quarta-feira, 1 de abril de 2020

E eu fiquei Incomodado ( Quinto texto)



“Vejo a multidão fechando todos os meus caminhos, mas a realidade é que sou eu o incômodo no caminho da multidão”.
Chico Buarque
        
         O sol é parco e a agonia ainda persiste, deixando-me profundamente incomodado.
         Incômodo é também um não-lugar. Uma insatisfação gerada por todas as percepções que se deslocam na órbita dos meus sentidos. Percebo os sistemas que determinam a minha vida e como devo proceder. Achei que eu tinha livre-arbítrio para decidir por mim mesmo. Ledo engano. Observo-me, boquiaberto, aprisionado aos sistemas simples ou complexos. Invade-me um asco lancinante em relação àqueles que fetichizam símbolos e mercantilizam pessoas. Tais sistemas descartam a minha liberdade, expondo-me a sacrifícios bizarros, aniquiladores da dignidade humana. Incomoda-me esse ritual macabro, celebrado por gente que se considera melhor, cujos interesses são espúrios. Gente que, com o punho cerrado, agride a mesa de madeira, ordenando insanamente como as coisas devem ser.
         Incomodam-me as posturas excludentes e polarizadas que sempre deixam o mais pobre em situação de penúria. Tais posicionamentos se balizam, basicamente, na ideia de que os fins justificam os meios – ideia erroneamente atribuída a Nicolau Maquiavel. Vejo o destilar da crueldade em agrupamentos sociais, políticos e religiosos, vestidos da supracitada máxima, utilizando-se de técnicas absurdas para dominar as pessoas, inclusive, hipnotizando-as. Indigno-me com ações sórdidas e abusivas que tornam cativas emocionalmente as pessoas.
         Meu incômodo não é somente uma expressão do meu interior. É incômodo que me leva a ações concretas no cotidiano. Embora, almeje os caminhos mais ponderados para a busca da dignidade humana, me perco diante das minhas falas contraditórias, eivadas de paixões. Luto pelas mudanças concretas, sem a pretensão de que sejam grandes mudanças. Não penso em mudanças estruturais, tipo: um novo governo, um novo líder ou um novo messias, mas em pequenas modificações oriundas das pequenas comunidades onde o sentido de humanidade ainda é preservado. Começo comigo, multiplico intentos para com a família e, posteriormente, para um pequeno nicho comunitário. As mudanças precisam acontecer, mesmo que em menor grau. Outro dia, pensando nisso, poetizei dizendo que Eu já acreditei:
Eu já acreditei que mudanças poderiam acontecer mediante as minhas palavras.
Eu já acreditei que mudanças poderiam acontecer mediante minhas ações.
Eu já acreditei que mudanças poderiam acontecer mediante minha participação ativa em fóruns.
Eu já acreditei que mudanças poderiam advir das interlocuções de um grupo coeso e bem intencionado.

Quer saber? As pessoas defendem somente as suas proposições pessoais e usam os outros como se fosse massa de manobra para a satisfação pessoal. Então, tive que desacreditar nas mudanças. Agora sou um descrente.
         Incomodam-me os caminhos que me levaram a descrer. Tal descrença foi o fruto da minha própria indignação com os sistemas. Não nutro nenhum medo em relação a estes. Ouso lutar continuamente pela constante alteração deles, mas descreio das grandes mudanças. Abraço, então, as pequenas oportunidades que encontro com vias à transformação de uma determinada realidade local.
         Incomodam-me, enfim, os processos fechados que não possibilitam mudanças. Entendo que toda boa mudança é essencial para gerar a qualidade de vida necessária a todos(as). Todavia, eu sei que existem dimensões que jamais se modificarão. “O que não tem remédio, remediado está”. Mantenho meu incômodo e indignação. Mudo a mim mesmo e o que dá pra ser mudado, cantarolando com o Raulzito que eu “prefiro ser uma metamorfose ambulante, do que (sic) ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. O incômodo continua...

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