terça-feira, 31 de março de 2020

E Vejo a Agonia (Quarto texto)


“É horrível assistir à agonia de uma esperança”.
Simone de Beauvoir

         A agonia instalada em minha alma me joga ao canto da sala, me afundando num sofá, deixando-me em (in)completo estado de perplexidade. Dos tempos desérticos sobraram as perguntas convictas e as respostas obscuras. Nada é lógico. Em que pese minha vontade por uma vida mais cartesiana, a agonia provocada pelo fortuito e inusitado, ilógico enfim, é muito maior. A alma partida e o coração acelerado me tornam um ser fragmentado. Uma dor lancinante se instala e a fé se estremece. A experiência é obtusa e faculta as mais extremadas ilusões, deixando o ser em estado catatônico. Enxergo nitidamente O Paradoxo:
Toda vela deixa de espargir o seu brilho depois do desgaste.
Todo vulcão volta ao seu repouso depois de cuspir suas larvas.
Toda onda se espraia na praia depois de se avolumar.
Todo dia chega a ser noite depois de um ciclo.
Toda noite instaura o silêncio e se desfaz ao romper da aurora.
Todo o riso, mesmo a gargalhada, cessa diante da dramaticidade da vida.
Todo choro banha o rosto, se perdendo depois num sono profundo.
        
         No paradoxo, sinto a sombra da morte aninhar a minha alma. No terreno da agonia, sob a tal sombra assustadora, me sinto completamente arruinado. Penso em mim como uma verdadeira Ruína, e poetizo:
Sou edificação,
Mas também sou ruína.
Sou forte e tão frágil,
Essa é a minha sina.

Mas ruína também é beleza,
Quando toca a emoção,
E se torna obra prima
Na simples contemplação.

Não me diga apressado:
É hora de restauração.
A ruína conta conto
Que dá fé e motivação.

         Na condição de uma ruína, anseio pelos desejos cheios de uma esperança teimosa que podem me ajudar numa possível edificação. Todavia, em ruínas, sob a sombra, teimo e resisto contra os sentimentos intempestivos que querem se instalar em minha alma agoniada. Resisto para não perder a sensibilidade. Tento tirar de um baú instalado em meu inconsciente a vontade de superação, tão necessária para o estabelecimento do meu equilíbrio emocional. Vejo-me frente à vida e a morte. Preciso tecer escolhas sensatas para me livrar da agonia. No turbilhão de pensamentos que inundam a minha consciência fragilizada, quero transformar as palavras sem consistência em ações que valorizem a dignidade de ser.
         A busca pelas genuínas atitudes me faz nutrir a expectativa de que a agonia passará. Entretanto, ela ainda paralisa as minhas múltiplas atividades do cotidiano. Não sei quando ela passará ou se apaziguará. Instalou-se em meu peito e se espraiou em meus poros. Luto continuamente para arrancá-la. Quero desaninhá-la.
         Nutro a convicção de que depois da tempestade que me reporta à agonia, os raios de sol voltarão a aquecer o corpo. E mesmo que outra chuva torrencial desse nível venha, outros raios de sol insistirão em romper as densas nuvens para abraçar-me. Bronzeando-me sob o sol de uma nova inspiração, invade-me luminosamente na íris dos meus olhos as possibilidades de me organizar sempre, sem desistir jamais, com agonia ou sem agonia, não necessariamente nessa ordem. Valha-me a poesia novamente em Um pensamento em meio ao parco sol:
O sol é parco. As nuvens opacas,
Mas o sorriso amigo torna tudo colorido.
Somos seres que desejam o apego sobrenatural
Que nos dá sustentação nos difíceis dias de aflição.
Mas não há de ser nada. O amor frágil e pequenino
Sobrevive ante a tempestade, desfazendo a ansiedade...
Tudo é calmo. Sereno dia de sol parco
Uma criança brinca. Eu penso em você...

segunda-feira, 30 de março de 2020

No Deserto (Terceiro texto)


“O que dá beleza ao deserto é que esconde um poço de água em qualquer parte”.
Antoine de Saint-Exupéry
        
