... tenha certeza de que
suas mãos estão limpas”. Assim, quando exponho minha alma diante do espelho, concluo
que minhas mãos não estão limpas. Somente sou o que sou e todas as minhas imperfeições
e contradições ficam expostas. Não as vejo como inimigas. Preciso
equilibrá-las. Imperfeições e contradições me acompanham, fazem parte da
dinâmica da minha própria vida. Embora não queira, preciso esconder as minhas
próprias mazelas. Talvez, com algumas pessoas, tenha condições de revelar meus
monstros ocultos e meus íntimos dramas insanos.
Penso na minha hipocrisia e relaciono-a
a exposição do meu caráter. Para mim, o caráter não é algo estático, mas
dinâmico. Ele muda de cores. É camaleônico. É a consciência sobre algo a ser
definido, um acontecimento momentâneo, uma atitude assumida em determinado
momento da jornada de vida. Não vem do berço, tampouco dos processos
educacionais sofridos. Caráter não é somente o que as pessoas acham que determinada
pessoa é, mas o que a pessoa é num determinado momento. O bom-caratismo ou o
mau-caratismo dependem do momento. Ninguém tem um caráter 100% e ninguém é sem
caráter 100%. Caráter não tem a ver com o conceito de perfeição, mas com a resposta
coerente, ou não, que esta ou aquela pessoa apresenta no cotidiano vivencial. Há
contradição no caráter. Para muitas pessoas, sou hipócrita e sem caráter! Para
outras, não. Tudo muito subjetivo e sem amparo lógico.
Nas minhas idas e vindas, em meio às
minhas hipocrisias, bom-caratismo e mau-caratismo, peregrino como dá e como
posso. No fundo, no fundo, o que ficam são as ações significativas que tive a
oportunidade de empreender a esta ou aquela pessoa num dado momento de sua
lida. No bojo das boas ações e das ações sem sentido, a vida vai se organizando
como num sacolejante caminhão que sai da zona rural, carregado de legumes e
hortaliças.
Ao final das contas, duas perguntas me
sobrevêm à mente: Por quem serei julgado? Pelo que serei julgado? Será que o sublime
mistério está preocupado com as minhas remotas idiossincrasias? Será que as
pessoas que me cercam têm, realmente, moral suficiente para me julgar? Ora,
todos nós somos feitos da mesma substância e o simples fato de nos julgarmos
melhor do que o(a) outro(a) é um claro indício da pequenez da alma alheia. Mas
quem é mais hipócrita? O que se afirma hipócrita ou o que esconde a sua
hipocrisia? Eis a aporia da qual tenho que dar conta. Em um ou em outro caso,
acho que deve existir um esforço pela solidariedade, pela ajuda mútua, pois
estamos num mesmo barco e ele tem diversos furos. Como nos lembra Niezstche: “A
verdade e a mentira são construções que decorrem da vida no rebanho e da
linguagem que lhe corresponde. O homem do rebanho chama de verdade aquilo que o
conserva no rebanho e chama de mentira aquilo que o ameaça ou exclui do
rebanho. [...] Portanto, em primeiro lugar, a verdade é a verdade do rebanho”.
Então é preciso dizer um basta às
verdades do rebanho que selecionam as pessoas de acordo com seus interesses, valorizando
uns em detrimento dos outros. É igualmente preciso assumir a necessidade de
hipocrisia que faz parte de cada pessoa, pois o que assume suas próprias imperfeições
e contradições, dentro das possibilidades, pode dar uma chance a melhores
relações afetivas. Viva a hipocrisia!
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