         Nem sempre é possível fazer bolhas de sabão! Nem sempre é possível plantar e contemplar os girassóis. Em diversos momentos da minha jornada existencial, as bolhas, os jardins e as obras de arte são, tão somente, vestígios na memória – objetos oníricos. O que tenho à frente dos sentidos é o deserto que um dia foi mar. Habito esse lugar inóspito, árido e sem muitas possibilidades de sobrevivência. Durante o dia, sou escaldado pelo sol, pois exposto a temperaturas que chegam a cinquenta graus centígrados. À noite, o frio intenso me congela a alma. Chuvas? Não as vejo, e a vegetação é parca. A plenificação de minha vida nesse instante-estágio é praticamente impossível. Adapto-me, sobrevivendo numa adversidade.
         Minha alma, ou o que entendo dela, sem muitas opções, se aninha a esse deserto inóspito e emocional, oscilando entre Eros e Tánatos. Nesse não-lugar, evoco os mais estranhos monstros imaginários e a luta insana ocorre na minha inconsistente inconsciência.
         Sinto-me um afortunado, todavia, entendo que uma vida para ser vivida vividamente não pode prescindir o deserto. Meu crescimento, se é que posso falar de algum crescimento nesse estágio, passa pelo sofrimento insano e sem sentido das imagens misturadas numa cripta hodierna em algum lugar desse poço chamado ser.
         Neste deserto, aprendo a viver com pouco. Não carrego bagagens desnecessárias, pois sou um sempre ativo peregrino. Não quero desgastar-me com excesso de peso e esmorecer. Sabiamente, hoje sei que, para viver no deserto emocional, menos é mais! Hoje sei, também, que, menos peso garante mais possibilidade de sobrevida, mesmo porque pisar a areia fofa com peso adicional cansa ainda mais as pernas.
         Busco um oásis. Armo a minha pequena tenda visionária para aliviar o corpo exposto há tempos às intempéries. Quero descobrir as submersas poças de água. Sob a sombra e no sorver do pequeno filete de água encontro a significação e o sentido de toda a vida. Preciso de pouco para viver. Passo a dar valor ao que de fato vale a pena. Só isso me importa.
         Descanso sobre o chão arenoso. Chão, este, que denota a minha origem e o meu final. Vim do pó. Ao pó voltarei. Chão, este, que é a referência de um espaço, onde a vida é percebida em sua rudeza. Fecho os olhos e narro meus cotidianos, tentando recriar o melhor entendimento de minha identidade pessoal. Sei que todas as minhas histórias e sagas foram construídas no chão do deserto. Minha alma se sente apequenada.
         O deserto me colocou frente a uma inquietação limite. Tenho uma súbita consciência da presença da morte e a consequente ausência da vida. Tudo fica muito claro. Preciso sair da letargia e fazer escolhas possíveis e inusitadas para ajudar a minha alma angustiada a sair das areias movediças. Sinto-me e poetizo:
Sinto-me equivocado
Vivendo num mundo equivocado
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar meus equívocos!

Sinto-me errado
Vivendo num mundo errado
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar meus erros!

Sinto-me deslocado
Vivendo num mundo deslocado
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar meus deslocamentos!

Sinto-me confuso
Vivendo num mundo confuso
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar minhas confusões!

Sinto-me perplexo
Vivendo num mundo perplexo
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar minhas perplexidades!

Sinto-me angustiado
Vivendo num mundo angustiado
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar minhas angústias!

Sinto-me atormentado
Vivendo num mundo atormentado
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar meus tormentos!

Sinto-me, enfim, sem sentido
Vivendo num mundo sem sentido
Dotado de pessoas que me ajudam a ampliar minha momentânea ausência de sentido...

         Ainda estou no deserto. A tempestade de areia atinge a minha tenda, deteriorando todos os meus parcos pertences. Tudo se esvai e nada permanece soerguido. Sobra-me o corpo ferido pelo contato com as rajadas de vento e areia. Sofro as dores, choro a lágrima e me perco em meio aos dilemas e as dúvidas. As referências se foram. As histórias e sagas não fazem mais sentido. Tudo é desencanto e a alma estremece. Sob o monte de areia arfo o ar tão necessário à vida. Estabelece-se em mim a agonia.

domingo, 29 de março de 2020

Pois tudo é efêmero. (Segundo texto)


“... E tudo que era efêmero se desfez. E ficaste só tu, que é eterno”.
Cecília Meireles

         As bolhas de sabão me ensinam sobre a efemeridade da vida. Tudo passa, e essa é a grande certeza que eu tenho. No exato momento em que escrevo estas linhas, contemplo o relógio em meu pulso e o seu ponteiro me lembra como rapidamente o presente vira passado.
         No âmbito dessa percepção, às vezes, me comparo a um alpinista, daqueles que escalam a montanha pelo puro prazer de subir, arriscando a vida na jornada. Ao alcançar o cume, finca a bandeira do seu país e contempla toda a linha do horizonte com os olhos marejados. Em meio a sentimentos difusos, que vão da angústia à felicidade, se pergunta: por que me gastei tanto para este momento tão efêmero? Assim, inquieto por ter chegado onde desejava, o alpinista, como menino extasiado e feliz, sente o corpo ferido ser beijado pelas correntes dos ventos gélidos e cortantes de um polo qualquer. Nesse instante de base e abismo, balbucia palavras de gratidão, exaltando a potência dos valentes.
         Deixo o alpinista em seu lugar, recobro a razão e, tal qual artista que busca no fundo da alma a inspiração para transpirar sobre a obra de arte, insisto em encontrar o solitário que mora em mim.
         Nesse instante surreal e igualmente efêmero, vejo os girassóis. Tanto os do quadro de Vincent Van Gogh, como os do meu solitário jardim, ainda não plantado. Todos são lindos e impressionantes. Eles estão nascendo. Ambos são frágeis e se desfazem rapidamente pelo poder químico ou pela química do poder. Eu os quero bem, perto de mim, pois suas cores me inspiram, além de perfumarem minhas lembranças mais remotas. Vejo os girassóis e quero regá-los com a água fresca que incha os caules. Que o sol venha favorecer o milagre da fotossíntese cuidando de sua efêmera beleza no período da primavera.
         Um girassol é só um girassol se for visto como um girassol. Por outras retinas, se torna um mundo. Tenho medo de que os girassóis deixem de sê-los. Não os quero como palha, talvez como sementes, pois nestas deposito as minhas esperanças mais remotas. Tenho medo de me perder na pura contemplação dos girassóis. É porque sei que eles passarão. Os girassóis passam, a vida é igualmente efêmera e eu me encanto com as coisas simples.
         Nesse fugaz instante de eternidade, reflito novamente no caminho a ser percorrido, valorizando o que vale a pena. Inconformado com o que me aflige a alma, continuo a abraçar a tensão de não saber para onde ir. Nesta trilha, quero que a vida aconteça e que eu deixe de esquentar a cabeça com tantas caraminholas. Quero curtir a vida e o que ela pode me dar, mesmo inquieto quanto ao que virá. Apego-me à frágil perspectiva da esperança, pois não me sobra muita coisa. Então, preciso esperar, esperar, esperar, embora não goste muito de esperar.
         Olho novamente o relógio pulsar no pulso e aguardo novas possibilidades. Sei que a vida oferece diversas aberturas, embora sem muitas opções. As oportunidades são limitadas e isso é um tanto cruel. Assim, quando chego à constatação de que não conseguirei alcançar o que sempre almejei, opto por continuar vivendo a aventura da vida no cotidiano, entendendo que Tudo Passa. Sobre isso poetizei:
Sei que a vida às vezes é barra
E as tensões se instalam no peito
O amor que escorre das mãos
As estrelas que caem no chão

Sempre existe uma porta aberta
E um ombro amigo, irmão.
Vá em frente, confie em si mesmo
E na prosa do Grande Autor
Nunca deixe seus sonhos de lado
Acredite na força do amor...
Sempre existe uma porta aberta
E um ombro amigo, irmão
Você pode crer, tudo passa!

         Encolhido em meus pensamentos, chego novamente à sensível conclusão de que tudo é passageiro e efêmero, como as bolhas de sabão. Elas estouraram. Talvez eu possa refazê-las soprando o canudo ainda imerso num recipiente qualquer. Quanto aos girassóis, eles estão murchos, mas eu ainda penso em replantá-los.

sábado, 28 de março de 2020

Pra início de Conversa... (Primeiro Texto)



“Há um único recanto do universo que podemos ter certeza de melhorar: o nosso próprio eu”.
Aldous Huxley

         “Deu ruim! Mas vai melhorar...” é uma singular tempestade de ideias e sentimentos oriundos de uma mudança radical que resolvi empreender em minha vida, depois de trinta anos envolvido numa esfera de atividades e ações. Urdido pela vontade de mudar o rumo da prosa e um vestígio de esperança, lancei-me a outro caminho de percurso incerto. Assim, tateando formas no escuro, com muito temor e tremor, busquei com o olhar perdido a referência da luz em algum lugar.
         O caminho incerto era na verdade o início de uma trilha a ser aberta no meio da mata densa e perigosa. Nessa trilha, onde se misturavam excitações, sentimentos e contentamentos, me encontrei com pessoas, as mais diversas, que viviam a mesma experiência que a minha. Não perguntei se elas queriam ir comigo. Respeitando seus posicionamentos pessoais, continuei a minha jornada de incertezas, convicto de que cada passo valeria à pena.
         Pergunto-me, hoje, onde quero chegar? Não sei e nem sei se quero especular uma resposta, pois sigo a entonação poética do Zeca Pagodinho: “deixo a vida me levar”, mesmo porque quando tento controlar as demandas de cada dia, eu me frustro. Então, deixo as coisas acontecerem e vivo cada dia como dá, afinal de contas, a vida é “como uma onda no mar”, aonde tudo vem e vai, acontecendo... Já diria o Lulu Santos. Portanto, não vou especular em relação à coisa alguma, pois tenho mais perguntas do que respostas, e as respostas me sugerem mais perguntas.
         Mesmo assim, preciso confessar: eu gosto deste jogo entre perguntas e respostas. Eu gosto de coisas novas, mesmo que elas me tragam problemas. Conheço gente que tem medo do novo, mas eu sou atilado. Gosto da excitação decorrente da expectativa de que alguma coisa vai aparecer do nada. Foi o que aconteceu comigo, por exemplo, num dia especial em que eu fazia uma caminhada e vagava em meio a pensamentos difusos. Eu o vi:
Pousou em uma árvore cujos galhos estavam sem folhas.
Parecia brincar, parecia sorrir.
Nunca o tinha visto antes ali, mas se mostrou a mim, proximamente.
Os raios de sol da manhã o iluminaram.
Suas penas brilharam e seu bico suntuoso, em tons e semitons alaranjados me deu uma percepção única da singularidade da beleza – uma teofania.
Olhei ao meu redor para tentar partilhar o que só a mim estava sendo revelado, mas em vão.
O mundo oblíquo das pessoas deixa passar o inusitado que transborda em gestos graciosos.
Sim, eu o vi!
Um tucano, que foi para mim mais que uma ave.

         Assim como esse tucano apareceu para mim, inusitadamente, vou continuamente sendo visitado e tocado pelo instante de eternidade que torna a vida humana menos monótona. Eis o evento da gratuidade que modifica o cotidiano e dá novos ares à existência. Ao pensar na gratuidade, escrevi recentemente Vida Ávida:

Amar é viver de forma viva e ávida!
Amo viver porque viver é amar...
Intensamente, com angústia ardente
Tal qual a nau perdida no mar.

Enquanto amo, vivo e sonho,
Pois melhor que viver, é viver e sonhar.
E mesmo quando a vida não acede
Teimoso, insisto até naufragar.

Náufrago, solitário sob o sol e o vento
Deixo as ondas me banharem a alma
Sibila o voo da gaivota azul
Que me encanta gerando-me a calma

A vida é ávida, gente!
E é sempre bom que assim seja...
Ela é graça que nem sempre tem graça,
Mas dá sentido ao que a busca, almeja.


         É assim que se compila este pequeno livro. De eventos fortuitos da gratuidade e da generosidade da natureza, na alma inquieta de alguém que vive de utopias e quixotagens.
         Espero, sinceramente, que todos(as) visualizem seus íntimos sentimentos, e que joguem fora todo peso inútil. Ao final das contas, é sempre bom dizer: Vale à pena!

Tantas coisas mudaram!
Tantas coisas se passaram!
Tantas coisas se refizeram!
O tempo não volta mais,
A não ser por intermédio da memória.

O que desejo para o novo ciclo vindouro?
Que as coisas mudem!
Que as coisas passem!
Que as coisas se refaçam...
Afinal, tudo vale à pena.

DIA 71 - Olho e língua da minha amiga - Em memória de Iracy Costa Rampinelli

  Quando eu era criança, sempre me convidavam para as festas de aniversários. Eu, que nunca tive festas de aniversário, ficava deslumbrado c...